Thursday, May 30, 2019

Achados e perdidos


Preciso encontrar o passaporte brasileiro, que se exilou de mim.
Desde que cheguei de Portugal em novembro do ano passado, eu não sei do seu paradeiro.
Estará no bolso do paletó que me acompanhou na viagem?
Será que caiu no chão e foi encontrado pela mulher da limpeza e colocado num escaninho do departamento de achados e perdidos?
Terá sido esquecido no café do aeroporto e hoje traz a cara de um terrorista, um traficante de drogas - ou outro contraventor - no lugar onde um dia existiu uma foto minha?
Eu gosto da minha fotografia naquele documento.
Estou dez anos mais moço e o meu rosto ainda não havia se transformado no mapa rodoviário de Minas Gerais.
Na foto, estou dez anos mais novo e o mundo era um lugar menos radioativo.
Naquela altura “ainda não havia para mim Donald Trump ou a sua mais completa tradução”.
Não havia Neymar nem Jojo Todynho e o meu time não havia flertado com a Segunda Divisão.
Jair Bolsonaro era apenas um deputado pífio, dependurado em um cabide de emprego público, abusando da ignorância do eleitor.
E nada mais.
Há dez anos eu ainda chorava as dores de outros 11 de setembro, tinha pequenos delírios e algumas aflições.
Desde então, aumentaram o diâmetro do buraco na camada de ozônio, inflacionaram a gasolina, árabes e judeus continuaram em discórdia; e eu permaneci à deriva, sem saber para onde ir.

E se eu precisar ir para o Brasil numa emergência? – pergunto aos meus desgastados botões.
E se explodir uma guerra, e eu tiver que fugir como um cão com o rabo entre as pernas?
Preciso encontrar indícios de coragem em mim, eu sei.
Mas, antes, preciso achar o bendito passaporte.
E preciso mais.


É imperativo localizar a velha coletânea de Drummond e ler em voz alta o Poema das Sete Faces.
Desvendar as minhas sete faces e, se preciso for, dá-las a tapa, pois ainda há tempo.
Tempo de mudar algumas opiniões.
De mudar de ares, repaginar a vida.
Tempo de virar o jogo.
De ganhá-lo.

E pagar o preço devido, pois nada vem sem dor.
Abrir mão de alguns prazeres para cuidar da saúde.
Retomar as dolorosas caminhadas matinais.
Redescobrir o desejo de querer ser longevo e viver melhor.

E reencontrar os meus óculos, perdidos num outro lugar e que não são esses - amalgamados às orelhas -, que hoje me permitem enxergar o mundo com dois graus de astigmatismo e miopia.

Aqueles óculos especiais que proporcionarão que eu me enxergue, filtrando na transparência das lentes mais íntimas a cegueira massacrante que turva a claridade dos dias.
E permita a separação de joio e joia e me faça ver, talvez pela última vez, menino bonito de mim.

Monday, May 20, 2019

O carteiro


(Para a minha vizinha Turquinha, que guardava suas cartas numa caixa lilás)

Dizem que o cão é melhor amigo do homem, mas os carteiros discordam.
São tão épicos os embates entre eles, que já renderam desastradas escaladas em muros e árvores, pernas de calças rasgadas, visitas ao Pronto-Socorro e, não raro, correspondências espalhadas pela rua.
Os cães odeiam os carteiros.
Eu não.
Eu os admiro. Gosto muito deles.
Muito antes da popularização dos telefones inteligentes e do surgimento da internet, eram eles os mensageiros dos nossos afetos e aflições, profissionais que gozavam da estima geral.
Naquele tempo em que as pessoas se orgulhavam das caligrafias e treinavam os manuscritos em cadernos apropriados, as missivas eram testamentos do que ia pela cabeça, alma e coração de quem as remetia.
Era muito bom receber uma carta com selos comemorativos homenageando heróis da história, esportistas e criaturas da fauna e da flora, caprichosamente desenhados por artistas de grande talento.
Era ainda mais especial quando aquela carta vinha do estrangeiro, com envelope de moldura quadriculada em azul e vermelho, tatuada com as palavras 'par avion' ou  'air mail', indicando que chegara a bordo de  uma aeronave proveniente de uma terra distante.
Não cheguei a ser um filatelista, no sentido bíblico, mas tinha o costume de guardar os selos das cartas que recebia.
Escrevi e recebi muitas. Centenas. Talvez milhares delas.
Era muito comum as pessoas trocarem cartas, num 'virtualismo' que tinha muito de intimidade e confiança.
Como não evocar as célebres correspondências de Clarice Lispector e Manuel Bandeira, ou de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, registradas posteriormente em livros deliciosos de ler?
Onde cresci, o carteiro subia ou descia a rua com o seu alforje cheio de envelopes. Muito raramente, entregava algum pacote maior, algum presente.
Na ausência das campainhas de hoje, eles batiam palmas no portão, muitas vezes gritando o nome do destinatário, anunciando a chegada de notícias.
A entrega de uma carta vinha sempre carregada de suspense e emoção.
Ela poderia trazer notícias boas ou ruins.
Um sobrinho que nasceu na Bahia, por exemplo. Ou o convite para um casamento ou batizado em Porto Alegre; a formatura do filho de um amigo na distante América do Norte também poderia ocorrer.
Ou a dor da morte ou doença de alguém.
As cartas de pai e mãe traziam o calor de um afago e sábios conselhos.
A de um amigo trazia a camaradagem, a partilha.
Mas as cartas de amor...
Ah, as cartas de amor...
Não tenho dúvida de que elas foram inventadas pelo cupido em dia de divina inspiração.
Elas traziam sentimento e encanto, fotografias, promessa de amanhãs risonhos e recatado tesão. Não raro, carregavam o cheiro da colônia dele ou a marca do batom dela.
Muita gente se conheceu por carta e casou respaldado pelo que leu.
É como se ficasse atraído pelo interior da outra pessoa e não pelo que os olhos, nas condições presentes, veem.
Era como se tivessem tomado conhecimento um do outro 'do umbigo para fora', e não da 'figura' escancarada nas imagens dos vídeos dos computadores de agora.
Os tempos são outros, sabemos, e o resultado visual do que pregam nas academias de ginástica se tornou mais importante do que a substância de um ensinamento de Nietzsche, ou um arrepio balbuciado por Drummond. 
Assim sendo, é natural que os carteiros tenham perdido tanto do seu encanto.
A rapidez e a praticidade de um e-mail - ou uma mensagem de voz num destes aplicativos de celular - transformaram as correspondências pessoais em objetos de museu.
Em seus embornais, nossos homens de amarelo carregam mais peso, pacotes de encomendas compradas pela internet, contas de telefone e de cartões de crédito, ou de água e luz.
Se a cor de seus uniformes permanece intacta após todos estes anos, a magia do ofício desbotou e apenas os cães ainda não se aperceberam disto.

Monday, May 13, 2019

Mente fraca


O tempo vai passando, a chama da vida definhando e quase não percebemos as mudanças na nossa habilidade de executar as coisas.
A digestão de comida e informações fica lenta. Bem mais lenta.
Eu, que antes era capaz de dar prejuízo em uma churrascaria rodízio, agora passo um tempo enorme tentando dissolver um bife.
A tolerância ao álcool é outro tópico sensível.
Passei mais de 40 anos sem conhecer a ressaca. Hoje somos íntimos.
Quatro latinhas de Pilsner me fazem acordar no dia seguinte com um Saara na boca, além do indefectível gosto de cabo de guarda-chuva, que até então desconhecia. 
E a caixola vira um abacate maduro, com o caroço balançando lá dentro.
O que mudou?
Mudou tudo.
Foram mais de cinco décadas abusando da boa vontade da genética.
Começou a cair-me os cabelos de onde deveria haver cabelo, e a nascer cabelo onde não deveria haver cabelo. 
No outro dia, achei um fio enorme dentro de uma das orelhas. 
A cabeça está virando uma pista de aeroporto e as sobrancelhas encolheram, dando ao rosto um aspecto estranho.
Acabamos nos tornando uma caricatura do que fomos um dia e ela, a caricatura, capricha em realçar as imperfeições.
Crescem as orelhas e o nariz, o último, ganhando o formato de uma coxinha de padaria.
O tempo é cruel com Narciso.
Envelhecer é rápido e dolorido.
Doem músculos, articulações e a autoestima.
Coisas que eu fazia com facilidade tornaram-se verdadeiros sacrifícios.
Amarrar os sapatos, por exemplo, há muito tem sido um esforço hercúleo. 
Aconselhado por um amigo, adotei a técnica de colocar o pé sobre a cadeira antes de me curvar para dar o nó. De uns tempos para cá comecei a calçar tênis, daqueles que dispensam o uso de cadarços.
Redução de peso e prática de exercícios físicos foram recomendados pelo médico que me vê cada vez mais. Mas tenho gastado o tempo disponível cuidando da horta que planto todas as vezes que a primavera dá o ar de sua graça por aqui.
Quando termino de fazer uma capina entre os canteiros de hortaliças ou de revirar a terra com a enxada presenteada por meu saudoso pai, costumo recorrer a analgésicos e conhaques de procedência duvidosa.
Não resolvem, mas aliviam.
O que mais tem preocupado, no entanto, é a perda gradativa da memória.
Nunca sei onde larguei as chaves, esqueço celular e óculos em restaurantes e, não raro, deixo de comparecer a algum compromisso diluído dentro da memória enfraquecida.
As ocorrências se dão principalmente na parte da manhã, período do dia em que eu mais gosto de escrever.
Às vezes, quero construir uma frase, mas algumas palavras somem misteriosamente dentro de uma espécie de buraco negro que se abriu dentro de mim. 
Por autocomiseração, achei uma saída poética, mudando o horário das escrevinhações para o meio da tarde.
Desde então eu defendo a tese de que, como acontece com as pessoas, algumas palavras demoram mais tempo que as outras para acordar.
E assim vou levando, um descarrilamento de cada vez.