Tuesday, April 15, 2014

O primeiro Shopping Center


(Para Juliana Vinagre)

José Roque sofria de vitiligo e as manchas brancas já tinham consumidos as mãos morenas, espalhando-se pelos cotovelos e pela parte de inferior do pescoço, o que dava-lhe um aspecto de gato malhado, destes de rua.
Andava sempre arrumadinho, sapatos lustrados, cabelo penteado de lado e engomado com loção Trim.
Ele não era, definitivamente, um Zé qualquer.
A Venda do Zé Roque ocupava toda a parte da frente da construção, uma casa larga pintada de amarelo, com telhas cumbucas esparramadas como num acento circunflexo. Na parte de trás vivia uma viúva e seus filhos já graúdos, todos imprestáveis.
Duas portas de madeira, grossas, davam acesso para quem vinha da rua.
Ao lado de uma destas portas tinha um galinheiro onde ele, aos fins de semana, expunha garnizés e galinhas caipiras.
Na parede tinha um cartaz de propaganda dos cigarros Hollywood e a frase “Ao Sucesso”. E uma bexiga de salame do tamanho de um extintor de incêndio.
O balcão de quase cinco metros de largura tinha uma vitrine e guardava tesouros: marta-rochas, pães de sal, tatu, jacaré, sovado e doce, além de tarecos, bolos-estrela e de fubá, biscoitos de polvilho e quebra-quebra, e brevidades.
Para os que bebiam uma branquinha, havia sempre um torresmo, um chouriço de sangue, uma carne de panela ou um pedaço de dobradinha, que eram para ‘tirar o gosto’. Atrás da porta do lado direito era o ofertório, onde era despejada a parte “do santo”.
Em cima do balcão ficava uma balança Filizzola e pesos de diferentes tamanhos. E folhas de um papel pardo, que o Zé usava para embrulhar as compras.
Na prateleira atrás do balcão ficavam garrafas de conhaque de alcatrão de São João da Barra, Jurubeba Leão do Norte, cachaça das marcas Praianinha e Tatuzinho, cera Parquetina para lustrar o assoalho, água sanitária Globo e álcool.
Em cima do balcão – em forma de trapézio – havia um varal onde ele dependurava linguiças defumadas.
Nos sacos de estopa – ou algodão – colocados em um dos cantos da venda, eram expostos os grãos da casa, produção de agricultores ribeirinhos: milho, feijão, arroz, canjiquinha, fubá e açúcar.
Zé Roque tinha também fumo de rolo, palha de milho para cigarro e canivete com cabo de osso ou de chifre de boi.
Num gavetão do lado esquerdo do balcão ele estocava pedras de naftalina para combater traças, latas de creolina para desinfetar ferida de animais e tabletes de anilina, que as lavadeiras usavam para clarear as roupas.
Na venda havia ainda latinhas de pomada minâncora (uma maravilha no combate da velha sudorese, o conhecido “cecê”), polvilho antisséptico Granado (muito bom para combater chulé), talcos de três qualidades, sabonetes Lux e Gessy.
Para curar as dores do mundo ele tinha comprimidos de Cibalena, Neovalgina, Melhoral, Sonrizal, pílulas De Lussen e Regulador Xavier.
Zé Roque oferecia Neocid para exterminar piolhos e espirais e Detefon para espantar pernilongos. E, claro, bombinhas flit, artesanais, feitas de lata, como os carrinhos – brinquedos dos meninos – e seus pneus recortados de velhas sandálias havaianas.
De lata e artesanais também eram as lamparinas, os lampiões e os cortadores de feijão.
Para as donas de casa ele tinha vassoura de piaçava e espanador de penas.
Para outros fins ele tinha esteiras feitas de tabuá e varas de pescar, de bambu e ubá.
Tinha anzol, chumbada e linha de pescar e de costurar. E chumbinho para as espingardas de ar-comprimido, usados no caçar.
Num canto, à esquerda da venda, Zé Roque mantinha uma espécie de montra, onde ele expunha tomates, cenouras, laranjas, bananas, legumes quase sempre murchos e mosquitinhos.
E duas bacias de água sempre clarinha onde nadavam molhos de coentros, salsinhas, cebolinha, alface e couve.
Quem tinha dinheiro, comprava. Quem não tinha, comprava também.
Zé Roque anotava tudo na sagrada caderneta, um caderno de capa dura em que a despesa era anotada com honestidade, tintim por tintim.
E ninguém precisava assinar nada, pois desconfiança e desonestidade ainda não havia nascido.
Antes dos cartões de crédito existiu a caderneta.
E o fio do bigode, garantia de pagamento de todo homem de bem.
A venda do Zé Roque viria a ser o primeiro shopping Center de minha vida.
O primeiro. O definitivo.
 
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6 comments:

Paulo Jorge Dumaresq said...

Maravilhoso, Bob.
Zé Roque foi um grande empreendedor.
Em frente à minha casa tinha a mercearia de seu Luís. Era uma festa. Lembro que todo dia ia lá com vovó e voltava sempre com alguma coisa.
Grande época.
Abraçaço, meu filho.

flor de lótus said...

Também o meu primeiro Shopping Center era semelhante ao seu em quase tudo, exceto em algumas mercadorias, pois era em Portugal. E que belas recordações tenho desse espaço.

Ana Aquino said...

A "venda na parte da frente da construção"; na parte de trás ou nos arredores, "os imprestáveis", homens pobres e livres que formavam uma massa de andarilhos sem peias que vagavam pelos sertões e retornavam, sempre, para os festejos do santo padroeiro regado a novena, pinga e água benta, pagode e leilão. Portas de madeira grossas e os "cercados' que forneciam animais para consumo das tropas; o balcão, a branquinha e o torresmo; A produção dos ribeirinhos expostas sobre sacos de algodão alvejados, o fumo de rolo, a palha de milho, o canivete com cabo de osso e a caderneta de capa dura. Eu estive lá... Zé Roque? Não... Talvez, Bizuca Quebra Laço... Ou seria João Congo? Nego Carro? Zé do Império ou João da Colônia? Não me lembro, caro amigo... As dobras da história turvam as lembranças. E pra piorar, deram pra dizer que o Tempo não existe...
Bonito texto.
Ana

Emilia Vaz said...

A "venda"..
"Armazém"...
Bar...boteco...
Bateu saudade.
Boa semana.
Namaste!

Tania regina Contreiras said...


Você provoca saudades na gente. E eu fico aqui lembrando que um dia eu não soube que saberia o que é um shopping center.

Beijos, Beto!

Graça Pereira said...

Gostei deste voltar atrás...no tempo em que a garantia era dada pelo bom nome da pessoa... O vendedor apontava no livro e sabia que era dinheiro ganho...Um dia, o freguês viria pagar...Lembrei-me da mercearia onde a minha mãe gastava...e concordei contigo: foi o primeiro shopping que eu vi...
Um abraço grato
Graça