Thursday, December 27, 2012

Eu entendo, porque também sou mãe



Eu entendo a sua dor porque também sou mãe.
Assim como você, eu sou aquela que esperou com ansiedade a chegada deste filho que encheu a casa de felicidade quando nasceu.
Se ele foi o primeiro, se foi o único, pouco importa.
Para uma mãe todos os filhos são únicos, todos são o primeiro, todos são iguais no amor que ela sente desde o primeiro momento.
Uma mãe começa a amar o filho antes mesmo de sua chegada, no que o guarda dentro da barriga e por ele espera.

E eu o guardei e desejei que nada lhe faltasse, que nada (nunca!) lhe doesse, que nada lhe afligisse desde que respirou fora de mim pela primeira vez.
E eu o amamentei até que ele não precisasse mais.

Estive com ele em suas noites de febre, trocava suas fraldas, saciava fome e sede e o acompanhei enquanto ele crescia.
Caía a noite e eu ficava olhando para aquele menino bonito, a face inocente descansando de nadas, e desejando que ele tivesse um sono tranqüilo, cheio de sonhos leves.
Eu implorava para que ventos ligeiros levassem para longe eventuais pesadelos.

Vi quando ele deu os primeiros passos e quando perdeu o primeiro dentinho.
Ainda guardo na memória cada pedacinho nosso, a imagem no porta-retratos, o sorriso ingênuo, o olhar de ave, o cabelinho de nuvem.
Eu estive sempre com o meu menino.
(E gostaria de ter estado mais, mesmo depois que ele cresceu.)

Eu quis para ele futuros brilhantes, tão maiores e melhores que o meu.
Quis que ele salvasse vidas como um médico, que educasse o mundo como professor, que fosse piloto de avião, artista ou atleta de profissão.
Que ele fosse o que escolhesse ser. Acima de tudo, que ele fosse feliz.
Portanto, eu sou aquela que não sabe onde errou e que preferia que tudo fosse de outra maneira.
Eu sou a mãe daquele menino que se tornou rapaz e se perdeu de mim.

E é por isto que entendo a sua dor de mãe que teve a trajetória do seu filho interrompida pelo meu.
Aquele meu menino que foi adotado pelo crime e que hoje chama a violência de senhora.
Sou a mãe do pivete que lhe assalta fumado de crack e que coloca a sua história de cidadão a um clique de revólver, a sua vida por um triz.

Sou a mãe do homem-bomba que entra num mercado e leva dezenas de inocentes com ele, sabe lá Deus para onde.
Sou a mãe do sequestrador que lhe priva dos seus, daquele que pede resgate e que talvez nem devolva o que não lhe pertence, o que nunca lhe pertenceu...
Eu sou a mãe de Mark Chapman, aquele jovem que matou John Lennon e roubou do mundo a luminosidade de novas canções de paz.
Apareço como genitora na certidão de nascimento de Charles Manson.
Osama Bin Laden me chama de mãe.
Meu DNA está em Hitler, em Franco, em Gaddafi e Sadam Hussein.
Está nos policiais dos grupos de extermínio da Baixada Fluminense e nos estropiados do Talibã.
Está nas artérias de George Bush, nos cabelos de Manuel Noriega e na arcada dentária de um outro tirano qualquer.
Meu filho é aquele que entra no cinema vestido de Batman e abre fogo contra inocentes, filhos de outras mulheres como você.

Eu sou a mãe de todos estes meninos enlouquecidos que se armam até os dentes e promovem carnificinas nos Colombines e Realengos desta vida.
Portanto, pode chorar nos meus ombros que eu entendo a sua dor, minha senhora.
Entendo, porque também sou mãe.
E porque toda vez que um filho meu mata o seu, eu morro um pouquinho junto com os dois.



Monday, December 24, 2012

Deus me Proteja de Mim


(Letra de Chico César; Melodia de Dominguinhos)
 
Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa.
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim
Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa.
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim

Caminho se conhece andando
Então vez em quando é bom se perder
Perdido fica perguntando
Vai só procurando
E acha sem saber
Perigo é se encontrar perdido
Deixar sem ter sido
Não olhar, não ver
Bom mesmo é ter sexto sentido
Sair distraído espalhar bem-querer
 
 
Feliz Natal a todos.
Que Deus proteja todos vocês.
 
 

Tuesday, December 18, 2012

Pais e filhos, o sim e o não


 
Será que dizemos a palavra não o suficiente aos nossos filhos?
Será que explicamos às nossas crianças o exato significado deste advérbio tão essencial às nossas vidas?
Porque o não - saibam os senhores e senhoras - é tão importante quanto o sim.
E não é apenas o seu oposto.
Sem o não, o sim não faria sentido.
Sem o não, o sim seria uma espécie de - vá lá ! - amígdala, e conseguiríamos muito bem viver sem ele.
E sem o sim, o não seria um elefante branco.
Eles se complementam.
Muito mais que Batman e Robin, o sim e o não são Quixote e Sancho Pança.
Com a agravante de que os nossos moinhos de vento cotidianos são reais.
Portanto, tenham a certeza: não existe um único sim dentro de um não.
Quem pensa assim é aquele que trucida, que dita, que se impõe contra a vontade do outro, aquele que está completamente enganado, e que mesmo assim se faz prevalecer pela força.

O estuprador acredita que existe um sim dentro do não.
O ditador, também.
E o não é uma daquelas palavras de significado único.

Não corra.
Não mate.
Não morra
.
Não pise na grama.
Não pise no seu semelhante.
Não pise na bola.
E os exemplos não deveriam parar por aqui.
Não importa que me vejam como um homem antiquado, careta, um pai à moda antiga.
Muito mais do que retomar as rédeas da criação de meus filhos, entendo que é preciso restabelecer limites.
Afinal, o limite é o que nos dá segurança.
Ele é aquela área fronteiriça que indica o fim da terra firme e anuncia o abismo que pode ser o fim de tudo.
Eu, que tentei o máximo que pude ser um rebelde sem causa, afirmo - sem sombra de dúvida - que adoraria ser um pai como aquele que foi o meu.
Bastava a sua presença para eu me sentir protegido.
Um conselho seu me fortificava e esclarecia.
Seu bom exemplo foi uma influência benigna, no homem que eu me tornaria.
E é por isto que acho que precisamos voltar a falar de valores que estavam esquecidos no fundo das gavetas da modernidade.
Precisamos ressuscitar verbos que caíram no desuso.
Precisamos ensinar aos nossos filhos a respeitarem os mais velhos.
Precisamos apresentá-los aos livros, dosando em suas vidas a presença dos videogames, da internet e das redes sociais.
Estamos permitindo que figuras do esporte, estrelas da musica e da televisão se tornem as influências maiores na vida de nossos filhos.

Passivos, nós os entupimos de videogames - muitos deles violentos, admitamos – para que eles nos deixem em paz para as nossas coisas do cotidiano.
Fazemos isto para que possamos ler um livro, ver um filme ou assistir uma partida de futebol na televisão.
Nós somos capazes de deixá-los sós pelos cantos da casa, apenas para que não tenhamos que nos ocupar com eles.
Damos dinheiro para que comprem o que bem querem, sem mostrar a eles o real valor das coisas.
Confundimos presentes com presença.
O que me faz perguntar:
Será que estragamos os nossos filhos com facilidades e facilitações?
Será que os mimamos em excesso e os educamos de menos?
Será que os confundimos? E que nos confundimos junto?
Será que os iludimos? E nos iludimos junto?
Será que projetamos neles expectativas tão grandes, tão maiores do que as que fomos capazes de criar e cumprir ao longo de nossas medíocres trajetórias?
São muitas as perguntas. E poucas as respostas.

Dentro de minha consciência desaba uma tempestade de dúvidas, mas cada guarda-chuva que eu abro, traz na ponta um novo ponto de interrogação.

 
** Cronica dedicada aos querubins da escola Sandy Hook, em Newtown-CT, assassinados friamente por um rapaz que poderia ser meu próprio filho.
 
 

Sunday, December 16, 2012

Para os curumins da escola Sandy Hook, em Newtown-CT


Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova:
Uma estrela bem nova
Na luminária da mata
Força que vem e renova


Beija-Flor de amor me leva
Como o vento levou a folha
Minha Mamãe soberana
Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra
Brilhas também lá na praia


Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos
Estrela d'Água me molha
Tudo que ama e chora
Some na curva do rio
Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia


Tem a água
tem a água
tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta
tem a luz do coração
Bem-querer!!!


* Essa canção é o nome de um curumim do povo Kampa e é dedicada também a todos os curumins de todas as raças do mundo

Tuesday, December 11, 2012

Atenção, silêncio!


