Friday, October 1, 2021

Um fado para Isabella

(Para a Bebel, que alçou voo)


Hoje eu entendo as lágrimas daquele abraço que deixou a minha camisa molhada. Era 8 de abril de 1984 e nos despedíamos na plataforma de número 8 da estação rodoviária de Governador Valadares.
Seu Antônio soluçava agarrado a mim como se não quisesse me soltar. Eu tinha 21 anos e foi a primeira vez o que vi chorar.
O ônibus da Gontijo me levou a Belo Horizonte, onde eu embarcaria no aeroporto da Pampulha para o Galeão. O destino final seria Nova York, de onde eu nunca mais voltei de vez.
E esse era o medo de papai. Que eu ficasse, para sempre, longe dos seus braços.
Que não estivesse mais ao alcance dos seus olhos vigilantes.
De debaixo de suas asas.
Naquele momento eu não me dei conta do seu sentir.
Ele sempre foi um pai muito presente, e eu via nele uma espécie de super-herói, anjo da guarda, fortaleza intransponível em cujos braços eu me tornava protegido das mazelas e maldades deste mundo.
Mas era chegada a hora de alçar o voo solo e tentar achar o meu lugar no mundo.
Quase 40 anos depois - e já não o tendo por perto para abraçar e fazer essa confissão -, emociono-me com a lembrança do calor do seu corpo naquele dia de abril.
Somente na semana passada eu pude entender a dor que ele sentiu.
Era madrugada de quarta para quinta-feira quando liguei o carro sob um céu absurdamente azul, como se nada de relevante tivesse acontecido na véspera.
Algumas horas antes, o devastador furacão Ida deixou um rastro de destruição e tristeza por toda Nova Jersey, uma tragédia que também nos afetou.
Mas precisávamos sair. O voo solo de Isabella urgia.
Pegamos a estrada e fui dirigindo até Chicago, a 1333 quilômetros de casa.
No banco de trás ela viajava, levando na mudança os sonhos de juventude. Ela, que começará a cursar o segundo ano de cinema na DePaul University a partir da próxima semana.
A cada quilômetro viajado ia passando um filme diante dos meus olhos, uma película que começou a ser rodada no dia do seu nascimento e culminou ali, dentro de um Toyota, onde ela agora dormia serenamente, confiando a vida nas mãos daquele motorista.
Apesar de muitos falhanços, eu sei que me esforcei.
Se formos levar em conta que todo filho tem na figura paterna a de um herói, eu me encho de empáfia para me assumir – vá lá! - quase um Batman (já que estamos indo para Chicago).
Se meu pai foi um super-homem, eu terei sido um homem-morcego decadente, fora do peso e desprovido de superpoderes.
Um não-herói sem capa ou espada, que passa as tardes de domingo bebendo cerveja e assistindo futebol na televisão.
Um homem que sabe que, em muitos momentos, deu até mais do que podia dar, mas certamente muito menos do que Isabella merecia.
Um sujeito que distribuiu charutos quando ela nasceu.
Que a levou e buscou tantas vezes na escola.
Que sentiu orgulho quando a viu pela primeira vez num balé.
Que a levava aos treinos e jogos de futebol.
Que tentou fazer com que nada lhe faltasse.
Que cozinhou para ela todos os dias.
Que sempre a olhou com o mesmo olhar de zelo e contemplação daquele 27 de outubro de 2001, quando nasceu.
E que jamais tentou interferir nas suas escolhas, mesmo quando não as aprovou.
Tomado por tantas lembranças, chegamos à Cidade dos Ventos.
Levamos as suas coisas para o quarto no moderno prédio de Lincoln Park, um dos bairros mais seguros da cidade.
Ela ficou com a mãe arrumando as coisas em seus devidos lugares, enquanto eu fui para o hotel contabilizar as dores e rascunhar a vida depois daquele momento.
No dia seguinte fizemos as compras de supermercado, o suficiente para uma família de quatro pessoas durante dois meses. Depois seguimos para Pilsen, bairro latino conhecido por seus murais de grafite.
Após o jantar, levei-a ao alojamento onde ela iria viver a partir daquela noite. Fazia-se tarde e eu tinha que pegar a estrada de volta às cinco da manhã.
Eu vi pelo retrovisor quando ela entrou pela porta de vidro do alojamento da universidade. Por um breve instante desejei que a grande vidraça fosse da espessura da parede de um abrigo nuclear.
E que protegesse a minha filha dos ventos cortantes de Chicago e do frio dos invernos que ainda hão de vir.
E afastasse dela todas as pessoas e pensamentos ruins. Todos os medos do fracasso.
Dentro do carro, ainda parado em fila dupla, eu vi quando ela retirou momentaneamente a máscara anticovid e abriu aquele sorriso que iluminou a rua.
Acenou com as mãos que eu lhe dei, num adeus que desejei que fosse um até breve.
De volta pro hotel eu solucei a noite inteira e acordei com uma inexplicável sensação de orfandade invertida.
A viagem de volta a New Jersey foi a mais longa de toda a vida.
Dentro do peito floresceu a lembrança de meu pai no dia que eu vim embora.

No comments: