Thursday, September 26, 2019

Os morcegos de Coimbra


Sofro de bronquite alérgica.
É sempre um calvário quando chega o mês de outubro ou entro em algum lugar antigo.

Outubro traz o outono nortenho nas Américas e com ele chegam a mudança nos boletins meteorológicos e no meu senso de humor.
No que a visão se acinzenta e o casaco sai do armário, inicia-se um processo que me remete a invejar a sina de algumas aves mais afortunadas, dessas que voam em bandos barulhentos para paisagens mornas quando o clima começa a virar.
O cheiro - e a mudança - do tempo me adoece. 
É fato.
Toda vez que entro em uma igreja antiga ou numa biblioteca cujo acervo abriga obras centenárias, recorro ao lenço bordado com as iniciais CRL, presente de minha mãe.
Eu tusso muito ao impacto do ácaro, um de meus tantos algozes na vida.
Ácaro, álcool, tabaco, insônia, haicais que nasceram e morreram trocadilhos e música sertaneja estão no topo da lista.
As igrejas de Ouro Preto sempre mexeram emocionalmente comigo, mas deixam os brônquios impregnados de uma espécie de pó imperceptível aos olhos, além daquele ar de Aleijadinho misturado ao perfume de Marília de Dirceu.
Em ida recente a Portugal, visitei a deslumbrante biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Pensei que fosse morrer. O oxigênio acabou em questão de minutos.
Construída em estilo barroco no século 18 pelo rei João V, trata-se de um monumento de inestimável valor histórico e abrigo de obras raríssimas.
São três pisos, quase 56 mil volumes, com destaque para o acervo de livros antigos, compostos por documentos do Século 16 ao Século 18. Uma das jóias é a primeira edição da “Fábrica do Corpo Humano”, atlas de anatomia do belga Andreas Vesalius, lançado em 1543.
Assustei-me com a presença de morcegos - um exército -, dependurados de cabeça para baixo no teto da edificação. Acalmei-me, informado de que a presenças deles é necessária no combate às traças, implacável inimiga dos livros.
Na última última ida a Minas Gerais, abri o guarda-roupa em que minha mãe conserva algumas lembranças do meu pai.
Uma camisa branca com delicadas listras pretas, outras de vocação discreta, algumas calças de tergal e um uniforme completo dos seus dias de policial militar.
Retirei a vestimenta e observei que as traças puíram pedaços do tecido, deixando rombos em várias partes.
Coloquei-a sobre a cama e uma vida inteira passou diante dos meus olhos.
As traças carcomeram os beijos que meu pai dava na testa quando chegava do trabalho, os bolsos cheios de caramelos, conselhos e reprimendas. 
Roeram um pedaço daquela figura que foi grande influência na pessoa que eu me tornaria.
Por um breve instante desejei que uma colônia de morcegos tivesse feito morada naquele armário, vindas de Coimbra, talvez, preservando para a posteridade um pedaço da história do grande homem que foi meu pai.
Ainda era agosto, mas uma incontrolável crise de tosse - e saudade - tomou conta de mim.

7 comments:

Joakim Antonio said...

Sempre agosto... Maravilha de se ler, Robert!

Dario B. said...


Muitas lembranças e presenças também me foram roídas. Não pelas traças, mas por aquele deus que devora os próprios filhos. Quanto a bronquite alérgica (da qual também fui vitima), quando criança, não sei como mas fui servir de cobaia a uma vacina que acredito não ter sido aprovada, mas que para mim deu bom resultado. Me lembro que a cada dose eram feitos com bisturi seis pequenos cortes onde era pincelada a tal vacina. As pernas iam alternando-se, eram duas doses semanais, e foram 36 ao todo, depois do que, a bronquite optou por me abandonar. Até hoje, quase 60 anos depois, ainda tenho as cicatrizes nas pernas, como recordação da tosse ininterrupta, pra quem morava em rua de terra. E tenho também como herdeira, uma rinite alérgica, que quase me proíbe a ida a bibliotecas e sebos, que eu adoro. Mas pelo menos morcegos, não os há.

Dalva M. Ferreira said...

E então você chorou. É humano...

Primeira Pessoa said...

Dalva,
quando o motivo é bom, de vez em quando me humanizo. rs
Grande abraço,
Roberto.

Primeira Pessoa said...

Dário,
seus comentários sempre perfumados são um alento que não consigo traduzir em palavras de agradecimento.
Fica o meu abraço pelo carinho que sempre fica explicitado, limpo, puro como o algodão.
R.

Primeira Pessoa said...

Verdade, Jack, querido.
É sempre agosto no meu coração.
Abraço fraterno,
R.

Manu sinistra scribere said...

Cê é MFPC quando escreve, o sabes!