Friday, June 21, 2019

Calipígio


Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças, todas elas mortais.

Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só o incomodam quando a esposa aparece com algum tipo de restrição:
– Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valetudinário!
Valetudinário?
Ia consultar o dicionário – outra de suas muitas manias -, mas preferi o atalho, já que ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida.
Aprendi que um indivíduo valetudinário é um sujeito de saúde frágil.
– Olha que moça calipígia, disse ele no outro dia, apontando para a voluptuosa morena que atravessava a rua.
Nova consulta e descubro que calipígio é aquele ou aquela que possui belas nádegas.
Todas as manhãs, ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro. Quem estiver do lado de fora saberá qual dos Argemiros sairá por aquela porta.
Existem dois Argemiros: o sorumbático e o feliz.
Se quer saber o que significa sorumbático, pegunte a ele.
O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê o jornal do dia, sentado no trono.
Ele, que sabe tudo de ópera, canta árias inteiras e se alimenta de minuetos e réquiens.
O segundo Argemiro parece ter grudado chiclete na cruz de Cristo. Ele fica mudo durante o banho e dele nada se escuta, quando sai de lá.
Nessa versão, os olhos acinzentados o acompanham até a mesa do café.
Diante das frutas – que exige descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – , sentencia:
“Estou tão plúmbeo que tenho certeza de que minha alma é macambúzia. Ó maldita paúra. Meu banzo é indizível”.
Qualquer das expressões denota que ele não acordou do lado certo da cama.
Saudade de algo ou alguém ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.
Gosta de bons vinhos, champanhe e malte escocês.
À mesa não possui o mesmo requinte.
Se pudesse, comeria bife com batatas fritas em todas as refeições.
Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.
Argemiro é assim, um poço de contradições e manias.
É tão triste vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. 
Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas, se achar necessário.
Tem paranoia com agentes alfandegários e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas pode ser inspecionada no aeroporto.
Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido, mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada as suas cuecas e meias _que ele enrola e acondiciona artesanalmente_, causa-lhe fobias, profundo mal-estar, uma quase demência.
Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las. Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições.
Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas. Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas…
Argemiro precisaria de um novo cômodo na casa só para guardar  as suas coleções. 
Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha e passa dias inteiros organizando o acervo.
Usuário de tantos remédios, faz pouco esforço para obedecer aos conselhos médicos.
Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta.
E torce para o Coritiba Football Club.
Informado pelo doutor de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou que havia acabado de escolher, naquele instante, a epígrafe que iria mandar bordar na lápide:
– Argemiro parou de fumar!
E é isso mesmo.
Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai parar de fumar ou beber (ou de fazer qualquer outra coisa que lhe apeteça ou dê prazer) no dia em que pedir a conta e partir.

2 comments:

Dario B. said...


Felizmente (pelo que li), Argemiro não é um caso perdido, talvez até tenha uma longevidade invejável. Há várias moléstias mais graves cujos sintomas ele não apresenta. Talvez seja apolítico. Saúde e força, Miro, tamo junto.

Primeira Pessoa said...

Dario,
quase todos todos nós temos um bocadinho do Argemiro. No meu caso é um tantão bom. Fora a erudição e o número de mazelas, que fique claro. Sua presença aqui no blog é sempre uma panacéia.

Abraço amigo do

Roberto.