Tuesday, September 27, 2016

Aretha Franklyn e Deus



(Para Ciro e Marcie, sempre presentes)
Tomara que Ele não me castigue, generoso e bom como é. Mas gostaria de deixar registrado que Deus, em seus momentos de lazer, escuta Aretha Franklyn. 
Acontece naqueles instantes em que Ele não está sendo massacrado com as aprontações de seu inimigo; não está dolorido com nossas fraquezas; e desvia a atenção das traições mais absurdas.
Ele aperta o play e Aretha canta Do Right Woman, Do Right Man.
É quando brotam margaridas na face da terra e arrefecem-se os vulcões. 
São esses os momentos em que coisas boas acontecem para a humanidade. É quando proliferam milagres e os cientistas descobrem a cura para alguma doença. É quando assinam tratados de paz e nascem crianças perfeitas. 
Quando Deus escuta Share Your Love with Me, multiplicam-se os peixes e os pães. 
Eu sinto a presença de Deus quando Aretha Franklyn canta. 
Outro dia, vi um video em que ela interpretava uma canção de Carole King e era Deus quem fazia o duplo papel de ouvinte e de intérprete: na plateia, Ele se emocionava; no palco, tocava piano com um casaco de pele. 
Era Ele que transformava o mundo em um lugar melhor durante os 3 minutos e 48 segundos da música.
Ali, naquele momento, Ele se redimiu de seus falhanços e eu pude esquecer os refugiados sírios, espremidos em uma embarcação, arriscando a vida numa fuga do inferno pelas águas do Mediterrâneo.
Eram homens, mulheres e crianças, todos filhos d'Ele.
Pude desviar a atenção do rapaz descendo do carona da moto com uma arma na mão, durante um sinal vermelho.
Pude esquecer o desejo do homem-bomba de abrir os braços  (como um Cristo Redentor de Kandura) e apertar o detonador em plena Times Square iluminada de ganância e neón.
Esqueci por quase 4 mininutos a fome e a injusta distribuição.
Mas nem só de Aretha Franklyn vive o Todo Poderoso.
Quando Ele se cansa e cochila no serviço, acontecem tsunâmis, Fukushimas, golpes de Estado, negociatas de corrupção e gols-contra no futebol. 
Tenhamos compaixão.
Deus está cansado, não lhe damos sossego. 
Quando Ele chega ao limite do corpo é o momento em que a voz de Aretha se cala e os casais se desentendem, as nações declaram guerras, inventam bombas destruidoras e o pão de queijo carboniza no forno.
O leite derrama quando Ele se cala e Aretha Franklyn fica muda. 
Mas não é só com Aretha que Deus se emociona, pois sinto a sua presença em tantas outras coisas, que cabe aqui enumerar.
Quando o outono decreta o fim do verão e Deus pinta de ouro (e cobre e zinco) a paisagem do norte das Américas, Ele revela – em toda a glória e esplendor  - um momento de divina vaidade.
Eu escuto Deus no discurso do papa Francisco, o papa mais tolerante, mais gente-boa que a humanidade já conheceu.
Escuto Deus na chuva.
Escuto o Seu assovio quando o vento varre os telhados. 
É Ele que assopra a cabeleira dos canaviais e joga anilina no mar.
Ele pinta aquarelas coloridas com as quatro estações e está presente quando vejo um quadro de Portinari ou me lembro de um gol de Pelé.
Quando leio Manoel de Barros e sua simplicidade, eu o sinto.
E em Adélia se derretendo por Jonathan.
Ou quando Cora Coralina fala de biscoitos.
Registro sua presença na voz de meus pais, já velhinhos, ao telefone: sinto-o cristalino quando, na hora da despedida, os dois pedem que Ele me abençoe.
Mas é quando minhas filhas me chamam de pai, que eu escuto mais forte sua voz.
É este o momento da canção em que Aretha Franklyn, muito emocionada, atinge as notas mais altas e arrepia a pele de Deus.

