Monday, August 29, 2011

Um Belo Poema de Tavares Dias

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A Vida Toda Em Flor


Para Kikina


Formosa companheira que me acalma os dias,
que me encurta as tardes e me encanta as noites:
desça-te sobre a fronte a água fresca da Vida,
a revelar-te o Tempo e a te acalmar o peito.
Senhora dos meus cuidados e dos meus suspiros:
que ais tens ouvido, que amor me tens dado.
Não te falte o chão, seja leve o fardo.
Plena seja a vida, reta seja a estrada.
Musas povoem teu sono tranqüilo.
Crianças te tragam presentes risonhos.
Floresçam gerânios por entre os teus passos.
Espinhos não vejam cruzares teu rio.
Do Amor verdadeiro tomados sigamos,
ó bela senhora que eu quero e hoje tenho.
Passantes vislumbrem, na nossa morada,
a Luz acesa, aberto o peito, a vida toda em flor.



A Música Que Toca Sem Parar:

Talvez Seja Real, de Fausto Nilo e Geraldo Azevedo, na voz do segundo, Talvez Seja Real:

Parte de mim que faltava
Tanto eu esperava
Te ver
Olhando o tempo
Eu e você
O impossível
Vamos viver
Ilusão
Eu duvido
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu
O impossível
Não é pecado
Tire os olhos da parede
Abra as janelas do quarto
Como a laranja e a sede
A gente ainda vai se encontrar
Como a laranja e a sede
Abra as janelas do quarto
Tire os olhos da parede
E essa parte de mim separada
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu






Wednesday, August 24, 2011

Dois Poemas e Uma canção de Ferreira Gullar














Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?



***

Primeiros Anos


Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.



***



A Música Que Toca Sem Parar:
Fagner canta bonito esse poema de Ferreira Gullar:


Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Wednesday, August 10, 2011

Onde eu nasci passa um rio

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Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

(Ilana Volcov, cantando)

Onde eu nasci passa um rio. Trata-se do Rio Doce, que nasce na serra da Mantiqueira e deságua no Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.

Este rio que ainda corre em minhas veias, foi meu companheiro desde sempre. Nasci às suas margens, numa casinha modesta, em Pedra Corrida, interior do interior de Minas Gerais.

Mas eu fiquei pouquíssimo tempo no lugar em que nasci. Alguns meses após o nascimento, eu acompanharia o seu curso, correnteza abaixo, mudando-me com a família para Governador Valadares.

No bairro São Raimundo ,aprendi a nadar em suas águas, pescava lambaris e piaus, conversava com as pedras. Foi assim a minha infância e adolescência.

O tempo passou, tornei-me adulto e eu sonhava quase todas as noites com meu corpo submerso, uma sensação afobada de afogamento, barrancos, vegetação ribeirinha, o céu engolindo as águas, peixes de escama e couro.

Era um pesadelo que tinha placidez e pressa, fazendo-me acordar suado, amedrontado, sem entender o porque de o mesmo sonho se repetir com tanta frequência.

Há cerca de dez anos, no entanto, minha mãe contou-me uma história que mudaria as minhas noites.

Estávamos jantando em Belo Horizonte e ela falou-me da gravidez que me traria ao mundo.

Contou-me da chegada a Pedra Corrida de minha avó, parteira de excelente reputação, em um tempo que eram raros os hospitais e que praticamente todas as crianças nasciam em casa, naquele interiorzão do Brasil.

Ana Emília chegara um mês antes da data com o intuito de acompanhar a gestante. E, naquele domingo, a família foi para uma prainha que se formava sempre que o rio definhava.

Farofa, frango, refrigerante,cerveja, amigos… Um luxo!

As pessoas chamavam os amigose iam caminhando rio adentro, as águas pela cintura, ancorando nestas pequenas ilhotas arenosas que se materializavam, e ali passavam o dia inteiro.

Uns pescavam com anzol,crianças nadavam e jogavam futebol, mulheres tricoteavam a vida alheia.

