Friday, March 15, 2013

Pintando na tela da noite


Durante muito tempo tive o costume de avaliar o dia quando me deitava para dormir.
Ë desnecessário dizer que muitas vezes perdi o sono, dependendo de uma ação errada minha, ou de alguém para comigo.
Perdoar é uma dádiva.
E não ser dadivoso com alguém pode pesar tanto quanto não o terem sido consigo.
De uma forma ou de outra, as consequências são sempre cruéis. Exercitar o perdão deveria ser uma obrigação. E não uma opção.
E foi assim que o perdão foi, muitas vezes, o meu calcanhar de aquiles, motivo de grande frustração.
Preciso aprender a perdoar e a exercitar um monte de outras virtudes, que deveriam fazer parte da cartilha de toda pessoa do bem.
Mas eu falava do costume de avaliar as ações ao fim de cada dia, hábito que deixei de praticar.
Tão logo me deitava, projetava uma tela no teto do quarto e esmiuçava as últimas 24 horas com o compenetramento de um legista que dissecasse um cadáver:
Fui ríspido com alguém? Sim ou não?
Recordo que abri a porta para uma senhora bem velhinha no correio - ora bolas! - e que comprei ingressos para um show que só vai acontecer daqui a seis meses.
Estarei vivo até lá?
Morrerei?
De que morrerei eu?
Ficarei doente no dia?
Darei os ingressos antecipadamente a algum amigo?
Hoje fiquei triste porque meu time perdeu. Ou, fiquei feliz demais com a vitória de meu time.
Não deu os 15% de gorjeta ao garçom. Mas sorri para uma criança na rua.
Não, eu não disse eu te amo a quem de direito. E nem fui afetuoso o suficiente com quem merece mais e melhor de mim.
Reconheço que fui rude nesta e naquela situação. E que mostrei o dedo médio - sim, aquele infame dedo médio! - a alguém no trânsito.
Passei uma luz amarela? Andei acima do limite de velocidade?
Sim, eu fui gentil com alguém. Fui atencioso. Fui dócil e doce.
Mas fiz que não vi um antigo desafeto na rua, apesar de ele ter me cumprimentado com cara de quem queria fazer as pazes.
Dei dinheiro a um veterano de guerra, que esperava no frio por pessoas de coração generoso.
Mesmo não possuindo coração tão generoso assim, enfiei a mão no bolso e colaborei. E dei de bom grado, que se registre. Mas ainda preciso amolecer mais o meu coração, eu sei.
No trabalho, a crônica não saiu boa. Agredi a gramática com erros grotescos cometidos por pura desatenção.
Ou, não, pois hoje a crônica saiu dentro dos conformes.
Exagerei no chope? No macarrão e no açúcar? Extrapolei no uísque?
Prolonguei o horário do almoço jogando conversa fora no restaurante?
Deixei de retornar um telefonema? Deixei de retornar vários telefonemas?
Não respondi ao e-mail de fulano ou fulana?
Não fiz caminhada pela manhã?
Telefonei para Minas Gerais e disse à minha mãe da saudade que sinto dela e de todos que me são caros? Há quantas semanas não ligo para Minas Gerais, deixando a impressão de que não sinto saudades de ninguém? Nem de pai, nem de mãe, nem de amigos...
Deixei de ir a este ou aquele lugar?
Adiei para o futuro esta ou aquela ação? E por aí a fora...
Era assim que tratava de buscar soluções para situações cotidianas antes da chegada do sono, que tanto tardava quanto falhava.
Dependendo do tamanho da encrenca ou da dúvida, o sono me dava um WO e eu ficava ali, rolando de um lado para o outro, penitenciando-me por este ou aquele pecado, independente de seu calibre ou teor.
O medo de me tornar um zumbi e não conseguir mais -  nunca mais ! - dormir nesta vida, fez com que eu interrompesse o hábito de pesar os prós e os contras do meu dia, adiando para o futuro a possibilidade de me tornar uma pessoa melhor.


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20 comments:

Tania regina Contreiras said...


Não, não: na hora de dormir: dormir! :-) Se danar a pensar, viro, sim, zumbi. E o perdão, amigo, é uma das coisas mais difíceis dessa vida. Mas faz a bem a gente, sobretudo.

Beijos, mano, querido.

mム尺goん said...

então...

eu puxo fiapos de sonhos....

mudo cenários, mudo tb todas as cores nas paredes sem quartos .real(idade )nessas horas pra que??


abç

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Essa crônica é uma das que mais gosto, sô!
Na tela do teto ficou na minha mente, imensamente.
Essa é daquelas que faz o cidadão pedir autógrafo, cronista que pinta com as tintas de Rubem e Renoir.
Tá no livro, né? Nos Meninos de San Remo!

