Onde eu nasci passa um rio.
O Rio Doce, que nasce na serra da Mantiqueira e desagua no Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.
Este rio que ainda corre em minhas veias e foi meu companheiro desde sempre.
Nasci às suas margens, numa casinha modesta, em Pedra Corrida, interior do interior de Minas Gerais. Mas fiquei pouco tempo.
Alguns meses após o nascimento, acompanharia o seu curso, correnteza abaixo, mudando-me com a família para Governador Valadares.
No bairro São Raimundo aprendi a nadar em suas águas, pescava lambaris e piaus, conversava com as pedras. Foi assim por toda a infância e adolescência.
O tempo passou, tornei-me adulto e passei a ter um pesadelo recorrente.
Quase todas as noites eu sonhava com o corpo submerso e tinha a sensação afobada de afogamento, via barrancos, vegetação ribeirinha, o céu engolindo as águas, peixes, tudo.
Era um pesadelo que tinha placidez e pressa, fazendo-me acordar suado, amedrontado, sem entender o porque de o mesmo sonho se repetir com tanta frequência.
Há cerca de dez anos, no entanto, minha mãe contou uma história que mudaria as minhas noites.
Estávamos jantando em Belo Horizonte e ela falou da gravidez que me traria ao mundo.
Contou-me da chegada à Pedra Corrida de minha avó Ana Emília, parteira de excelente reputação.
Naquele tempo eram raros os hospitais e que praticamente todas as crianças interioranas nasciam em casa.
Num domingo de novembro, a família foi para uma prainha que se formava sempre que o rio definhava.
Farofa, frango, refrigerante, cerveja e amigos.
Um luxo.
As pessoas chamavam seus amigos e iam caminhando rio adentro, as águas pela cintura, ancorando nas pequenas ilhotas arenosas que se materializavam, e ali passavam dias inteiros.
Uns pescavam com anzol, crianças nadavam e jogavam futebol, mulheres tricoteavam a vida alheia.
E minha mãe foi com meu pai e um grupo de amigos, passar aquele dia de grande calor.
Tudo ia muito bem até que ela começou a sentir as contrações.
Temendo que a criança nascesse ali, no meio do rio, dona Rute tentou voltar para casa, na margem esquerda, apavorada e com muitas dores. Foi um sufoco.
Felizmente, aquela apressada travessia não passaria de um susto.
Eu nasceria alguns dias depois, no meio de uma madrugada de terça-feira, iluminado pela luz de uma lamparina, o cordão umbilical enrolado no pescoço.
Minha avó sempre contava que foi um parto complicado, um dos mais difíceis que fez.
Desde que minha mãe contou esta história da corrida até a margem, nunca mais voltei a sonhar com o afobamento daquelas águas.
Foi como se eu entendesse, finalmente, aquele mistério tão íntimo.
E tinha que ser ela a contar para eu desvendar, de uma vez por todas, o mistério.
Quando completei 40 anos de idade pedi a meu pai que fosse comigo, pela primeira vez, a Pedra Corrida. Afinal, eu jamais havia voltado lá.
Saímos de BH bem de manhãzinha e chegamos ao destino por volta da hora do almoço, uma viagem de 300 quilômetros pela rodovia 381.
Descemos a rua principal do vilarejo, um lugar precário e esquecido pelo progresso, e fomos imediatamente para a rua à margem do rio, onde eu nascera em 1962.
Seu Antônio parou o carro e ficou um pouco em dúvida, pois as casinhas eram muito parecidas umas com as outras. Até que se decidiu por uma delas.
- “Foi aqui que você nasceu, meu filho”, disse ele.
Emocionei-me, chorei, tirei fotografias na frente daquele casebre e me encantei com um galho de mini-rosas, que pendia para fora do muro por um fresta.
Foi quando apareceu um homem que nos observava à distância.
Ele chegou, cumprimentou meu pai, disse tê-lo reconhecido e que ele não “dimudô” muito, do início dos anos 60 até então.
Em seguida, disse-nos que aquela não era a casa em que moráramos.
Informou que ela já não existia, pois foi levada por uma enchente em 1979, apontando para um terreno baldio, um pouco mais à frente.
Fui até lá e vi, entre os escombros, o que ainda havia de vida naquele pedaço de terra.
Procurei vestígios meus no meio da rala vegetação que brotava onde um dia existiu uma casa, e nada encontrei.
No lugar em que nasci pastava agora, incólume, um simpático burrinho.
E eu, que sou de tantos lugares, continuei sendo de lugar nenhum.
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