 
 
Para meu amigo Zé Andrade*, guardião do panteão brasileiro


Eu me iniciei nos mistérios da Sétima Arte no Cine Poeira lá em São Raimundo. Como tantos meninos de minha geração beijei Greta, Marlene, Marylin, Sophia e Raquel Welch, deusas que amei com as mãos.
Nos momentos pós sessão eu saía apaixonado pelas protagonistas e tão encarnado em seus pares românticos que, dependendo do filme, eu me achava complexo e profundo como Marlon Brando, sofisticada como Roger Moore, bravo como John Wayne, duro como Clint Eastwood ou belo como James Dean.
Mal saía do cinema e já era um rebelde sem causa, um poderoso chefão a um passo da eternidade, um herói de capa e espada, Lawrence da Arábia que ia para casa à pé.
Mais entrado na vida flertaria com a novidade baiana Glauber Rocha e as coisas que me encantavam vindas da Europa.
Era fã de Fellini, de Antonioni, Rossellini, Fassbinder e François Truffaut.
Depois descobriria Wim Wenders, Copolla, David Lynch e Allan Parker, que fez Coração Satânico e O Selvagem da Motocicleta, meus dois filmes favoritos de todos os tempos.
No Brasil de meus primeiros anos o cinema nacional se resumia a chanchadas e uma ou outra pérola esparsa.
Até os livros densos de Nelson Rodrigues viravam chanchada naquele Brasil.
Tivemos estórias magníficas que se perderam nas nossas precariedades tecnológicas e na mordaça da censura de um país que não ia pra frente, como tentavam nos fazer crer aqueles senhores que nos enfiavam suas botas militares garganta abaixo.
Felizmente os tempos mudaram – nos mudando junto - e o país vem produzindo um cinema cada vez melhor.
De Central do Brasil para cá, entramos numa dimensão internacional, criando peças relevantes, bem feitas, e que podem fazer frente a trabalhos desenvolvidos em qualquer outra parte do mundo.
Este é o Brasil de A Grande Arte e de Cidade de Deus.
Estamos revelando diretores, atores e atrizes, roteiristas e temos excelentes motes à mão. Não falta o que retratar ao cinema nacional.
E é pensando nisto que resolvi dar uma “mãozinha” aos realizadores da Sétima Arte no Brasil.
Se vocês quiserem uma película de guerra, abundam estórias de glória e dor dos pracinhas brasileiros da FEB.
Poderia ser um filme ambientado na Itália e no Brasil, tendo Thiago Lacerda atormentado pelas ordens superiores de invadir o vilarejo de onde teriam vindo seu pais, agora imigrantes italianos na Mooca, em São Paulo.
O personagem de Thiago ainda teria parentes vivendo na região de Monte Castelo e se apaixonaria por uma camponesa italiana.
Pronto!
Está criado um romance em tempo de guerra, com todas a sua beleza e drama, culminando em deserção e fuga no porão de um navio da marinha mercante argentina.
Já imaginaram?
Se os cinéfilos quiserem um épico, eu lhes dou um épico.
Eu lhes dou Canudos com José de Abreu no papel de Antônio Conselheiro, ostentando a mesma barba de profeta cultivada em Avenida Brasil.
Dou-lhes a agonia de Portinari morrendo consumido por suas tintas.
Dou-lhes as formas de Tarsila e as cores de Caribé.
Dou-lhes as curvas de Niemeyer e os jardins futuristas de Burle Marx.
Dou-lhes o urbano Adoniran e os sertanejos Zé Coco e Patativa do Assaré.
Dou-lhes crimes passionais de famosos, como os de Lindomar Castilho e Guilherme de Pádua.
Dou-lhes roteiros de ação como o do roubo do Banco Central de Fortaleza, ou catástrofes do colarinho branco como o absurdo do mensalão e a história de PC Farias todo banhado de sangue.
Dou-lhes os últimos dias de Getúlio e o impeachment de Collor de Mello.
Dou-lhes Ângela e Leila Diniz, mulheres de lâmina e rosa.
Dou-lhes Elis.
Dou-lhes a boemia de Vinícius e todas as suas musas.
Dou-lhes Heitor Villa Lobos e Geraldo Vandré.
Dou-lhes a alegria de Chacrinha e a inocência de Grande Otelo.
Dou-lhes as tristezas de Garrincha.
E a melancolia de Dolores Duran.
Eu dou-lhes um samba de Cartola. E um solo de Jacob do Bandolim.
E dou-lhes Roberto Carlos e Antonio Carlos Jobim.
Dou-lhes, ainda, a inquietação colorida da Tropicália, o movimento modernista de 22, a Inconfidência Mineira e o Clube da Esquina.
Dou-lhes estórias de amor como as de Lampião e Maria Bonita, Jorge Amado e Zélia Gattai, Tomás Antônio Gonzaga e Marília de Dirceu.
Dou-lhes roteiros subversivos e de final infeliz como os de Carlos Lamarca e Vladimir Herzog.
Dou-lhes a história e as estórias do Pasquim, com as pérolas de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Henfil e Redi.
Leminski daria um grande filme. Clarice daria outro.
O Encontro Marcado, de Sabino, poderia ser readaptado para um tempo mais recente.
Grande Sertão Veredas traria Lima Duarte, Jackson Antunes, José Mayer e Rolando Boldrin em papéis relevantes.
Santos Dumont decolaria num 14 Bis e o voo 3054 da TAM seria o nosso Titanic.
Ayrton Senna sucumbiria numa curva, levando um país inteiro a bordo de seu cockpit.
Pelé sonharia, menino em Três Corações, com mais de mil gols.
E os nossos cineastas, com mais de mil ideias na cabeça e uma câmera na mão, sairiam por aí gritando em alto e bom som:
Atenção, silêncio.
Câmera, ação!



