Friday, February 27, 2015

Pastéis de Vento



Sempre gostei de pagar a conta do restaurante. Às vezes me levanto, vou ao banheiro, passo pelo garçom e deixo o cartão de crédito. Noutras vezes combino com o empregado de mesa antes de nos sentarmos, e ele informa a todos que a conta já havia sido paga por um bom samaritano.
No dia seguinte, volto ao local e acerto. Já aconteceu muitas vezes.


No outro dia, conversando com meu pai, descobri como surgiu este comportamento, algo que Freud ou Pink Floyd podem perfeitamente explicar.

O ano é 1968 e a família Lima reside em Conceição do Capim, quase na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo.

Meu pai é um policial militar e é obrigado a viver como cigano, mudando-se de comarca até três vezes por ano, pulando de lugarejo em lugarejo, como se sua família fosse a troupe de um circo mambembe.
Conselheiro Pena, Baguari, Tumiritinga, Aimorés, Mantena, Itueta, Açucena, Pedra Corrida - onde nasci -, e Resplendor, onde morreu Carlos Antônio, o primogênio.
Carlos Antonio tinha três anos quando morreu nos braços de meu pai, na traseira de um jipe, a caminho do hospital da cidade, onde clinicava o doutor Manoel, uma lenda da medicina em todo o leste do estado.
O médico era impecável, dedicadíssimo, deixou seguidores e uma das melhores reputações que um profissional da medicina poderia ter. A adoração a ele era tanta, que era confundido com milagreiros, curandeiros, homens com poderes especiais. Mesmo assim ele não conseguiu salvar meu irmão.


Carlos Antônio morreu de meningite e gastroenterite.  A doença o abateu em três dias, deixando a família desolada, restando-lhes a pobreza e um menino de um ano, também com gastroenterite.
Doutor Manoel conseguiria me resgatar e aquela criança esquálida, de olheiras profundas, passou a ser o bem maior daquele casal que tinha tão pouco.
Como se não bastasse, envolvi-me em várias trapalhadas perigosas durante a infância.


Aos quatro anos despenquei de uma pinguela a caminho de uma pescaria e fui salvo de afogamento por uma amiga da família.
Numa outra ocasião, caí da ponte com meu pai, fechados por um caminhão e jogados lá em baixo, no meio das pedras.  O soldado ia ao guidão da bicicleta e levava seu inseparável menino na garupa, o que rendeu a ambos várias escoriações.

Pouco tempo depois eu engoliria uma bala de revolver calibre 38.
Depois de beber purgante, no terceiro dia, a bala sairia por vias naturais, sob os aplausos de todos, que corriam para o banheiro a cada vez que minha barriga doía.

O pior episódio, porém, foi um atropelamento em que fui arrastado por uma rural; as costas ficaram lanhadas, os braços e pernas esfarrapados. Tudo diante dos olhos impotentes de minha mãe, de quem eu me desprendera para correr atrás de um carrinho de picolé.
A tudo isto eu sobrevivi.  E meus pais tinham muito medo de que eu, assim como Carlos Antonio, os deixasse. Eu fui muito mimado por isto.

Naquele final dos anos mil novecentos e sessenta, o governo de Minas Gerais vivia uma grave crise financeira e os funcionários do estado tinham que conviver com enormes atrasos. Dono de boa reputação, papai comprava fiado na venda de Seu Zoíl e no Bar de Raulino, onde eu era autorizado a pegar o que quisesse.
Eu pedia “paspel de vento” e “goraná” todo santo dia. Com o passar do tempo, levava os amiguinhos da rua e Raulino nos servia sem torcer o bigode.
Num daqueles hiatos, meu pai ficou seis meses sem salário. Quando chegou o mirrado pagamento, ele passou na mercearia e no bar para saldar suas dívidas.


Com Seu Zoíl tudo saiu dentro do esperado, mas quando chegou ao bar, quase caiu de costas. A conta era astronômica.
Confrontado, Raulino argumentou que meu pai havia recomendado que me fosse servido tudo o que eu quisesse.  Ele só não esperava que eu levasse todos os meninos da rua para o lanche, às vezes um time inteiro de futebol mirim.
Seu Antonio não teve como arcar com aquele prejuízo imediatamente e só saldaria a dívida após vender uma penteadeira, um rádio de pilha, uma cômoda e uma garrucha de dois canos, herança de seu avô. 
Com o dinheiro rateado ele pagou a conta e cortou o meu crédito.
A partir dali, pastéis de vento e guaraná, só com a sua presença.
E ainda hoje, toda vez que vou pagar uma conta de restaurante, lembro-me de meu velho.  Lembro-me com um sorriso de canto de boca, sorriso meio acanhado, sorriso de quem não aprendeu a lição.


* Foto de Juliana Vinagre



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