Tuesday, August 22, 2017

Banquete animal



Célio Dimas Cordeiro da Silva: esse é o nome impresso na certidão de nascimento.
Nasceu em Governador Valadares e por lá deve estar vivendo.
Para sua mãe ele era Célio Dimas, e parecia sempre prestes a lhe passar um cerimonioso sabão:
- Célio Dimas, quem soltou o canário?
- Isto lá são horas de chegar em casa, Célio Dimas?
- Célio Dimas, você bebeu outra vez?
Para a turma na rua, no entanto, ele era Celim, um dos sujeitos mais divertidos que a vida já produziu.
Ficamos amigos no início dos oitenta, jovens e ingênuos. Nosso encontro era religiosamente dominical e, como tal, era chamado de missa.
- Te vejo na missa, domingo que vem.
- Combinado, o outro respondia.
O padre eu não sei quem era. Mas os santos de nossa devoção eram São Rafael, e São João da Barra, aquele "milagroso".
Eu era um dos viajantes na maionese de um certo Varal de Poesias, que acontecia todos os domingos na Feira Hippie da cidade.
Celim, por sua vez, vendia umas ‘tabuínhas’ em que desenhava a pirógrafo, motivos infantis e nomes de crianças.
Nós gritávamos "Óia o Varal"; ele respondia "Óia a ‘talbinha’".
Na saída, talbinhas (ou seria tabuínhas?) e varais saiam para beber cerveja.
E ficava-se ali no Bar Pedrão, as pernas esticadas na calçada, comendo pipoca com queijo ralado, olhando as moças passarem, as horas definhando na preguiça da tarde.
A medida que o tempo passava, a cerveja minguava nos copos, e apenas a incerteza de melhores dias transbordava das conversações. Muito injusto, o Brasil, pois aquele moço tinha muito talento. 
Era mestre da caricatura e do cartum, e criava personagens que dava pra montar uma Disneylândia só dele.
Ficávamos espantados com a firmeza de seus traços, levando em conta que ele tremia muito, como se sofresse do Mal de Parkinson. Excesso, talvez, de cachaça.
Celim não tinha um único osso maldoso em seu corpo.
Vim para os Estados Unidos e ele ficou por lá assinando uma charge no Diário do Rio Doce, diagramando textos e propagandas numa agência. Aos domingos, continuava vendendo ‘talbinhas’ na feira da Praça Serra Lima.
Anos depois recebi uma carta dele aqui em New Jersey. Estava vivendo na Califórnia, trabalhando com chicanos numa fábrica de fios de cobre.
Mandei uma resposta falando que queria fundar um jornal brasileiro. Dois meses depois ele apareceria por aqui, sócio da empresa, trazendo à tiracolo um esdrúxulo guarda-roupas, uma coleção de óculos de grau comprada num brechó.
Com a turma da República do Babujo vivemos dias e noites gloriosos, numa época em que esbanjávamos saúde e nossos fígados ainda resistiam.
Era o período do Scorpio’s, do grupo Brazilian Energy e dos shows de MPB na cidade. Fomos em todos eles: Gonzaguinha, Gilberto Gil, Alceu Valença, Sá & Guarabyra, Elba Ramalho, Fagner, Beto Guedes, Zé Ramalho... nossos ídolos.
Celim, como sempre, protagonizou estórias engraçadas, várias delas antológicas e nem sempre publicáveis, hoje temas de retóricas animadíssimas, toda vez que dois ou mais pensionistas do Babujo se encontram.
Era hilário vê-lo "traduzindo os diálogos da televisão americana para brasucas recém-chegados.
Ele, que não sabia nadinha de inglês, sentia-se na obrigação de traduzir a língua para os neófitos. E a todos enganava com seu sotaque estranho e palavras que inventava.
Recordo-me de uma noite em que ele não estava conosco no bar onde costumávamos nos encontrar. Havia ficado em casa dormindo.
Duas da manhã resolvemos retornar e, quando entramos na cozinha, o encontramos de pijama, com uma cara sonolenta, debruçado vorazmente sobre um prato contendo uma gororoba.
Sabedores de sua total inabilidade para cozinhar, tratamos de desvendar o que ele comia com uma boca tão boa.
Encontramos a resposta no cesto do lixo: uma lata da Purina.
Celim, que não soube o ler o que estava escrito na lata, tinha esquentado a comida de Rocky, o pastor alemão que meu irmão Toninho criava no quintal.
Para não comprometer o rebolado, Celim - que não perdia o amigo e nem a piada -, continuou jantando.
Ato contínuo, passou o que sobrou daquela noite sentado no parapeito da janela do quarto bebendo cerveja. Entre um gole e outro de budweiser, latia e uivava para a lua.

1 comment:

Dario B. said...

Ô Robertim, fiquei contente com a crônica por vários motivos. O primeiro quando o link abriu o blog, e deu uma p* saudade daquele tempo em que, de certo modo, os blogs eram nossa "rede social". Depois, ao ler lembrei dos amigos semelhantes ao Celim que tive. E tenho, pq alguns ainda sobrevivem. E por fim, a descoberta que Celim foi profético. Já naquele tempo ele fez o que fazemos hoje no Brasil: estamos latindo no quintal pra economizar cachorro...