* Foto com Paulo Autran em cena do longa-metragem "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha

** Zé Andrade (a quem dedico esta crônica) é um artista plástico baiano sensacional, criador de uma série imperdível com ícones brasileiros e algumas excessões internacionais.
Quem quiser conhecer melhor o seu trabalho basta acessar www.zeandrade.com

Monday, December 10, 2012

Corremos Dentro dos Corpos



Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram.
Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares.
As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas.
Como sangue, existimos dentro dos gestos.
As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos.
E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos.
O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado.
Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto,
in 'Antídoto'


.

Tuesday, December 4, 2012

Uma casa sem portas ou janelas

 

Neste momento em que o Brasil mergulha prazerosamente no filme De Pai Para Filho - que conta a história turbulenta da convivência de Luiz Gonzaga e seu filho Gonzaguinha -, passa outro filme em minha cabeça (e em meu coração).
E este outro filme remonta ao ano 1988 e eu estou em minha casa, quase almoçando, quando um amigo que produzia o show de Gonzaguinha em New Jersey telefonou, apavorado:

   - Estou com um pepino na mão. Peguei o Gonzaguinha ontem no aeroporto, mas ele é seco de corte. Já tentei de tudo quanto é jeito entabular uma conversa com ele, mas o cara é uma casa sem portas ou janelas.

Fiquei animado com a possibilidade de conhecer o ídolo, mas bastante receoso.
Afinal, sabia de dezenas de estórias a respeito de um dos meus compositores favoritos da MPB.
E todas elas falavam de um cara interessantíssimo, mas de difícil trato.
Genioso, introvertido, politizado, inteligente e absurdamente “seco” com as pessoas, o que diziam ser resultado de sua difícil relação com o pai, ninguém menos que o Rei do Baião.
Noves fora nada, Gonzaguinha ainda ficava incomodado com o assédio dos fãs.

Para ilustrar o seu ponto, meu amigo contou que no dia anterior estiveram em uma loja da Rua 46 e Gonzaguinha espinafrou o gerente, que pediu para tirar uma foto com ele.
A polaroid seria para colocar na “parede da fama”, que continha fotografias de todas as personalidades brasileiras que passaram por lá.
Gonzaguinha teria permitido a foto, mas apenas depois de desconcertar o gerente com uma cátedra sobre uso de imagem e suas indevidas ramificações.
    - Você vai vender mais eletrônicos com a minha fotografia na sua parede e eu ganho o que? - teria dito o compositor de tantas canções que me marcaram.


Corajoso, eu fui ao encontro.
E eles me esperavam numa mesa ao fundo do Scorpio’s, em Elizabeth.
Fomos apresentados e a empatia foi imediata.
Gonzaguinha havia abdicado do cavanhaque, usava agora um bigodão que se esparramava até o queixo.
No braço, um relógio do tamanho de um despertador e as mangas da camisa arregaçadas, como nas capas de seus discos.
Pedimos uma cerveja, duas, três.
Pedimos tantas, que não me lembro mais quantas. E as dele ele deixava esquentando sobre a mesa, antes de começar a bebê-las, devidamente mornas.
    - Quem bebe cerveja estupidamente gelada – como num comercial de TV que havia no Brasil no final dos setenta – só pode ser estúpido, dizia ele.
Ao que eu, diplomaticamente, respondia:
    - Quente? Só sopa e mulher.
E ele ria de mim.


Falamos de tudo.
Futebol, política, família, mulheres bonitas, culturas diferentes, morro de São Carlos, morro da Orelha (em São Raimundo) e sei lá mais quantos assuntos de tantos outros morros. Tudo, menos música.
Já estávamos naquela prosa havia pelo menos sete horas, quando dei uma vacilada e disse que gostava muito de suas canções, e em especial de uma delas, que quase me fazia chorar.
Levei uma descompostura imediata do astro, que deixou claro que era desnecessário bajulá-lo, e que “aquilo” era um desatino meu.
Tremi.
Eu havia dado vinte litros de leite e um coice no balde.


Vendo a cara de tacho e desapontamento, ele resolveu me dar uma segunda chance, perguntando que canção era aquela que "quase me fazia chorar".
Deu um branco na hora.
Pode ter sido a cerveja. Ou a força do coice.
 
- Eu não me lembro, Gonzaga.
- Vê? E eu achando você um cara legal. Você chega e me ganha, depois estraga tudo dizendo que é meu fã e não sabe sequer o nome da tal música que quase te faz chorar.

Olhei pra ele, cheio de brios, e retruquei:

- Me esqueci do nome da música, mas eu sei cantá-la.
E ele, desafiante:
- Sabe? Então canta ela pra mim.
Tomei um gole de cerveja, pigarreei para limpar a goela e comecei a gaguejar, timidamente:

Hoje eu sei, eu aprendi que a festa e a solidão
Andam juntas, dançam juntas, no mesmo salão
Se acarinham, amam, brincam num só coração
Num só coração
Meu coração/ Meu coração/ Meu coração
Meu grande coração
(...)


Gonzaguinha me tomou a canção, emocionado e continuou a cantá-la, os dois homens de olhos marejados, um momento genuíno acontecendo ali:

Um terreiro embandeirado, foguetes, fogueira,
Lua, lindo céu lavado, delírio, roleira,
Fim de brasa, sombra a cinza, é borra, é prata
Cola, gruda, permanece no chão da sapata
No chão da sapata/ Chão da sapata/ Chão da sapata
Chão da minha sapata
(...)

Quando Gonzaguinha terminou de cantar eu estava completamente à mercê da beleza daquele momento.
E ele também.
O compositor me deu um abraço afetuoso e sussurrou, com a cabeça pousada em meu ombro:
- O nome desta música é Festa e Solidão. Nunca mais se esqueça disto.

E eu nunca mais me esqueci.






Monday, December 3, 2012

Porque hoje eu estaria em Cuba

 
... e não estou.
ao invés disto, eu me vejo atracado a um texto que era para ser uma crônica e virou um conto.
Depois de ter virado conto, o bendito cismou que não cabia ali, e que queria ser outra coisa.
"Os dez segredos de Ernesto Lynch" está se transformando em uma outra criatura que ainda não sei o que é, e isto está me consumindo lentamente, pelas beiradas, como haveria de ser.
Sei que ele pode ser o meu presente de aniversário de cinquenta anos.
Mas pode ser também o meu fim, pequeno tormento que já é.
 
Enquanto isto, um pedaço da minha alma bebe mojitos na Bodeguita del Medio, sonha com os letreiros luminosos de Miami, passeia de mãos dados com uma mulher-fantasma no Malecón e molha os pés turistas nas águas mornas de Varadero.
É muito estranha esta sensação que me consome, porque o título nasceu antes do resto e, antes de ir adiante, preciso descobrir, primeiro, os "dez segredos" de Ernesto.
Em suma: tô fodido.

Não paro de escutar o Buena vista Social Club, e a voz de Compay Segundo fica zanzando dentro de meus tímpanos, soprando as brasas de um caos de bolso.

Chan Chan

De Alto Cedro voy para Macané
Luego a Cueto voy para Mayarí

El cariño que te tengo
Yo no lo puedo negar
Se me sale la babita
Yo no lo puedo evitar

Cuando Juanica y Chan Chan
En el mar cernían arena
Como sacudía el \'jibe\'
A Chan Chan le daba pena

Limpia el camino de pajas
Que yo me quiero sentar
En aquel tronco que veo
Y así no puedo llegar

De Alto Cedro voy para Macané
Luego a Cueto voy para Mayar


.

Saturday, December 1, 2012

Leia o livro, veja o video




Os amantes, em geral,
passam noites inteiras
inquietos e ansiosos
- também eu.
 
Os amantes, em geral,
choram sobre as cartas,
dão telefonemas aflitos
- como eu.
 
Os amantes, em geral,
passam horas figurando
o corpo amado,
curvas, gestos, preferências
- como eu.
 
Os amantes em geral,
são patetas, maus estetas,
fazem versos ruins
e se chamam poetas
- como eu.
 
 
Affonso Romano de Santana
 
 
 
PS: Canção ressuscitada após ler o poema "Os amantes" de Bispo Filho em: http://bispofilho.blogspot.com/