Abração deste Darrama.

Unknown said...

querido amigo,
é este o teu jeito de escrever, o jeito-gente que nos aborda de mansinho, toca no ombro, inclina a boca sobre o ouvido e segreda: este és tu, pá! e, num estremecimento, nada mais aqui é o que foi. acaso conseguirei dormir esta noite?

abracílimo!

Primeira Pessoa said...

euriquíssimo,
a consciência é um trem medonho.
ela leva, numa mão, um ramo de flores do campo.
na outra, uma chibata tirada do couro do de um boi.

a consciência arde, tanto quanto perfuma.

abração do
r.

Primeira Pessoa said...

tá no livro não, da rama.
aliás, no livro, tem uma dedicada a vosmecê.
qual? num conto.
em outubro, lá no teatro atiaia, cê vê.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

margoh,
o poder de auto sugestão cura as pessoas.
o poder de pensar o bom, o limpo, o puro, faz-me sonhar com o dia em que os homens da terra resolvam exercitar as suas imaginações para o bem.

já pensou?
o mundo inteiro dormiria em paz.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

taninha,
preciso aprender a perdoar.
sou mesmo meio "tinhoso", já me disseram muitas vezes.
mas tenho vontade de melhorar.

beijão,
r.

Ira Buscacio said...

Sabe aquela garotinha que cansou de brincar com bonecas, pq descobriu o peito de galo do professor de natação e achou mt mais interessante? Sou eu, assim, namorando o primeira pessoa desde sempre, encanto a distância, tímidas olhadinhas, sem coragem de enfrentar a piscina, mas hoje resolvi participar da aula. E que aula!
Perdão! Perdão! Perdão! Eis um sentimento “impertencível “ao homem, mas como tentar é uma atividade que nos permite sensações de existências, ainda que todos nossos burricos se afoguem em águas de bosta, pq não teimar esse perdão. Vai que um dia alguém consegue.
Bj

cirandeira said...
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cirandeira said...

Tela e texto em imagens contrastantes onde sonho e realidade se mesclam numa tentativa de transformação: a eterna busca do ser humano!

beijos, Roberto

Primeira Pessoa said...

Ira,
sempre te vi aqui, entre os meus. Ali, naquela cadeira, aquela ali, ó... entre o Assis Freitas e o Eurico Portugal.
E que cê ficava caladinha.
Que bom que resolveu verbalizar.
Agora cê não para mais.

Beijão,
R.

Primeira Pessoa said...

cirandeira,
na minha opinião, tentar é a metade do caminho.
fico feliz de te ver por aqui.

beijão do
r.

Vais said...

Ei, Roberto,
saudações moço
o troço fica martelando num sem fim e de noite é ainda mais agoniante quando tudo está quieto e às vezes fechar os olhos é pior porque o troço toma uma dimensão ainda maior, então ficam aqueles olhos arregalados grudados em qualquer ponto até que o sono chegue.
e assim, o perdão ou as desculpas(palavra/sentido que uso mais aqui com as meninas), às vezes é tão fácil dizer desculpe ou perdão depois que a coisa já foi feita e este pedido só teria realmente uma validade se o que foi feito não se repetisse o que às vezes gera a não aceitação do pedido, tipo não quero seu perdão/desculpas pois de nada adianta, e tem também os casos onde se sente que não há a obrigação do pedido aí os motivos são tantos, vergonha, orgulho, arrogância... e sei lá, é assunto que rende

me vi tanto, tanto mais tanto neste seu texto

grande abraço e tudo de bom pra você e para querid@s

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Inda bem que outubro tá longe mas tá perto...
Desde já agradeço: docê só espero coisa boa... o resto eu perdoo: tipo vir ao Brasil uma vez só por ano...

Abração.

Unknown said...

agora eu só deito pra dormir com rivotril, rs,rs


abraço

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
meu doutor não é tão generoso quando o seu, ou o de romério rômulo.
meu reino por um rivotril.

abração,
r.

Primeira Pessoa said...

outubro ta chegando,
da rama...
e vai ser uma festa pra emoldurar e pregar na parede.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

vais,
se você se vê vestindo a minha pele eu já não me sinto mais sozinho.
ou eu me tornarei um zumbi :-)

beijão do
roberto.

Tatiana said...

Putz, Roberto, esse confessionário noturno é dos mais satânicos! Sempre que eu saio de reunião de condomínio grudo os óio no teto e fico com a sensação de que a humanidade não vale um ovo. E não consigo me perdoar.
Abraço!