Wednesday, May 5, 2010

..












Essas Mães Interioranas


Para minha mãe, Rute
Eu quis escrever um poema homenageando minha mãe.
E não só a minha. A intenção era homenagear todas as mães.
Mas o poema acabou não saindo, como não tem saído nenhum outro verso da fábrica inativa, que tem sido esse baleado coração.
Dona Marocas, dona Ercília, dona Dozinha, dona Filhinha, dona Lola, dona Esmeralda, dona Niquinha e dona Rute, a minha, eram, todas, maravilhosas.
Lembro-me claramente daquelas senhoras em meus primeiros anos em São Raimundo, lugar onde me criei.
Dona Cilinha cantava no coro da igreja.
Dona Marocas - mãe das moças mais bonitas - era sábia, dava conselhos, e não carregava nenhuma tristeza no olhar.
Dona Ercília ajudava os pobres.
Dona Dozinha estava sempre de mau humor.
Seu marido virou garimpeiro e foi viver no Pará.
Dona Lola freqüentava uma igreja de crentes.
Dona Niquinha cuidava do jardim.
Dona Vilma plantava hortaliças.
Dona Esmeralda chorava às escondidas.
Dona Filhinha mentia compulsivamente.
Dona Socorro fazia biscoitos.
Dona Ireni aprendeu a cortar cabelo.
Dona Isaura estudava à noite. De dia vendia laranjas no ponto final do ônibus.
Dona Maria era a melhor amiga de dona Conceição.
Que era esposa de Expedito, que era maquinista de trem.
Dona Laura, de tão elegante, parecia mulher da capital.
Quando ela andava pelas ruas deixava um cheiro de alfazema no ar.
Estava sempre assim, refrescada, pronta para o calor do inferno nas tardes de Governador Valadares.
Dona Ana era calada.
Dona Angélica alfabetizava meninos.
Dona Joana criava cabritos. Seu único filho morreu atropelado por um caminhão scânia vabis.
Dona Rita organizava a novena.
Dona Juraci cresceu senhora de terras, teve gado, era filha de doutor.
Envelheceu pobre e feliz, concubinada com um vaqueiro, ex-empregado de seu pai.
Dona Jandira teve filho prefeito, outro vagabundo e um outro meio artista.
Dona Lourdes era viúva.
Não teve a mesma sorte de dona Adelaide, que se casou pela segunda vez.
Dona Cássia foi abandonada pelo esposo.
Ela, que na juventude quis ser cantora e atriz, teve um filho que fugiu de casa e uma filha meretriz. Mudou-se para São Paulo e dela ninguém nunca mais ouviu.
Dona Selma lavava roupas para fora.
Assim como dona Auxiliadora e dona Idalina.
Dona Norma conversava com o vento, aprisionava passarinhos e fazia tricô na varanda da casa até escurecer.
Dona Teresa dançava catira.
Dona Ivonete sabia bordar.
Suas filhas eram costureiras.
Seu marido, alfaiate.
Dona Rute lidava com um garoto meio louco, que queria sobreviver das palavras que bebia do Rio.
Maravilhosas, aquelas mulheres.
Lindas, marcantes, cada uma do seu jeito. Como esquecê-las?
Com o avançar da idade elas acabaram virando outra coisa.
Se na infância eram nossas heroínas, com o passar dos anos viraram santas.
E, como tal, merecem que todo filho lhes construa um altar enfeitado com as flores do amor eterno e ponteada de oferendas feitas da mais profunda gratidão.
Tenhamos, ainda que momentaneamente, poderes papais.
Santificadas sejam, portanto, as nossas mães.
Santifiquemos.
Santificai.




Foto:
Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, exigindo informação sobre seus filhos seqüestrados pela ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983.

A Música Que Toca Sem Parar:
Gal Costa canta Mãe, da lavra de Caetano Veloso


Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visses não
Imensa solidão
Eu sou um Rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti

30 comments:

Anonymous said...

Lindo texto Roberto!
Bjs

Jorge Pimenta said...

POEMA À MÂE
No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro


Um baraço, Robertílimo!

nina rizzi said...

quando eu nasci a ditadura acabou.
quando lavínia nasceu a dita cuja, eu,
dui mais feliz.

e eu vi estas mães, tantos anos depois. a gente lá, aos montes, pedindo pra abrir os portões da casa rosada e nada. e elas lá, naquela hora, tão poucas, e o medo deles, e a força delas, e todo sésamo abre-lhes.

então aceito esse texto, tão lindo, tão poesia, a despeito de qualquer classificação pósrenanbauhausrrococó, tão meu também.

valeu demais. um beijo, camarada :)

líria porto said...

quando minha mãe fez 80 anos, escrevi-lhe:

evidente
líria porto

falar de amor a quem amamos é tão óbvio
que nos descuidamos

esquecemo-nos de perfumar os dias óbvios
oferecer as flores óbvias dizer o óbvio eu te amo
e fica tudo assim tão óbvio que amar
parece desamor

eu te amo te amo te amo
mãe

*

Tania regina Contreiras said...

