Monday, April 1, 2019

Fujona


Não tive um único bichinho de estimação na infância. Pedi, mas papai dizia que havia tantos vira latas na nossa rua, que eu não precisaria de um. Com tantos amigos para jogar futebol e nadar no rio, um cãozinho nem fez falta.
Adulto, aqui nos EUA, tive um gato que lutava karatê. 
Acho que é isso. Não entendo muito de artes marciais. 
Cookie dava uns saltos acrobáticos, inesperados, chutando o ar e caindo de pé, como se nada tivesse acontecido, saindo de cena com um ar arrogante, indiferente aos olhos de quem o visse. O felino tinha parte com Bruce Lee.
Volta e meia, ele perdia-se dentro do sofá-cama da sala. 
Como ele ia parar lá é um dos mistérios que não consegui desvendar. 
Sem saber sair do labirinto de molas em que havia se metido, miava a noite inteira, atrapalhando a minha frágil capacidade de dormir. Acabei me livrando dele, passando o problema para a frente.
Nunca mais ouvi falar do Cookie.
Quando me casei, concordei que a casa tivesse um mascote. Foi assim que Jade, uma sharpei da cor de chocolate aterrissou.
Jade fez de tudo para me ganhar.
Conseguiu. 
Logo eu, que não era e não sou 'cachorreiro'.
Dócil, ela passava a maior parte do tempo aos meus pés. 
Lambia minhas mãos, deitava-se com o corpo apoiado às pernas, fazia muita festa quando eu chegava em casa. Escrevi muitos textos com a parceria dela.
Quando morreu, de velhice, ela já tinha a companhia de Nina, outra sharpei.
Nina foi uma menina problemática, como contarei mais para o fim.
Naquela altura do campeonato eu já tinha três filhas e a casa parecia um zoológico:
Coelhos, peixes, calopsitas moraram ou ainda moram lá.
Há cerca de quatro anos ganhei do Peter Pantoliano uma cacatua branca, com um topete como o do Supla, da mesma espécie de Fred, fiel companheiro do ator Robert Blake, protagonista do extinto seriado Baretta.
Cockatoo (cacatua em inglês) não ganhou um nome. É como se fosse um cachorro chamado cachorro. Confesso que eu e ela nunca nos demos bem.
Ela é metódica, acorda invariavelmente às 6:30 da manhã e emite uns insuportáveis grunhidos de pterodáctilo que atormentam principalmente as manhãs de ressaca. 
Nos primeiros tempos, Cockatoo fugia constantemente da gaiola e destruía janelas e móveis com o apetite de um exército de cupins.
Jamais descobri como ela conseguia abrir a gaiola. 
Quis batiza-la de McGyver, sem sucesso. Tive que providenciar um cadeado.
No ano passado, sua última fuga, destruiu o estofamento de uma cadeira novinha em folha. Fiquei possesso.
Reuní todo mundo e anunciei:

- Deu para mim. É ele, ou eu.

Clarice, a caçula, deu uma risadinha e decretou:

- Pai, não se esqueça de telefonar de vez em quando.

Recolhi-me à minha insignificância.
Não bastasse Cockatoo, Isabella foi visitar um abrigo de cães abandonados pelos donos e se apaixonou por Hazel, uma viralatas com rabo de barbicacho e sobrancelhas de José Saramago, que estava no corredor da morte. 
Não aparecesse alguma alma caridosa para adotá-la, receberia uma injeção letal em três dias.
Resisti o quanto pude, mas recebi a promessa de melhores notas na escola, remoção do lixo, ajuda na louça do jantar.
Só a parte da melhora das notas foi cumprida.
A Hazel, que caiu nas graças de todos, parece ter sangue de tatu. Ela transformou o gramado do quintal e a horta que cuido com tanto esmero, numa fotografia da lua. 
Não ouso dizer ela ou eu. 
Pode ser que Clarice já não faça questão do telefonema.

Voltando a falar da Nina, é o típico caso  de cachorro fujão. Minha casa é a única da rua inteira que tem cercas de madeira ao seu redor. Mesmo assim, a danada fugia, aproveitando os descuidos da porta aberta durante a entrada das compras. 

O bairro inteiro conheceu a sua reputação e a solidária vizinhança fez muitos mutirões de caça e captura, nem sempre com sucesso.
Numa ocasião, ficou sumida durante dez dias e foi encontrada cheia de carrapatos pela 'carrocinha' da polícia de Livingston na fronteira com Roseland.
Mas Nina envelheceu, aquietou-se. 
Há dois anos, teve câncer numa pata traseira e sofreu uma amputação.
Na saída do hospital veterinário, deu-me uma grande lição de humildade e apreço. 
Ao contrário de nós, humanos, não demonstrou tristeza pela aparência decrépita; adaptou-se como pode à nova realidade e continuou povoando a nossa vida, sempre deitada à porta do quintal, imponente, guardando-nos com ares de quem contemplasse as tardes.
Na semana passada começou a ter dificuldades respiratórias. O raio X do hospital não detectou nenhuma anomalia, foi medicada, mas ela definhou.
Nessa manhã, voltou ao hospital para exames de ressonância magnética, pois os médicos-veterinários suspeitavam de um tumor que poderia ter causado inchaço no fígado, dificultando o movimento de abrir e fechar dos pulmões.
Cinco minutos após ter sido deixada sob os cuidados da enfermeira, o meu telefone tocou.
Ela não quis morrer diante dos olhos dos donos, o que diminuiu o impacto da dor que ficou.
Hoje, quando eu retornar do trabalho, sei que não serei saudado por seu latido barítono, o rabo incessante, balançando como um leque em dia de calor.
Nina, a cachorra fujona, fugiu pela última vez.

5 comments:

Luciana Marinho said...

Ah, Roberto, quando eles nos ganham é uma experiência amorosa que me deixa sem palavras... Meus olhos enchem quando me lembro da doçura de Querubim, da fidelidade... Um companheirão sem parelha!!

Dario B. said...


É triste, Roberto. Meu gato Nicolau também morreu de velhice tem uns dez dias. Apesar da ingratidão dele em ter passado cerca de dois anos sem aparecer em casa (coisa compreensível em um gato não castrado), sinto muita falta. Pensei a respeito e a minha decisão atual é não ter mais nenhum bicho de estimação. Acho que fico cada vez mais sentimental, com o passar do tempo.

Primeira Pessoa said...

Lu,
acompanhei o Querubim durante anos. Meu irmão tem 3 da mesma raça, sempre que os (as, todas mocinhas) via, me lembrava do Querubim. Imagino o tamanho do buraco que ficou, aqueles "orelhão", o olhar pidão.
Beijo grande,
R.

Primeira Pessoa said...

Dario, lendo você, começo a entender minha mãe, que jurou que, após a morte da Daphny (isso é lá nome de cachorro) não quer mais nenhum. Daphny é filha da filha de uma cachorra que mamãe levou praBH quando morou aqui nos EUA. Eu morro de pena. Da última vez que estive aí, quase apareci na casa com um beagle que vi na barraca de pets do mercado central, mas fiquei com medo de levar uma surra.
Saudades, amigo querido.
R.

ÍndigoHorizonte said...

Duele, duele mucho la pérdida de una mascota. Yo solo he tenido una verdaderamente mía: una golden llamada Lula. Lula ya tiene 13 años. Intento prepararme para el desenlace, que aún espero lejano, pero nunca estamos preparados para una última vez.

Abrazos y ánimo, Roberto.