Monday, May 20, 2019

O carteiro


(Para a minha vizinha Turquinha, que guardava suas cartas numa caixa lilás)

Dizem que o cão é melhor amigo do homem, mas os carteiros discordam.
São tão épicos os embates entre eles, que já renderam desastradas escaladas em muros e árvores, pernas de calças rasgadas, visitas ao Pronto-Socorro e, não raro, correspondências espalhadas pela rua.
Os cães odeiam os carteiros.
Eu não.
Eu os admiro. Gosto muito deles.
Muito antes da popularização dos telefones inteligentes e do surgimento da internet, eram eles os mensageiros dos nossos afetos e aflições, profissionais que gozavam da estima geral.
Naquele tempo em que as pessoas se orgulhavam das caligrafias e treinavam os manuscritos em cadernos apropriados, as missivas eram testamentos do que ia pela cabeça, alma e coração de quem as remetia.
Era muito bom receber uma carta com selos comemorativos homenageando heróis da história, esportistas e criaturas da fauna e da flora, caprichosamente desenhados por artistas de grande talento.
Era ainda mais especial quando aquela carta vinha do estrangeiro, com envelope de moldura quadriculada em azul e vermelho, tatuada com as palavras 'par avion' ou  'air mail', indicando que chegara a bordo de  uma aeronave proveniente de uma terra distante.
Não cheguei a ser um filatelista, no sentido bíblico, mas tinha o costume de guardar os selos das cartas que recebia.
Escrevi e recebi muitas. Centenas. Talvez milhares delas.
Era muito comum as pessoas trocarem cartas, num 'virtualismo' que tinha muito de intimidade e confiança.
Como não evocar as célebres correspondências de Clarice Lispector e Manuel Bandeira, ou de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, registradas posteriormente em livros deliciosos de ler?
Onde cresci, o carteiro subia ou descia a rua com o seu alforje cheio de envelopes. Muito raramente, entregava algum pacote maior, algum presente.
Na ausência das campainhas de hoje, eles batiam palmas no portão, muitas vezes gritando o nome do destinatário, anunciando a chegada de notícias.
A entrega de uma carta vinha sempre carregada de suspense e emoção.
Ela poderia trazer notícias boas ou ruins.
Um sobrinho que nasceu na Bahia, por exemplo. Ou o convite para um casamento ou batizado em Porto Alegre; a formatura do filho de um amigo na distante América do Norte também poderia ocorrer.
Ou a dor da morte ou doença de alguém.
As cartas de pai e mãe traziam o calor de um afago e sábios conselhos.
A de um amigo trazia a camaradagem, a partilha.
Mas as cartas de amor...
Ah, as cartas de amor...
Não tenho dúvida de que elas foram inventadas pelo cupido em dia de divina inspiração.
Elas traziam sentimento e encanto, fotografias, promessa de amanhãs risonhos e recatado tesão. Não raro, carregavam o cheiro da colônia dele ou a marca do batom dela.
Muita gente se conheceu por carta e casou respaldado pelo que leu.
É como se ficasse atraído pelo interior da outra pessoa e não pelo que os olhos, nas condições presentes, veem.
Era como se tivessem tomado conhecimento um do outro 'do umbigo para fora', e não da 'figura' escancarada nas imagens dos vídeos dos computadores de agora.
Os tempos são outros, sabemos, e o resultado visual do que pregam nas academias de ginástica se tornou mais importante do que a substância de um ensinamento de Nietzsche, ou um arrepio balbuciado por Drummond. 
Assim sendo, é natural que os carteiros tenham perdido tanto do seu encanto.
A rapidez e a praticidade de um e-mail - ou uma mensagem de voz num destes aplicativos de celular - transformaram as correspondências pessoais em objetos de museu.
Em seus embornais, nossos homens de amarelo carregam mais peso, pacotes de encomendas compradas pela internet, contas de telefone e de cartões de crédito, ou de água e luz.
Se a cor de seus uniformes permanece intacta após todos estes anos, a magia do ofício desbotou e apenas os cães ainda não se aperceberam disto.

8 comments:

Ricardo Mainieri said...

Continuas escrevendo maravilhosamente bem, Roberto. Uma crônica que delicia o leitor, na partilha de um tempo encantado que se foi. Os cachorros não perceberam, mas eu percebi.

Primeira Pessoa said...

Ricardo,
poeta do Olímpico, você percebe sempre, antenado que é.
Saudade dos tmpos em que não havia o Facebook e a gente se encontrava nos Blogs. E, olhe, os Blogs são pós-missivas, contemporâneos da delicadeza. Acertei?

Abraço feliz do

Roberto.

Dario B. said...


Lamentavelmente não tive essa experiencia, Roberto. Nunca fui pai também (até onde sei) e nunca tive um carro, até poderia ter comprado, mas é uma coisa que nunca me apeteceu. Voltando as cartas, minha mãe sempre manteve enquanto viva, correspondência com um tio meu, que depois de uns 40 anos de Brasil resolveu voltar para a Lituânia, levando meu único primo. Dessa correspondência os selos ficavam para mim, que os fui juntando a outros que meu pai colecionava num álbum enorme. Até que este virou presente para um médico amigo, filatelista, que adorou. Essa foi toda minha experiencia com cartas. Mas conheço sempre os carteiros daqui, agora é uma carteira. (Existe essa palavra?). E meus cachorros nunca morderam nenhum.

José Humberto Fagundes said...

Meu amigo Roberto,

Também sou da geração das cartas. Apesar de raríssimas hoje em dia, prezo-as ainda mais. No momento, minha única companheira de cartas é minha neta de oito anos. Que volte a alegria das cartas!
Grande abraço!
José Humberto Fagundes

Primeira Pessoa said...

José Humberto,
é fantástico isso de trocar cartas com a neta de 8 anos. Isto é grandioso. Merece um texto. Merece muito mais.

Abração,

Roberto.

Primeira Pessoa said...

Dário,
o Roberto Drummond também não tinha carro. Vivia andando de táxi e reclamando dos preços abusivos. Hoje andaria de Uber. rs
Eu cheguei a ter mais de mil selos e eles se perderam no tempo, provavelmente destruídos por traças numa caixa de papelão que deixei num barracão no fundo da casa para onde meus pais se mudaram, em BH.
Eu era doido para te perguntar de onde vieram os Banas. Hoje descobri :-)
Beijão,
Roberto.

rosa-branca said...

Ainda sou do tempo das cartas de amor. Tão esperadas que eram. Adorei o texto. Beijinhos

Ana Cláudia Justo said...

O seu texto é muito sensível e civilizado pois ele dá valor a uma profissão tão útil ainda em nossa sociedade. Os donos de cães deveriam ler o seu 'post' e encontrarem uma solução como se deve para evitar tais abusos para com os carteiros. Bom saber que ainda existe pessoas com esta sensibilidade e um olhar crítico para com essas aberrações da nossa atual sociedade que são os cães de guarda.