E minha mãe foi com meu pai eum grupo de amigos, passar aquele dia de folga no início de dezembro.

Tudo ia muito bem até que ela começou a sentir as contrações.

Temendo que a criança nascesse ali, no meio do rio, dona Rute tentou voltar para casa, na margem esquerda,apavorada e com muitas dores. Mas aquela apressada travessia não passaria de um susto.

Eu nasceria dois dias depois,no meio de uma madrugada, iluminado pela luz de uma lamparina, o cordão umbilical enrolado no pescoço.

Minha avó sempre contava que foi um parto complicado, um dos mais difíceis que fez.

E, desde que minha mãe contou esta história da corrida até a margem, nunca mais voltei a sonhar com o afobamento daquelas águas. Foi como se eu entendesse, finalmente, aquele mistério tão íntimo.

E tinha que ser ela a contar para eu desvendar, de uma vez por todas, o mistério.

Quando completei 40 anos de idade pedi a meu pai que fosse comigo, pela primeira vez, a Pedra Corrida. Eu jamais havia voltado lá.

Saímos de BH bem de manhãzinha e chegamos ao destino por volta da hora do almoço, uma viagem de 300 quilômetros pela rodovia 381.

Descemos a rua principal do vilarejo, um lugar precário e esquecido pelo progresso, e fomos para a rua à margem do rio, onde eu nascera em 1962.

Seu Antônio parou o carro eficou um pouco em dúvida, pois as casinhas eram muito parecidas umas com as outras. Até que se decidiu por uma delas.

- “Foi aqui que você nasceu, meu filho”, disse ele.

Emocionei-me, chorei, tirei fotografias na frente daquele casebre e me encantei com um pé de mini-rosas,que pendia para fora do muro.

Naquele momento, apareceu um homem, que nos observava à distância.

Ele chegou, cumprimentou me upai, disse tê-lo reconhecido e que ele não “dimudô” muito, do início dos anos 60 até então.

Em seguida, disse-nos que aquela não era a casa em que morávamos. Informou que ela já não existia, pois foi levada por uma enchente em 1979, apontando para um terreno baldio, um pouco mais à frente.

Fui até lá e vi, entre os escombros, o que ainda havia de vida naquele pedaço de terra.

Procurei vestígios meus no meio da rala vegetação que brotava onde um dia existiu uma casa, e nada encontrei.

No lugar em que nasci pastava agora, absolutamente incólume, um simpático burrinho.

E eu, que sou de tantos lugares, continuei sendo de lugar nenhum.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Caetano Veloso e na voz de Ilana Volcov, "Onde Eu Nasci Passa Um Rio".


Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração

Thursday, August 4, 2011

2 Poemas de Daniel Faria

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Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, da operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


**

Quero a Fome de Calar-me

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança



in "Dos Líquidos"



A Música Que Toca Sem Parar:
meu grupo pop de língua portuguesa favorito, o Trovante... Perigo.

Sai debaixo das pedras
E vai
Vai

Vai mais longe mais fundo
Não mudes de assunto
Só porque é mais fácil

Vai
Vai mais longe vai
Vai ao fundo do fundo
Não mudes de assunto
Há sempre um perigo

Tuesday, August 2, 2011

Um Petardo de Romério Rômulo

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não acredite na suavidade dos poetas
cujos versos,
por simples,
são um cavalo em pêlo, no cerrado.

(fuja do poeta
como se foge da doença que se estampa longe.
seu fígado é visgo:nada lhe corrói as entranhas.)

os aços mais duros
não conseguiram lhe desmontar as peças.
seu olhar, sempre sobre,
há que ser medido em trovões.

um poeta qualquer, por mais frágil,
faz terremotos parecerem grilos.


(Romério Rômulo)


A Música Que Toca sem Parar:
do uruguaio Léo Masliah e da brasileira Clara Sandrone, Guardanapos de Papel. Canta, Milton Nascimento.

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados


Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores


Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas


Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos


Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem


Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas


Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas


Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram


Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro