Tuesday, December 20, 2022

O profeta do ontem


Passaram-se 37 anos.

Minha mãe sorri e entrega-me um pedaço de papel bastante gasto. 

Amarelou, tem as arestas puídas, visivelmente arranhadas pelas unhas de Kronos.

O documento está dobrado em dois, desfazendo um retângulo, como se tivesse sido dividido ao meio para caber no bolso da camisa.

O papel é de gramatura pesada, quatro folhas em tamanho ofício amalgamadas numa só.  Um cartão que revela a origem do departamento que o emitiu.

Estou diante de uma cédula de identidade com o carimbo das Forças Armadas do Brasil:

10º Batalhão de Infantaria – Juiz de Fora, MG – 2º Companhia de Fuzileiros.

Graduação: soldado.

Nº: 0522.

Nome: Carlos Roberto Lima.

Data e local de nascimento: 04-12-1962; Pedra Corrida-MG.

Lá em baixo, em azul, naquele anil das canetas Bic, o jamegão de José Cândido Lopes, coronel infante.

Olho para o retrato 3X4 e ali fenece um menino bonito.

Que olha firme para a lente da Kodak apontada para ele como um revólver pronto para disparar.

A imagem do frescor dos 18 anos denuncia um adolescente ocupado em seus rituais de passagem.

A foto revela ao mundo um homem em formação.

A vida exige voluntários.

O exército brasileiro, não.

Assim como o voto, o serviço militar é obrigatório para os rapazes do Brasil.

E está tudo lá, na fotografia, a obrigação que rouba o que restou da inocência e o impossibilita do livre arbítrio.

Patriotismo coercitivo. 

Pele verde-oliva. 

Ufanismo. 

João Baptista Figueiredo. 

Dom e Ravel.

Ali jaz um menino.

Um menino que pagou a conta em 18 prestações e saiu num ônibus da Viação Gontijo, perambulou durante dois dias pelas ruas de BH, antes de se perder nas páginas de um passaporte, embarcando numa viagem sem volta para Nova York.

As olheiras - cinzas diluídas - estão expostas para quem as fitar no marrom desbotado dos anos.

E  é tão fundo o poço das incertezas para essa legião de garotos; é inverossímil a previsão de um final feliz.  

Aos 18 anos é tudo tão turvo...

E turvas são as águas do futuro.

Mas há tanto de confiança naquele  olhar que fuzila a câmera e por ela é fuzilado

Mal sabe ele. 

Mal saberá.

Que conselhos eu poderia dar para aquele rapaz mais de três décadas depois?

Profeta do ontem, que me tornei, é tão fácil dizer que foi correta a decisão de deixar tudo para trás e tentar a sorte em outro país.

A saída pelo aeroporto é sempre uma eficaz válvula de escape para os que nasceram precários e com pouco a perder.

Eu poderia falar-lhe de outras escolhas, apontar a areia movediça de algumas companhias e poupá-lo de desgostos e decepções.

Rabiscaria-lhe atalhos para evitar descaminhos.

Rascunharia cenários caóticos e eventuais oásis com suas brisas e regatos. 

E o deixaria escolher.

Falaria do amor de juventude que não daria em nada, além dos porres de praxe e subsequentes noites de insônia.

Eu o consolaria e lhe enxugaria as lágrimas, poupando-o da indiferença fria do travesseiro.

Sugeriria livros e filmes como antídoto, munição e lastro. 

Eu o ensinaria a gostar de Woody Allen, que ele não compreende, mas tem receio de confessar sua incompreensão nas rodas de bar.

Eu o convenceria a terminar a leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Falaria da beleza das ruas de Praga e do silêncio de algumas catedrais de Berlim.

Reproduziria o som de flauta que faz o vento quando preenche e arrepia as paredes de pedra das vielas antigas de Belfast.

Eu o ensinaria a conversar com Deus.

Talvez...

Talvez...

Pensando bem, eu não lhe diria nada.

Deixaria que vivesse tudo outra vez, cometesse erros e acertos seguindo seus instintos e caráter trazidos na marmita.

E que se concedesse a oportunidade de reinterpretar tudo o que viveria.

E que se moldasse e se reinventasse ao ritmo do tambor do tempo sem nenhuma interferência externa.

É bem provável que esse homem - que agora se revê num documento caducado e carcomido pelas traças - se tornasse mais liberto, mais leve, quase pleno.

Um homem que representasse melhor o jovem da fotografia.

Friday, June 17, 2022

Presente de turco


(Para o Jailton, que partiu)



O que é o Orkut?

Ou, melhor, o que foi o Orkut?

Explico para a filha adolescente, que tenta me educar sobre o TikTok.

Ela franze as sobrancelhas com a minha rasa explicação.

- Invenção turca? Pai do Facebook?  Como assim?

Conto que fui arrastado para lá. 

E de lá para o Facebook, onde agonizo nos dias de hoje.

Para as minhas filhas, o Facebook é coisa de um passado distante, ambiente frequentado por pessoas defasadas e decadentes como eu.

- Tem coisa muito melhor, pai!

Elas tentam me atrair para uma nova cilada, mas aviso que, para o TikTok, eu não vou nem amarrado. Estou muito velho para mostrar o ‘corpitcho’ e não sei fazer dancinhas.

E fim de papo.

Redes sociais: terá existido vida antes delas?

Um pouco antes dessa conversa com Clarice, eu tentava achar uma explicação para o fato de ter aberto obscuros perfis no Twitter e no Instagram.

Não decolaram. Tenho menos seguidores do que dedos.

Para que servem essas redes invisíveis e seus seguidores? – pergunto ao que me resta de discernimento.

E os influencers?

Para que servem esses ‘profissionais’? 

Onde estudaram para exercer esse ofício tão importante e lucrativo dos dias de hoje?

Influenciadores... Quem diria?!

Naquilo que eu crescia - na segunda metade do século passado -, Papai orientava para eu tomar cuidado com as influências.

Foi tudo em vão.

Li em algum lugar que amigo de Facebook é como dinheiro de Banco Imobiliário: não serve para nada.

Não é bem assim. Mas que o Facebook é uma espécie de xangrilá, isso é. 

A plataforma de Mark Zuckerberg é um aquário transparente, onde a gente vê – como um menino que romantiza o doce do outro lado da vitrine da padaria – uma legião de pessoas felizes participando de um comercial de margarina.

Mas como toda regra tem exceção, já saí desesperado, tentando socorrer - via telefonia - algum náufrago pedindo socorro. 

Num destes episódios, quase me afoguei junto. C’est la vie!

Inflamado pela lembrança da frase, abro o Facebook e vou direto à lista de amigos. Vou disposto a fazer uma faxina e jogar na lata de lixo todas as pessoas com quem jamais troquei uma palavra.

Observo que dezenas de moças com a idade das minhas filhas me pediram em “amizade” e eu aceitei.

Ôxi! 

Apago uma por uma.

“É cilada, Pedro”, diria o Bino de Carga Pesada.

Apago o perfil de uma moça que posa ao lado de um carro importado.

E outra mais, em trajes menores.

- Como essa morena veio parar aqui, meu Deus? Está quase nua...

Mais de uma dúzia de indianos e tailandeses vão para o saco.

- E esse russo aqui? O cara está com um fuzil Kalashnikov!

Eu e a minha mania de aceitar a todos, indiscriminadamente. Mas algo parece ter mudado em mim nesse exato momento.

Deleto pelo menos cinco dúzias de perfis de sujeitos fazendo “arminha”. 

- “Deus acima de todos e fazendo arminha?” - Haja paciência!

Pow!

Ao todo, apaguei mais de 900 perfis, baseado em critérios que não sei dizer. Parei com a faxina, porque notei que mais de 30 pessoas, com quem realmente interagi ou conheci pessoalmente, já não estão mais aqui.

E não me refiro ao Facebook.

O último a sair da linha do tempo foi o Jailton Pereira, um flamenguista que adorava Pat Metheny e estava desgostoso com a situação do Brasil, e que vi pela última vez numa livraria no Rio de Janeiro em 2019.

Foi levado por um infarto fulminante. O coração se cansou de bater em vão.

Ele se foi, mas persiste aqui, em meu peito, como o querido Marcus Mourão Pontes, outro que não atualizou mais a sua Timeline. 

Marquinho foi mais que um amigo. 

Fomos juntos ao show de celebração dos 25 anos da Atlantic Records, no Madison Square Garden. Vimos, naquela noite, a reunião do Led Zeppelin e, noutras noites e dias, tantas outras noites e dias, compartilhamos coisas bonitas que ficaram e ficarão. 

Sinto muita falta dele.

Assim como sinto do Roniton, o eterno Neném, um conterrâneo com quem dividi um porão na Hensler Street, e de quem ainda carrego na orelha esquerda, o par do brinco com que ele foi enterrado.

Tem gente que não morre nunca.

Aqui, dentro desta carcaça carcomida pelo tempo, corre o Geraldo Corredor da Paz, de quem joguei as cinzas em sete praias de New Jersey no mês passado.

Nesse minifúndio de lembranças e saudades, Vander Lee ainda dedilha os primeiros acordes de Esperando Aviões.

Moraes Moreira canta Preta Pretinha.

É onde eu escuto a respiração do poeta Wander Porto, um cara muito boa praça que não cheguei a ver e para quem fiquei devendo um abraço.

A lista é grande e decidi que não apago mais o nome de ninguém. Vão ficar aqui para sempre.

Se Deus quiser, ele que me ‘hackeie’. 

Ou aperte a tecla delete.


Tuesday, May 17, 2022

O bebê de Brasília



Deve ter passado muito frio, o recém-nascido.

Deve ter sentido falta da água morna do aquário da barriga de sua mãe.

Consigo imaginá-lo naquela posição em que ficam os bebês antes de nascer, dormindo de conchinha, inocente, sem imaginar que lá fora existem países em guerra e homens vendendo a alma.

Dormiu para sempre, sonhando com anjos tocando harpa e lírios derramando ouro.

Dormiu como se escutasse um minueto e seus olhinhos fechados enxergassem Jesus.

Naquela rua, naquele momento, passaram táxis vazios e ônibus à procura de uma plataforma na estação rodoviária.

Passaram sujeitos apressados buscando trabalho ou descanso. Circularam junkies sob o efeito de álcool e drogas, transeuntes olhando para trás como se fugissem da escuridão da noite - e seus ardis -.

Como se fugissem das próprias sombras.

Por ali passou o medo em passos de ganso.

Passou a desesperança com a sirene ligada.

Passou uma nação em transe, delirante, ensandecida sob o efeito da ganância e da falência de caráter daqueles que a conduzem.

Transitou um Brasil dormente.

Um Brasil doente, canibal de si mesmo, soprando um samba de Adoniram numa flauta feita a partir de um fêmur desovado.

Passaram ambulâncias carregando doentes e automóveis importados levando novos ricos e playboys desajustados.

Passou uma mulher pedindo esmola, levando ao colo uma menina que não teve a mesma sina que ele, apesar da sorte tão parecida.

Passaram, também, a fome, a miséria e a injusta distribuição.

Passou a violência aniquiladora, escancarada no olhar das pessoas.

Passaram 522 anos de uma história cheia de nódoas e metas não atingidas.

Passou um país que não se cumpriu.

O bebê desta crônica não conhecerá as letras do alfabeto ou um poema de Cora Coralina.

Não aprenderá a falar ou caminhar em direção ao futuro.

Não sentirá a falta de um abraço de mãe ou escutará um conselho de avó.

Não verá os flamboyants sangrando no coração das primaveras, nem distinguirá o roxo dos ipês e o vermelho das rosas no canteiro das praças.

Não nadará em um riacho, nem sentirá o orvalho da grama molhada sob os pés descalços.

Não testemunhará a mudança das luas ou das estações; nem jogará futebol com outras crianças.

Mas também não se entristecerá com a classe dominante, aquela que aniquila fria e impunemente o amanhã de gerações inteiras.

Ele não ouvirá falar de negociatas escusas e nem terá o coração quebrado por algum amor de juventude.

Foi abandonado em um ponto de ônibus, como se fizesse parte de uma indesejada ninhada de gatos.

Ficou ali, tremendo de frio, na desesperança de que alguém passasse e se enchesse de compaixão, dando a essa tragédia urbana um final feliz.

Ah, menino de Brasília, a visão de seu corpinho dentro de uma caixa de papelão deveria aguçar o sentimento de culpa e fracasso de toda a humanidade.

Mas estamos preocupados demais com o vencimento de nossas promissórias e com a escolha do próximo colégio de nossos filhos nem sempre atentos.

Falhamos!

E você sucumbiu, desamparado, desnutrido e sozinho, conhecendo em suas primeiras e derradeiras horas, o quanto é bruto o coração dos homens.

Ao final desta crônica, é até provável que apareça alguém dizendo que 'foi melhor assim'.

 

Monday, April 4, 2022

A última corrida de Geraldo Corredor



(Para o Geraldo, que dividiu comigo estradas e maçãs)



 Conheci o Geraldo Carlos pessoalmente em 1989. Não me recordo exatamente em que situação.
Eu já sabia dele, atleta respeitado em Governador Valadares, vencedor de corridas importantes no interior de Minas Gerais.
Dono de sete fôlegos, Geraldo tinha asas nos pés.

Como Mercúrio,
Veio para os Estados Unidos na década de 1980 atrás do sonho de ganhar a Maratona de Nova York, mas foi desistindo do esporte, aos pouquinhos.

Parou para tomar um fôlego às margens do rio Passaic e fez dali a sua morada itinerante.

Nenhum lugar foi tão dele quanto Newark.

De vez em quando pegava uma carona para a Flórida e ficava uma temporada por lá.

Massachusetts também foi, muitas vezes, a sua casa. 

Connecticut não teve a mesma sorte.

Disse-me, um dia, ter tido um amor na Califórnia, onde ele desejava voltar.

Infelizmente, porém, alguns sonhos não se concretizam. A vida dá e tira de nós desejos e vontades.

Geraldo era marinheiro, índio americano, Abraham Lincoln, judeu com uma estrela loura de Davi esculpida no topo do cocuruto e, como tais, ele se vestia.

Geraldo era muitos. Tantos Geraldos.

Todos eles muito condecorados, com medalhas e bottons balançando presos ao peito.

Frequentou ruas e palácios, apertou a mão de presidentes, autoridades religiosas, estrelas da música e da televisão. E foi mais popular do que muitos deles,

Do Brasil ele não falava muito, como se quisesse esquecer alguma coisa acontecida por lá.

Distante das pistas de atletismo, nunca parou de correr.

Correu para fazer favores.

Correu entregando jornais.

Correu pelas crianças do mundo.
Pelos mortos de fome do planeta.
Pelos injustiçados sociais, como ele.

Pelos velhos no inverno de suas vidas.

Pela vida cada vez mais mirrada, encolhendo na história pessoal de cada um de nós.
Correu por aqueles que não nasceram em berço de ouro e tiveram que se arrastar pelas ruas deste mundo, como se fossem répteis em corpo de gente.

Correu pelos bichos e criaturas que sempre estiveram à sombra dos homens e do dinheiro.

Correu pelas almas mais puras.
Pelo fim da violência, da qual foi tantas vezes vitimado.
Correu pela paz, que ele incorporou ao nome com aquele inglês de imigrante que não teve acesso à escola, bem ao pé da letra:
"Geraldo, The Peace Runner".

A vida foi dura com ele, não deixemos que o inapagável sorriso nos engane. 

Escrevo este texto enquanto Geraldo repousa num quarto de hospital, respirando com a ajuda de aparelhos, preparando-se para aquela que será a sua última corrida.

Os respiradores serão desligados amanhã, dia 5 de abril de 2022. Como não poderia deixar de ser, seus órgãos serão doados para pessoas necessitadas de um transplante. Geraldo Corredor continuará vivo no corpo de outras pessoas, num derradeiro gesto de generosidade e compaixão.

A faixa da chegada se aproxima para ele e, onde muitos de nós leriam a palavra "Fim", pode-se ler, finalmente, Paz.

 

Tuesday, March 8, 2022

O velho olhando o mar


(Para o Libinha)


É duro conviver com a degradação do corpo.

A lentidão dos movimentos.
A dor nas articulações.
A erosão da pele refletida no espelho quando vai fazer a barba.
A urina no chão.

A exacerbada dificuldade de amarrar os sapatos, que fez com que ele começasse a usar mocassins, que sempre detestou.
"É só enfiar o pé, como na vida", recita para uma plateia vazia.
Os filhos se foram e agora são só ele e ela, mais de sessenta anos depois. 

De vez em quando recebe a visita dos descendentes e é como se começasse o carnaval de Olinda num lugar muito distante de Pernambuco. 

Ele, que gosta de Mozart, Verdi e Puccini, e que murmura as cantilenas que entoava o seu pai, no tempo em que era menino. 

O pai -  que o deixou cedo demais -, fez com que ele fosse viver com um tio e costurasse um vazio ao bolso da camisa. 

Quando não se recorda de trechos das 'cantigas de não ninar' do seu pai, improvisa e preenche com palavras sem sentido.

E ri da falta de graça.

A varanda de frente para o Atlântico foi uma conquista que comprou a prestação, na planta, quando a cidade ainda era um segredo bem guardado.

Vai arrastando lembranças e culpas pelo apartamento como um prisioneiro que carrega uma bola de ferro atada ao tornozelo.

“A vida pesa.”


Atravessa o enorme corredor - que fica cada vez mais comprido - e sente a carga do acúmulo dos dias
Leva a sombra cambaleante para ver o mar que lambe as areias, onde a vizinha do prédio ao lado escreve com um ancinho, todas as manhãs, a saudação "bom dia".  

Protegido pela vidraça blindex, ele se senta na cadeira de cana-da-Índia e olha para a linha do horizonte tentando enxergar o portal de xangrilá, que nunca existiu, nem existirá...

E reafirma para si mesmo que a terra em que pisamos - onde ele jura ter visto um casal de refugiados haitianos copulando por volta do meio dia, no terraço do edifício adjacente, refletindo a pele cromada no absurdo do sol - é Sodoma e Gomorra.

"Sempre será."


Funcionário aposentado do Banco Brasil, ele faz todos os dias uma conta que não fecha.

Acompanha com o olhar o cargueiro levando petróleo em estado bruto, talvez, para o Uruguai.
Testemunha o transatlântico apinhado de turistas italianos, presumidamente bebendo champanhe no convés.

"La vita è bella! Prosecco para as massas.", decreta.

Sente súbita solidariedade com os garis que retiram algas e garrafas de matéria plástica com seus uniformes alaranjados, preparando a praia para os banhistas de amanhã.

"A vida é bruta."

E a dor é éter.

Emociona-se com a visão de uma estrela cadente se apagando no horizonte, feito uma brasa encarnada que se dilui numa bacia de água suja.

"A vida é tão rara", Lenine canta no rádio.


Passa por ele a lembrança do inverno na serra catarinense.
A alegria do nascimento do primeiro filho, uma menina.
A pancada do primeiro infarto dentro do box enfumaçado do banheiro, o zunido que ficou, como acontece quando o avião descende da altura de cruzeiro e a pressão tapa momentaneamente o buraco dos ouvidos.

Pensa na coleção de discos de ópera e na filha que mora no estrangeiro.

Acompanha a passagem de uma gaivota levando no bico a imagem de um gol de Mengálvio, que ele viu no Maracanã durante os doze meses que morou no Rio.
Pensa no choque que sentia, moço do interior, quando via as putas e travestis da Lapa em seu trattoir aos finais da tarde.

E no batuque que vinha do terreiro de umbanda a caminho do quartel.
A memória junta resíduos e acácias, que ele encosta em um canto do cérebro, na esperança de que algum vento os leve dali, deixando para trás somente o que lhe for perfume.

Começa a adormecer, a cabeça pesando, o queixo tocando a base do peito, como se o sono aliviasse as dores e dissipasse a certeza da morte, que um dia chegará.

Sonha momentaneamente com ilhas paradisíacas e chora com a imagem de policiais de coturnos pesados, pisando raivosos nas areias do balneário.

No instante seguinte, sorri de olhos fechados com a imagem do rosto de Pelé aos dezessete anos.
Franze a testa com uma lembrança inconclusa de sua mãe, que partiu ainda mais cedo que o pai.

Sente frio. O frio que sentem os órfãos.

E tudo vira breu.

Acorda escutando a voz do bisneto pedindo paçoca para a empregada na cozinha.

Sente-se liberto.

De súbito.

Um frevo de Capiba começa a tocar no seu coração.

É carnaval no sul do Brasil.

Tuesday, January 4, 2022

Patolino

(Para a Bebel)


Minha filha Bebel tem uma coisa com o número 11. Ela nasceu às 11:11 da noite do dia 27 de outubro de 2001. Tão logo descobriu o significado da palavra numerologia, encafifou-se.

Recentemente, ela fez uma tatuagem com esse número. Trata-se de um discreto desenho em seu braço direito, a uns cinco centímetros do punho.

Onze, dois pontos, onze.

No teto do seu quarto, bem na direção do travesseiro em que ela repousa a cabeça, tem uma frase escrita com caneta azul. Quando abre os olhos, todas as manhãs, ela pode ler:

11:11: The Hour of Power.

Se é o momento da força, eu não sei. 

Todas as vezes que eu olho o relógio e os ponteiros indicam que são onze e onze, eu me lembro dela.

E me lembro, também, de mim, e da estranha relação que tenho com o número 22.

- "22 é o dobro do número do seu 'número de estimação', digo sempre para minha filha.

Ela ri.

O que isso quer dizer?

Talvez nada, mas foi o meu número de soldado do exército brasileiro e na chamada da sala de aula nas escolas de Governador Valadares, ainda menino.

Vira e mexe, o nome e o número se reencontram.

E nada acontece.

Estiveram no passaporte e em mais de um cartão de crédito. E em outras situações.

No bingo, eu nunca ganhei com o 22.  Aliás, nunca ganhei.

Na loteria, sempre jogo o 22 e não ganhei absolutamente nada, além da certeza de que a loteria é uma arapuca de pegar bobo.


De superstição em superstição eu e minha filha vamos levando a vida. Tenho certeza de que não estamos sozinhos nesse barco furado, mas algo parece ter mudado. 

Eu, que há mais de 40 anos só uso cueca amarela na passagem do ano - sem receber o benefício do dinheiro abundante no novo ciclo -, resolvi chutar o pau da barraca e acabar com a tradição.

Aliás, prometi me libertar de vez de todas as mandingas.

Superstições?

Nunca mais!

No último dia 31 eu não comi 12 uvas, nem lentilhas. 

A roupa não era branca e a cueca - uma brincadeira de minhas filhas -, era mais colorida que um tambor do Olodum, com a estampa do Patolino bem no meio da bunda. 

Não saí por aí caçando uma praia para dar sete pulinhos.

Dispensei as três sementes de romã,

Nem fiz pedidos desoriginais em bilhetinhos de punho próprio para jogar ao vento.

Não que eu não queira emagrecer 5 quilos e não deseje que o Cruzeiro volte à primeira divisão, é claro que não.

Que não deseje o fim da pandemia.

Da carestia.

Da necessidade das pessoas entrarem na fila do osso, para escapar da fome.

E de muito mais.

Para completar o pacote anti-reveillon, fui dormir cedinho, após me empanturrar de ceviche num restaurante de Newark.

Não vi, nem ouvi, a queima dos fogos. Nem desejei feliz ano novo a ninguém. 

Morfeu não apareceu nos meus sonhos para brindar com champanhe e ainda tive um pesadelo com um imbecil andando de jet ski.

Normal.

Aterrissei em 2022 na mesma hora de sempre, tomei meu café-com leite e torrada e fiquei olhando os cachorros correndo no frio do quintal.

E aí o número 22 atravessou a paisagem, num galope.

Será que esse é o ano em que eu ganharei, finalmente, no bingo e na loteria?

Ou será que é o ano da minha morte?

Bati  três vezes na madeira da mesa.

Sai pra lá, assombração.

Vem 'nimim', 2022!

Friday, October 1, 2021

Um fado para Isabella

(Para a Bebel, que alçou voo)


Hoje eu entendo as lágrimas daquele abraço que deixou a minha camisa molhada. Era 8 de abril de 1984 e nos despedíamos na plataforma de número 8 da estação rodoviária de Governador Valadares.
Seu Antônio soluçava agarrado a mim como se não quisesse me soltar. Eu tinha 21 anos e foi a primeira vez o que vi chorar.
O ônibus da Gontijo me levou a Belo Horizonte, onde eu embarcaria no aeroporto da Pampulha para o Galeão. O destino final seria Nova York, de onde eu nunca mais voltei de vez.
E esse era o medo de papai. Que eu ficasse, para sempre, longe dos seus braços.
Que não estivesse mais ao alcance dos seus olhos vigilantes.
De debaixo de suas asas.
Naquele momento eu não me dei conta do seu sentir.
Ele sempre foi um pai muito presente, e eu via nele uma espécie de super-herói, anjo da guarda, fortaleza intransponível em cujos braços eu me tornava protegido das mazelas e maldades deste mundo.
Mas era chegada a hora de alçar o voo solo e tentar achar o meu lugar no mundo.
Quase 40 anos depois - e já não o tendo por perto para abraçar e fazer essa confissão -, emociono-me com a lembrança do calor do seu corpo naquele dia de abril.
Somente na semana passada eu pude entender a dor que ele sentiu.
Era madrugada de quarta para quinta-feira quando liguei o carro sob um céu absurdamente azul, como se nada de relevante tivesse acontecido na véspera.
Algumas horas antes, o devastador furacão Ida deixou um rastro de destruição e tristeza por toda Nova Jersey, uma tragédia que também nos afetou.
Mas precisávamos sair. O voo solo de Isabella urgia.
Pegamos a estrada e fui dirigindo até Chicago, a 1333 quilômetros de casa.
No banco de trás ela viajava, levando na mudança os sonhos de juventude. Ela, que começará a cursar o segundo ano de cinema na DePaul University a partir da próxima semana.
A cada quilômetro viajado ia passando um filme diante dos meus olhos, uma película que começou a ser rodada no dia do seu nascimento e culminou ali, dentro de um Toyota, onde ela agora dormia serenamente, confiando a vida nas mãos daquele motorista.
Apesar de muitos falhanços, eu sei que me esforcei.
Se formos levar em conta que todo filho tem na figura paterna a de um herói, eu me encho de empáfia para me assumir – vá lá! - quase um Batman (já que estamos indo para Chicago).
Se meu pai foi um super-homem, eu terei sido um homem-morcego decadente, fora do peso e desprovido de superpoderes.
Um não-herói sem capa ou espada, que passa as tardes de domingo bebendo cerveja e assistindo futebol na televisão.
Um homem que sabe que, em muitos momentos, deu até mais do que podia dar, mas certamente muito menos do que Isabella merecia.
Um sujeito que distribuiu charutos quando ela nasceu.
Que a levou e buscou tantas vezes na escola.
Que sentiu orgulho quando a viu pela primeira vez num balé.
Que a levava aos treinos e jogos de futebol.
Que tentou fazer com que nada lhe faltasse.
Que cozinhou para ela todos os dias.
Que sempre a olhou com o mesmo olhar de zelo e contemplação daquele 27 de outubro de 2001, quando nasceu.
E que jamais tentou interferir nas suas escolhas, mesmo quando não as aprovou.
Tomado por tantas lembranças, chegamos à Cidade dos Ventos.
Levamos as suas coisas para o quarto no moderno prédio de Lincoln Park, um dos bairros mais seguros da cidade.
Ela ficou com a mãe arrumando as coisas em seus devidos lugares, enquanto eu fui para o hotel contabilizar as dores e rascunhar a vida depois daquele momento.
No dia seguinte fizemos as compras de supermercado, o suficiente para uma família de quatro pessoas durante dois meses. Depois seguimos para Pilsen, bairro latino conhecido por seus murais de grafite.
Após o jantar, levei-a ao alojamento onde ela iria viver a partir daquela noite. Fazia-se tarde e eu tinha que pegar a estrada de volta às cinco da manhã.
Eu vi pelo retrovisor quando ela entrou pela porta de vidro do alojamento da universidade. Por um breve instante desejei que a grande vidraça fosse da espessura da parede de um abrigo nuclear.
E que protegesse a minha filha dos ventos cortantes de Chicago e do frio dos invernos que ainda hão de vir.
E afastasse dela todas as pessoas e pensamentos ruins. Todos os medos do fracasso.
Dentro do carro, ainda parado em fila dupla, eu vi quando ela retirou momentaneamente a máscara anticovid e abriu aquele sorriso que iluminou a rua.
Acenou com as mãos que eu lhe dei, num adeus que desejei que fosse um até breve.
De volta pro hotel eu solucei a noite inteira e acordei com uma inexplicável sensação de orfandade invertida.
A viagem de volta a New Jersey foi a mais longa de toda a vida.
Dentro do peito floresceu a lembrança de meu pai no dia que eu vim embora.