Sunday, August 9, 2020

Layla, a gorda

Totó, Til e Rex eram nomes populares de cachorro naquele início da década de 1970.

Toda criança merece ter um bichinho de estimação para chamar de seu. Mas cresci sem ter tido um, o que não deixou traumas ou mágoa. Papai não gostava, talvez por ter outras quatro bocas para alimentar.
Cresci, mudei, casei, levei o coador e tive três filhas, trafegando quase sempre na contramão do meu velho.
Nesta humilde residência em um país distante do Brasil já habitaram - ou habitam - cães, coelhos, peixes, calopsitas, uma iguana e até um papagaio australiano que tem parte com satanás.
Cacatua, essa ave neozelandesa de plumagem branca e topete do Supla, destruiu metade da minha biblioteca, devorou portais, escrivaninhas e uma mesa de centro com a competência de um exército de cupins.
Cansado de suas estripolias, convoquei uma reunião familiar emergencial e anunciei:
   - Ou ele ou eu.
Clarice, a caçula - na altura com oito anos -, tomou a palavra e decidiu por todos:
   - Pai, telefona pelo menos uma vez por mês para ver se estamos precisando de alguma coisa.
Cacatua ficou na casa, claro.
E eu também. Só que, agora, desmoralizado e reduzido a uma incômoda desimportância.
Felizmente tive o consolo e solidariedade de uma adorável criatura.
Layla foi a terceira das três sharpeis que aportaram por aqui.
Veio depois de Jade e Nina. 
Ao contrário de suas predecessoras, nunca nos deu trabalho.
Morávamos em Kearny quando Jade se livrou da coleira e atropelou um Ford Taurus a 45 milhas por hora. 
A lataria ficou bastante amassada e tive que pagar o funileiro.  
Fora o susto.
E a danada da Nina fugia semana sim semana não, movimentando os vizinhos em solidária missão de busca e captura.
Quando Layla chegou por aqui em 2013, aos três meses de idade, trouxe na bagagem uma indescritível alegria.
Gorducha, felpuda, fofa, parecia um daqueles bichos de pelúcia que moravam no quarto das meninas. 
Cheia de vida, o rabo sempre abanando de canina felicidade, era perfeita.
Escrevi inúmeros textos com ela encostada aos meus pés. 
Vimos muitos filmes juntos, quando todos na casa dormiam. 
Assistimos calados à derrocada do meu Cruzeiro em sua queda para a Série B do campeonato brasileiro.
De vez em quando saíamos para passear, ela me arrastando pelas ruas do bairro, dando uma força ao lento companheiro.
Há cerca de três meses começou a perder peso. Logo ela, a quem chamávamos carinhosamente de 'gorda'. 
Levamos ao veterinário, mas os remédios não surtiram efeito.
Mudamos de profissional e, mesmo com exames de raio x, nada de anormal foi constatado.
Feliz, brincalhona, solidária, mantinha o comportamento de sempre, apesar de estar cada vez mais magra.
A solucão foi encaminhá-la a uma renomada veterinária de Nova York, uma das grandes especialistas da raça sharpei no país.
Somente na terceira visita e novos exames, foi detectado o pior: o câncer já havia se alastrado por várias partes do corpo. Tinha pouquíssmo tempo de vida.
Ficamos arrasados.
Nas últimas semanas comecei a cozinhar para ela, que já não tinha mais apetite. E a alimentava como um pai que alimenta um filho doente. Tentei espichar ao máximo o nosso tempo juntos. 
Nos fins de tarde, um de nós a colocava no assento do carona do carro e saíamos para dar uma volta. 
Ela sempre adorou a sensação do vento balançando as pelancas da bochecha e a papada, fazendo um barulhinho bom.
Ontem ela amanheceu com imensa dificuldade de respirar. Sofria tanto.
Mordia o ar, como se quisesse mastigá-lo, fazendo o som de um fole furado, naquilo que tentava dele se alimentar.
Andava de um lado para o outro com aquele 'gato' ronronando dentro do peito, o olhar pedindo socorro, mas o rabo abanando, como que se desculpando por estar assim.
A agonia extenuante não nos deu outra alternativa a não ser ligar para uma veterinária especializada em eutanásia animal a domicílio.
O relógio apontava 22 horas quando escutei o carro estacionando na frente da casa.
Ajoelhei-me no chão da sala, abracei-a e beijei-a com o rosto molhado de tanto chorar.
Agradeci muito. Agradeci demais.
Ato contínuo, subi as escadas, deitei-me na cama, coloquei os fones de ouvido no último volume e fiquei escutando Egberto Gismonti cantar o Hino do Carmo.
Meu coração parecia querer explodir de tanta dor.
Ela sairia da casa dentro de uma sacola de plástico transparente alguns minutos depois.
Mas eu não escutei.
Nem vi.


* Foto do passeio com Layla na tarde deste fatídico 6 de agosto, algumas horas antes do fim.
 

6 comments:

Joakim Antonio said...

Abraço apertado, Robert! Grande Pai! 🙏🏾

OLINTO VIEIRA said...

Bonito e triste. Todo fim é. E é bom lembrar depois e nao precisar mais ficar triste pela dádiva do presente de cuidar da Layla tão bem. Como uma filha.

Dario B. said...

Como não dizer que é uma tragédia? Há que não se ter coração para não sentir isso. E cada um deles que parte é insubstituível, com suas características e peripécias. Lamento muito, sei bem como é esse sofrimento.

Solange Mendes said...

Que triste é enterrar amor, de gente de bicho...
Chorei aqui com voce como chorei hoje de saudade de meu pai...
É meu amigo estou precisando de motivos pra rir...

Solange Mendes said...

Que triste é enterrar amor, de gente de bicho...
Chorei aqui com voce como chorei hoje de saudade de meu pai...
É meu amigo estou precisando de motivos pra rir...

Sônia Brandão said...

Sei bem o que é passar por isso.
Não sei se serve de consolo, mas a Layla teve uma vida feliz e fez feliz a sua vida também.

Um abraço