Nossa, quase fiz coro com você complementando:
Dona Elisa, mulher de Adolfo e mãe de Zé,
Doda Isabel que criava gatos,
Dona Guduchinha que era casada com seu Pedro, que soldava panelas...

Hehehe... acudiu a mulherada toda da minha infância cá do meu interiozinho da Bahia. Viva e quase tangível essa sua homenagem, gostei.

abraços
T.

Marcantonio said...

Então:

O tempo cruel atualizou diariamente
a imagem dela,
como a me propor um inútil jogo da memória.
Mas ela me congelou menino.

Ela crê que os meus sonhos
ainda são remotos e perigosos.
Se pudesse ajeitá-los para mim
tal como arrumava
os brinquedos da minha desordem...

Há muito não me chama pelo nome,
como se este pudesse me levar para longe.
Apenas me reivindica: meu filho. Apenas.


Um abraço, Roberto.

Anonymous said...

Lindo texto, Érre...
Peguei carona nele e fiz minha homenagem silenciosa a muitas que passaram pela minha vida, e que nela ainda estão.
Mas vou te contar... Líria me fez chorar.
Tô me saindo uma mãe sentimental pra diabo.
Beijos
Diubs

Primeira Pessoa said...

fátima, brigadãoa você.
é bom tê-la aqui.

abs,
r.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo, esse poema do eugénio é dinamite.

aqui, depois deste poema, que cada um poste um poema tendo a mãe (as mães) como foco.

pode ser até numa homenagem torta, como essa do gênio.

abração, poeta bracarense!

r.

Primeira Pessoa said...

nina, ainda bem que existem os livros de história, para que esta não caia na vala comum do esquecimento.

e, ainda bem que existem mães.
mas, lavínia que louve a sua.

eu louvo a minha (rs)..
beijão do

roberto.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Delima,
Ontem minha mãe fez 75. Dona Eny, essa gigante de um metro e cinquenta, parecia uma criança dando colo pra mais de cem. Mãe é mesmo padecer num paraíso, e para isso é preciso ser santa.
Só faltou você, o menino Beto Lima, como nos velhos tempos (que não morrem nunca), poeta...
(E o Galo engasgou com peixe ontem...)

Abração,
Darrama.

Primeira Pessoa said...

lírica,
na bandeira de minas, euteamos, ainda que tardios.

minha relação com minha mãe foi sempre muito (muito) legal. enquanto meu pai (a quem amo muito, muitíssimo) fazia aquela pressãozinha básica pra eu procurar um trabalho, ela comprava pra mim, pra pagar em 12 prestações na finada mesbla, minha primeira máquina de escrever.

sim, eu queria ser escrevinhador.

esse é apenas um causo. entre milhares.

beijo procê. lindo poema.

r.

Primeira Pessoa said...

tânia,
reescreva esta cronica, então, so com as mães da sua rua. e, se faltar mãe, manda buscar na cidade vizinha...rs

essas senhoras são pura poesia.

beijão procê,
roberto.

Primeira Pessoa said...

marcantonio,
seu poema é um tiro certeiro. imagine você que quando vou a bh visitar meus pais...
eu, que saí de casa aos 18 anos de idade e já conto quase 48...
eu, boemio pra caramba...

eu, moço independente desde sempre...

eu, que quando chego à sua casa (do chope com os amigos) vejo a luz sempre acesa... 2, 3, 4, 5, 6 da manhã... pode ser a hora que for...

acredite-me: ela não dorme enquanto não chego em casa...


abraçao, poeta!
r.

Primeira Pessoa said...

ah, essa liria porto...
essa menina faz pedra suar...

ainda bem que choramos, né diubs?
ainda bem...

vontade do seu abraço, maninha.

beijão do
érre.

Primeira Pessoa said...

da rama,
eu falho e tardo. não necessariamente.
mas um dia destes levo (e entrego) um abraço meu pra sua mãe. lembro-me claramente (tá na palma do palato) do franguinho caipira da lavra dela... dos seus cabelos escuros... das suas sandálias (trem mais maluco eu me lembrar das sandálias de sua mãe)...
putz...
barranquei muito rango na sua casa, da rama... e era recebido com o carinho destinado aos filhos...

beijão pra ela. e procê também.

r.

Anonymous said...

Tava demorando já! rs

Ói seu moço, num é medo de tropa não viu? Aqui nóis mata a cobra e mostra o pau. Palavra de atleticano é lei!

Mas procê e pro Perrella, eu deixo a fábula do La Fontaine A raposa e as uvas ou no populacho "Quem desdenha quer comprar"!

Boa sorte aos celestinos na Libertadores!

Abração!
FT

Tais Luso de Carvalho said...

Ah... mas não precisa um poema, esta crônica está maravilhosa; além de homenagear a todas estas mães, acho que fica extensiva - a homenagem - a outras tantas. Delícia, cada uma com suas peculiaridades, até muito engraçadas.

Bjs
Tais Luso

nina rizzi said...

aff, mas é claro que ela que vai fazer odes pra mim. mas mãe é mãe em todo canto. eu não pego os gatinhos na rua porque ainda vão ser amamentados. é um sentimento compartilhado por quem é mãe, é uam condição, sendo assim, quando alguém homenageia sua mãe, todas outras se sentem tocadas também, senão não publicariam livros, enviavam cartinhas com alecrim debaixo dos travesseiros de suas mães.. rsrsrs...

um beijono coração da sua mãe.

ana p said...

Hoje só vim aqui protestar a tua ausência :)
Bj

Primeira Pessoa said...

ô magnólia,
tenho tido pouco tempo pra visitar os blogs dos amigos. confesso que estou em falta e me desculpo por isto.

prometo retomar as visitas ao blog, você sabe que sou um grande fã.

beijo grande procê.

r.

Primeira Pessoa said...

nina,
cê tem razão: mãe é mãe. e esse sentimento delas com os filhos é um trem bonito demais.
o propósito desta cronica é, exatamente, homenagear todas as mães.

bom demais tê-la visitando o blog.

abração do
r.

Primeira Pessoa said...

fouad,
vou repostar a cronica que escrevi sobre cruzeiro x estudiantes. saí de new york, o renato de sampa e nos encontramos em confins. de lá, passamos em amigo para um banho e seguimos pro mineirão. o resto da estória você ja deve imaginar.
renato braz é pé frio. palmeirense-cruzeirense? rs... isso não existe...
para um atleticano (rs), você é um cavalheiro. o único que conheci até aqui. tenho uma lista de atleticanos ilustres que se transformam, quando o papo é futebol.
falando sério, acho que o galo de kalil não tem um plantel à altura de sua tradição. ficam enganando a torcida (talvez a mais apaixonada do brasil) com esse discurso de que querem ferrar o galo, que estão roubando o galo...
você, inteligente, sabe que isso é cortina de fumaça.

admito, no entanto, que contra o santos o galo foi muito bem. mas no mineiro, não foi. fosse o campeonato por pontos corridos, o galo teria terminado em quarto, ou quinto... não sei exatamente...

e, o brasileirão, você sabe... pontos corridos...
o tempo é o senhor de todas as verdades.

abraçao do
roberto.

Primeira Pessoa said...

taís,
a intenção era esta mesmo: homenagear as mães.
fico feliz que tenha lhe agradado.

fico feliz em te ver por aqui.
abraçao do
roberto.

Anonymous said...

Roberto, quanta riqueza em apenas um post seu! É bom demais vim aki ler-te, camarada! A poesia em seu texto é tocante... Várias mulheres "comuns" que em sua descrição se tornam heroinas do dia-a-dia e passamos a percebê-las aki, em nossa rua. Elas estão em toda parte. Brilhante!
Quanto à música, dispensa comentário!
Obrigado pela excelente contribuição!
Abraços!!

Paulo Jorge Dumaresq said...

Roberto, agora você extrapolou as medidas.
Conseguiu me nocautear com esse texto devastador.
Putz, belíssimo.
Cara, essa música de Caetano interpretada pela Gal também é lasca.
A-d-o-r-o.
"Água viva" é meu disco de cabeceira, ao lado de "Minas", do Bituca.
Pegaste pesado, sô.
Um grande Dia das Mães, meu irmão.

Zélia Guardiano said...

Roberto
Com que sensibilidade soubeste homenagear as mães!
Obrigada!

Um grande abraço

Primeira Pessoa said...

zélia,
quem tem a agradecer, sou eu.
sua presença coloca sempre uma estrela na lona do céu daqui.

abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

paulo poeta,
água viva é um dos meus discos favoritos. aquela capa azul-piscina... ainda tremelica em minhas retinas... o sorriso enigmático do rosto de gal na capa...

temos gostos parecidos, poeta do potengi.

abração do roberto.

Primeira Pessoa said...

pablo,
riqueza mesmo é a presença de pessoas antenadas e sensíveis como você, postando aqui.

espero fazer por merecer uma volta sua ao blog.

abração do
roberto.