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Sob a sombra de uma mangueira em flor
Jorge Amado está sentado na varanda de sua casa no céu, olhando na direção do infinito azul à sua frente. Chega o carteiro. Entrega-lhe uma correspondência, que Jorge abre com mãos trêmulas. No afã de ler seu conteúdo, rasga envelope e missiva. Corre para dentro da casa ampla, apanha seus óculos de leitura sobre a escrivaninha e, à medida que os olhos vão percorrendo as linhas, abre-se um sorriso em seu rosto que rejuvenesce:
Salvador, 16 de maio de 2008.
Querido Jorge, de tudo a saudade é a invenção mais triste da qual sou conhecedora, desde o dia em que foi levado de mim, por solicitação dos anjos poetas, para rimar versos de amor no céu. Deixou-me esse céu azul cobalto, que nos dias e noites de dor pela tua ausência, fazia-me sentir um enlaço do tamanho do mar, esse mesmo mar que também me deixou e que ficou a me alimentar a alma dolorida.
De você ficou ainda essa saudade cravada em meu peito, e que eu dizia pro meu coração que tinha o cheiro da maresia, meu inesquecível Capitão de Areia.
Esta saudade, que deixou meu corpo como uma terra sem alma, ressequida, frágil, inflamada em labirintos de desejos e em supostas figuras de tua voz, tuas palavras descritas nos pastores da noite, nas canções melancólicas dos velhos marinheiros, no ABC das primeiras letras cantadas por vozes infantis.
Essa saudade que transborda em cores imagináveis e que até hoje foi a impulsora de minha certeza de te encontrar e me encantar como você sempre fez nas noites em que o Eco perdido pelo teu nome preso em minha garganta reverberava sem rota, sem direção, dentro de um vento forte como a afastar o medo do mais temido pesadelo de não mais te ver.
Parto amanhã.
Sua, sempre
Zélia.
Uma lágrima de alegria resvala o rosto de Jorge. Ele a limpa com as costas da mão. Sente-se feliz.
Abre uma gaveta, apanha caneta e papel, seus dedos deslizam rapidamente e o nanquim azul dá a saber:
Mainha!
Todas as manhãs espero pela sua chegada. Nosso encontro finalmente se avizinha. Esses quase oito anos longe de você foram de ternura e lembranças. Sinto demais a sua falta.
Já que vem da Bahia, queria pedir-lhe que me trouxesse uns grãos da areia de Itapoã. Quem me trouxesse umas gotas de água do Rio Vermelho e me enfrascasse um pouquinho da brisa que sopra do mar em Ondina.
Traga-me a lembrança do gosto de uns acarajés, do aedume dos embus de Vitória da Conquista e o aroma dos cacau de Ilhéus.
Traga-me o som de um berimbau. Traga-me uma água de cheiro e um trancelim, e o frescor que faz debaixo da mangueira de nosso quintal.
Traga-me o cântico das lavadeiras durante a lavagem das escadas do Bonfim. Traga-me um fita do Senhor do Bonfim, já arrebentada, posto que meu desejo maior se realiza amanhã.
Estar com você de novo, mainha, para que continuemos nos cumprindo, é tudo o que esse comunista, ateu, pediu a Deus.
Beijo saudoso desse que é seu.
Jorge.
Ps: Zélia morreu na tarde de sábado (18 de maio), aos 91 anos, em conseqüência de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi cremado. As cinzas da escritora serão entregues aos filhos nesta quarta-feira. No mesmo dia as cinzas serão depositadas junto às do marido, Jorge Amado, sob uma mangueira, na casa onde o casal vivia no bairro do Rio Vermelho.
Zélia e Jorge, finalmente, um Destino de amor cumprido a quatro mãos.
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A Música Que Toca Sem Parar
Milton Nascimento e Fito Paez cantam no museu de San Telmo (Buenos Aires), Yo Vengo a Ofrecer Mi Corazon, de autoria de Fito.
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