Tuesday, September 20, 2016

Ensaio miúdo sobre a brancura da inveja


(Para as poetas Jô Diniz e Ana de Istambul)


Passo de carro e os vejo emparelhados. Existirá na vida aquilo que chamam de inveja branca?
Sim, existe.
E eu a conheço, tenha ela a cor que tiver.
Falo o seu idioma.
Domino seus desdo­bramentos.
Comungo da hóstia amarga dos invejosos, mas minha inveja não é daqueles que conseguiram mais e melhor.
Não invejo os campeões, os brilhantes, os ricaços, os bem nascidos e os bonitões.
Minha inveja é dele e dela, que vejo do outro lado do parabrisa .
Ele e ela, que caminham pelas ruas como que encantados por um violino imaginário.
Dele e dela, ela e ele, que poderiam ser outros quaisquer, que não estes.
E a minha inveja é de não sê-los e de não tê-los sido.
É inveja da inocência e da inconseqüência.
Do verdor, do frescor, da ausência de noção do perigo. Inveja da forma como eles amam.
O amor na juventude é o melhor amor que existe, posso assegurar.
Ele é chama que não se apaga e vive para sempre em quem o viveu, ainda que, agora, em fantasmagórica saudade.
Na outono da vida o amor parece não existir mais. Evapora, feito éter.
Mas eu falava dele e dela. E eles estão de mãos dadas numa avenida que conduz ao futuro que eles não sabem ainda ser incerto. Ele e ela de mãos dadas na praça.
Ele e ela num banquinho, as mãos entrelaçadas e o pedido feito ao meteorito que riscou o céu.
Ela lhe oferecendo a lua branca e cheia. Ele batizando uma estrela com o nome dela.
Toca uma balada romântica de Cazuza ao longe e aquela é a música que lhes embala a noite e tudo o que lhes foi prometido por Deus. Qualquer deus.
Na noite que cheira a jasmim e a grama verde, recende também a lavanda do pescoço dela e a água de colônia do queixo dele.
Beijos que se multiplicam como peixes, afagos que se perpetuam, pele que arrepia e o planeta ficou zonzo. A Terra parece ter parado de girar. E eles se amam como se não existisse o amanhã.
Para que nos servirá o amanhã? – pergunto eu.
Para que o amanhã, se a felicidade reside aqui, urgentíssima, agora, no carinho deles?
Vejo que ele apanha uma pedra no chão. Tem o formato de um coração, imagino. Diamante mais verdadeiro.
Ele dá pra ela a margarida que roubou do outro lado da grade E um anel de flandres, feito da tampa do copo de água mineral, que ela promete guardar pra sempre.
Em troca ela lhe oferece o ombro. Insinua o colo. E ele lhe garante ter dois bilhetes – de ida – para o paraíso.
Ele e ela sem medo de amar…
Ele e ela sem medo da felicidade, ou daquilo que algum adulto sem graça batizou de medo de ser feliz.
A graça de ser jovem existe, acima de tudo, porque os jovens não conhecem o medo. E há tempo de sobra para recomeçar do zero.
Eles desconhecem o desgaste, a rotina, os filhos e suas necessidades, o tempo que passa cruel e pontualmente e as pequenezas envolvendo dinheiro, pagamentos, prestações, ambições profissionais e a incorporação de bens.
Benditos sejam aqueles que conseguem, por um dia que seja, amar na idade madura com a graça, fúria e inocência dos jovens de ontem, de hoje e de sempre.
Benditos sejam eles. Benditos sejam...
Amém.

Friday, September 9, 2016

Rabisco indefinido para uma letra de canção

Vil perdão

(Para o Fred)


Eu perdoo você
e suas pequenas mentiras.
Suas grandes mentiras.
Suas mentiras
de todos os tamanhos.

Perdoo
as promessas de campanha,
as promissórias afetivas
seus ‘eujuros’ e 'euteamos'

Perdoo a nudez fingida,
os seios oferecidos
as geometrias felizes
os trejeitos de Marilyn
e os gozos de festim.

Perdoo suas nuvens vazias de chuvas
seus minuanos, seus tsunamis
Perdoo os raros dias de sol
e a ausência de verões

Eu perdoo

Perdoo os seus boleros,
suas rumbas, suas dores
e o aço frio dos  punhais
- o finco das bandarilhas -
ardidos, urdidos
em minhas costas
e esta sangria imposta
feita de uis e ais

Perdoo você como
quem perdoa Judas.
Perdoo, principalmente,
seus pra sempre
E seus jamais.

Sunday, September 4, 2016

Ofício


(um arremedo à moda do Manoel para o Bispo Filho)

Ele
passa dias a fio
cozinhando o frio
espalhando nuvens
derramando chuvas
acendendo as luas

Deus
passa domingos inteiros
pintando lírios
e afinando o zumbido
dos marimbondos