Wednesday, August 24, 2011

Dois Poemas e Uma canção de Ferreira Gullar














Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?



***

Primeiros Anos


Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.



***



A Música Que Toca Sem Parar:
Fagner canta bonito esse poema de Ferreira Gullar:


Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

36 comments:

Anonymous said...

That Is The Question

Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?
Aceito
ou detono o poema?

...adoro este tb.

beijão (sumido)

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Betoímã,
Ai você pegou pesado, foi direto na minha jugullar...
"O mar embrulhado em seu barulho azul" é de uma lindeza, né não!

Abração, mermão.
darrama.

Primeira Pessoa said...

ele tem tanta coisa bonita, margoh...
e a sua sugestão esteve pertinho de suplantar primeiros anos, e só não foi assim, porque tenho uma estória pessoal com o poema.

prometo publicá-lo na proxima vez que evocar ferreira gullar.

beijão,
roberto.

Primeira Pessoa said...

da rama,
robério, o grego, era fissurado em ferreira gullar.
aliás, seu irmão me apresentou ferreira gullar.

depois te mando uma gravaçao do poeta recitando "primeiros anos"... vou fuçar por aqui, assim que achar, mando procê.

abração,

r.

Jorge Pimenta said...

grandes malhas, primeiríssimo amigo. o primeiro texto, então, pega-nos a todos os que deambulam, se procuram e acreditam, tanto dentro como fora de si. a magia de ser homem no reino da imperfeição é seguramente o que nos torna tão débeis, mas também tão especiais e, em certo sentido, únicos. estou, de resto, convencido de que no dia em que assegurarmos a síntese do eu, deixará de haver motivo para existirmos.
um abraço e astrolábios, querido amigo!
p.s. a canção de que falas [e que agora não recebi :)] é uma que me enviaste há tempo; de rubi, creio... é linda que eu sei lá!!!].
um abracílimo!

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo, bbardo bracarense solto no mundo...

rubi se antecipou ao seu astrolábio, então.
é aquela mesmo... ou, melhor, é essa canção, sim.

ferreira gullar é um dos grandes poetas do brasil. espero que tenha curtido.

abração do

roberto.

Unknown said...

Bravo, Roberto!

Eu também conheço o cavalheiro rimador e fui presenteada com seu último livro.

Ele é um poeta "muderno" não vai mais além. Mas gosto da sua poesia.

Beijos

Mirze

MARILENE said...

Você me fez ir ao fundo do coração com os poemas de Ferreira Gullar, principalmente o primeiro, que traz as "incoerências" do ser, seu direito e avesso.
Fagner, nenhum elogio será bastante para definir. Gosto demais dele.

Abços

Primeira Pessoa said...

ah, mirze,
c6e é muito chique... em dezembro passado fui ao ateliê do zé andrade, em santa teresa e ele me disse que sempre toma café com o poeta numa padaria do bairro...

fiquei morrendo de inveja...rs

beijao,
r.

Primeira Pessoa said...

marilene,
fico muito contente que tenha gostado do post...

e fagner (quando ainda era raimundo) fez belas incursões na poesia...

grande abraço do

roberto.

Tania regina Contreiras said...

Ah, eu sempre disse: se eu fosse uma música, eu seria "Traduzir-se", onde tenho histórias...Mas aqui é tudo covardia, os poemas, o poema musicado (manda preu, Beto?)...e a sensibilidade do poeta Roberto, que escolhe parte de si mesmo em bocas e mãos outras, mas isso é você, né? E o astrolábio, já lido no Jorginho, ah, essa eu amo e tenho que tu me mandou, e canto, e canto e canto.....
Beijão, Roberto...

Primeira Pessoa said...

taninha,
mandei astrolabios pro jorgíssimo, também... e ia mandando de novo, se ele nao tivesse dito que ja tinha recebido meses atrás... rs... eu só mando música pras pessoas que amo. que quero bem. e você é uma dessas pessoas.

sinto uma obrigaçao de compartilhar, sabe... o que o renato costuma chamar de "dever cívico"...

pode deixar que eu te mando a "musga" que toca sem parar no dia de hoje...

beijao.

r,

Daniela Delias said...

Que doce surpresa reencontrar essa música que tanto ouvia há anos atrás...tudo tão bonito, né Beto?
Bjo carinhoso,
Dani

Pólen Radioativo said...

Escolhas perfeitas, Roberto!!! Música e poesias.
Gullar é um cara fantástico. Um resistente, um revolucionário...

Beijinhos, meu tão querido!!!

Primeira Pessoa said...

dani,
fagner, quando ainda era raimundo, me apresentou à poesia. começou em canteiros (cecília meireles), e continuou em florbela espanca (fanatismo, fumo, frieza), pessoa (qualquer música, afonso romano (os amantes), nélida piñon (doce cançao de caetana)... tanta coisa bonita. tanta coisa tanta!

escutei muito aquele raimundo fagner. dedicamos (bispo filho e eu) o nosso primeiro livro a ele... e era uma admiração grande demais pelos seus tremolos, sua voz sem polimendo dos primeiros anos, a emoção na interpretação, a boina guevariana e sua briga através da imprensa com caetano...

enfim...
me excedo quando falo daquele raimundo.

este, que é de são raimundo te deixa um beijão.

r.

Primeira Pessoa said...

e é seu conterrâneo, num é, moça do pólen?
a linhagem de bons petas maranhenses vem de longe. sabemos.
fico feliz que o post tenha agradado.

beijo grande do

r.

Unknown said...

o ribamar de são luís, luas pousadas em manso regaço, cantiga para não morrer já me matou de tantos amores, coisa que aprecio sempre me asfixia


abração daqui onde a terra não treme,mas dobram os sinos por ti

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
gosto deste zé de ribamar desde que o saci tinha duas pernas.
foi uma das minhas primeiras paixões na poesia e o poema "primeiros anos" é um dos poucos que eu sabia de cor e salteado.

comungamos, também aqui.

abração desse seu fã sem carteirinha, o

roberto.

Joelma B. said...

Imagino-te na escolha dos três poemas dentre as tantas maravilhas de Ferreira... Eu ficaria numa dúvida! Adoro "Como dois e dois: quatro"

= )

Beijinho, Roberto!

Aline said...

de gullar:
"eu sei que se tocasse/
com as mãos aquele canto do quadro/
onde um amarelo arde/
me queimaria nele/
ou teria manchado para sempre de delirio/
a ponta dos dedos."

eu tambem gosto.

beleza de blog.

aline.

Concha Rousia said...

Adoro a poesia de Ferreira Gullar, aspiro um dia a poder conhecé-lo... É um prazer encontrar aqui as suas poesias, o primeiro poema me fez pensar num diálogo que tive com minha filha de 11 anos ontem, e que um dia recriarei no meu blog, abraços desde a Galiza, Concha Rousia

Primeira Pessoa said...

analuz,
na próxima postagem de gullar, não tenho por onde correr...

como dois e dois, noves fora: bingo!

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

aline,
beleza mesmo é você por aqui, entre os meus.

seja mais que bem vinda!

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

concha,
é só ir ao rio de janeiro. o poeta vive lá.
não o conheço, mas dizem que é uma pessoa muito afável.

no outro dia vi em seu blog uma canção de vander lee e gostei muitíssimo.

olha, é sempre uma honra tê-la nesse minifúndio de afetos. volte sempre que quiser.

abração do

roberto.

Concha Rousia said...

Eu sei Roberto, Guller e eu temos um amigo em común lá no Rio, o poeta Ricardo S. Reis, mas quando estive no Rio (abril de 2010) foi tão corrido que nem pude conhecer a quem tanto desejava, mas acho que vai sendo hora de voltar ao Brasil... desejaria conhecer o Vander Lee, acho que é a música que mais gosto neste momento da minha vida, grata pelo carinho, um abraços, Concha

Primeira Pessoa said...

concha,
o encontro com vander lee é possível e posso interferir neste sentido. adoro ele, trata-se de uma grande figura, um artista talentoso e muito eneroso.

para que isto acontecesse, você teria que ir às montanhas mineiras, pois ele vive em belo horizonte.

é bom que você dá um salto até ouro preto, cidade que foi transportada de portugal, nas nuvens. milton nascimento e sergio godinho fizeram uma bela canção sobre o tema.

abraço grande do

roberto.

Concha Rousia said...

Roberto, vou lembrar estas tuas palavras e irei fazer tudo que esteja em minha mão para passar por essas montanhas mineiras, é uma terra que tenho muita vontade de conhecer... e se isso me leva a conhecer a Vonder Lee... um sonho para nunca esquecer, adoro todas as suas músicas, todas... obrigada e abraço grande para ti Roberto.

Concha

Primeira Pessoa said...

concha,
é só me dizer quando vai. leve-lhe uma boa garrafa de vinho, ele vai gostar.
eu coordeno este encontro.

grande abraço,

roberto.

Andrea de Godoy Neto said...

Roberto, gosto um tantão de ferreira gullar, e desse Traduzir-se, então, gosto além do que posso mensurar...

gosto um tantão de ti também ;)

beijo grande

Primeira Pessoa said...

andrea,
é uma coincidência, antão.
gosto do ferreira gullar e adoro você.

então, tâmo lona a lona.

beijão,

r.

Concha Rousia said...

Bom dia Roberto, já estou na Galiza, antes escrevia desde o Mediterrâneo, essa Espanha que vive aí à nossa beira sem ser nós... a Galiza tem mais a ver com Minas do que com a Espanha, mas prontos, a geografia política nós apanhou... Estive a ler o teu perfil, ahhh também nasci em casa, uma casa de pedra, feita pelos castrejos de Castro Laboreiro, somos filhos doutro tempo, também li que moras em Newark- NJ, eu morei em Meryland e em South Carolina até o 2001 (uns 8 anos) e tenho saudades dessa eu trota-mundos... Bom, fico feliz deste nosso encontro, e continuaremos, porque eu tb vou ir 'to the States' next year or so... big hug, Concha

Unknown said...

ÕOOOOOOOOOOOOOOO ROBERTO!

ESTÁS VIVO? Estou preocupadas com los furacones.

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

to aqui, mirze...
mulherzinha mais leviana, essa irene...

gostei dela não...

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

então você ja conhece a batida do bumbum por aqui, concha.

nos veremos por aqui, né?

te deixo um grande abraço.

r.

Wilson Torres Nanini said...

Gullar é foda!

Abraços, meu amigo!

Primeira Pessoa said...

cê também é, nanini.

estamos precisando conversar.

me passa seu telefone por email. tem jeito?

abs,

r.