Tuesday, January 8, 2019

Eu respirei em Istambul


Eu não estava muito interessado em estudar. 
Naqueles dias do início dos anos setenta, a escola era, para mim, uma oportunidade de socialização e lazer. 
Jogava bola com os meninos, apaixonava-me platonicamente pelas professoras e o dever de casa ficava para depois.
O sistema de ensino do Brasil daquele período consistia em quatro anos do curso primário, admissão, quatro anos de ginasial e três de colegial - ou científico -, que é como alguns chamavam o segundo grau. Depois viriam o vestibular e a universidade.
Após termos cumprido o curso primário, passávamos por uma espécie de purgatório, batizado de admissão.
Terá existido nesta vida algo mais inútil que a admissão? 
A admissão era o dente do siso do ensino brasileiro. Não servia para nada e ainda doía de vez em quando.
Felizmente, o ministério da Educação acabou com a admissão dois anos antes de eu começar a cursar o ginasial. Ainda bem. Mas dei com a cara na parede tão logo me matricularam no Ginásio Duque de Caxias. Não gostei do que vi, nem do que ouvi.
Português, matemática, educação moral e cívica, educação física, educação artística, geografia e história: o curso ginasial se resumia a essas matérias. 
Fui um aluno medíocre.
Naquilo que me dizia respeito, a matemática era complicada e a língua portuguesa ora seduzia, ora amaldiçoava.
A professora de história era uma pessoa triste, que semeava nuvens escuras. 
Ministrava aulas sinistras, sombrias, com o cheiro mofado das bibliotecas. E muito da dor que rescendia de um casamento infeliz.
Não demorou muito para eu entender que educação moral e cívica era uma imoralidade. 
Vivíamos uma ditadura militar e nos obrigavam, crianças quase inocentes, a entrar em fila para cantar o hino nacional.
Éramos patéticos meninos (e meninas) calçando congas fedorentos, cabelos cortados rente ao couro, enfiados em uniforme azul-marinho.
Quando chegava o dia 7 de setembro, desfilávamos de calças curtas para homens grisalhos com seus ombros salpicados de estrelas.
Rufavam bumbos, surdos, taróis e pratos. 
Batíamos o pé.
Seguíamos em passo de ganso, rumo a lugar nenhum.
Bandas marciais ventavam marchinhas ufanistas e outros absurdos pseudopatriotas.
Não sabíamos da barra pesada daqueles tempos. 
Nada sabíamos. 
Afinal, aquele era um país que 'ia para a frente'.
Tempos milagrosos, em que Deus, cidadão brasileiro, operava milagres verde-amarelos. 
Tempos em que o presidente da república mandava até na escalação da seleção de futebol.
Tempos de Dario Peito de Aço e do AI-5.
Tempos de Sérgio Paranhos Fleury e de vidas desperdiçadas nos porões da ditadura.
De bom nos meus quatro anos de ginásio, ficaram as aulas de geografia e a atenção de Cely Domingues de Carvalho, a segunda numa linhagem de professoras que ainda hoje educam e ajudam a preparar as crianças de Governador Valadares para o futuro.
Foi com a tia Cely que aprendi onde ficam Istambul, Zagreb e Nairóbi, três esquisitices minhas. 
Em suas aulas, o imaginário florescia à medida que eu ia tomando gosto pela matéria.
Ela nos emprestava asas, e eu podia amanhecer tomando um chá em Londres, ou terminar o dia sob as luzes deslumbrantes de Paris.
Com ela, fui para lá de de Marrakesh.
Aprendi que a Holanda é repleta de diques e que gôndolas românticas cruzam os canais de Veneza.
Graças à tia Cely eu poderia comer, em Zurique, um pedaço de queijo suíço todo furadinho como uma fotografia da lua. 
E tive a certeza de que a seleção de João Saldanha jogaria a final da Copa do mundo no Estádio Azteca, na cidade que tinha o mesmo nome do país do qual era a capital.
Aprendi ainda onde ficava a Transilvânia - terra do conde Drácula - e que na friorenta Escócia ficava o lago Ness, que abrigava um monstro jamais capturado.
Esta semana, tanto tempo depois, fiquei sabendo que a tia Cely viajou para um lugar de onde jamais havia falado em suas aulas. 

O Céu - que é para onde vão aqueles que semeiam o bem - ainda não foi incorporado ao mapa-múndi.

8 comments:

flor de lótus said...

Este texto lindo transportou-me pra a minha infância e juventude, também por cá, em Portugal se vivia numa ditadura, e praticamente em tudo o que descreve eu me identifico, ainda que em outros lugares e com outras personagens. Adoro todas as suas crónicas.

Primeira Pessoa said...

Seu olhar, lusitano e generoso, é incentivo para eu continuar nesse artesanato de sentimento e verbo, Flor de Lótus.
Grande abraço.

Wellington said...

Viajei, fui longe, saudades, maravilha meu irmão!

marina jardim said...

eu não sabia de nada que estava acontecendo nesse mundão de meu DEUS, era criança muito pequena lá em rubim nos grotões de minas gerais. viajava demais nessas aulas...

elkepoetisa@gmail.com said...

Belíssima crônica.

Primeira Pessoa said...

Elke, poeta grande, suas palavras me validam.
Abraço grande,

R.

Primeira Pessoa said...

Marina, seus quadros são verdadeiras viagens na vida do povo do seu Vale. Sou suspeito, porque sou fã demais.
Abração,
R.

Primeira Pessoa said...

Gagau,
bons tempos, né? Semana passada o Bispo tava me lembrando de você reclamando das faltas sofridas nos jogos com o José Portilho. Rimos um tanto.
Saudades,
R.