Sunday, October 9, 2011

O Direito de Sonhar

























(Eduardo Galeano)

Tente adivinhar como será o mundo depois do ano 2000. Temos apenas uma única certeza: se estivermos vivos, teremos virado gente do século passado. Pior ainda, gente do milênio passado. Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede. Deliremos, pois, por um instante. O mundo, que hoje está de pernas para o ar, vai ter de novo os pés no chão. Nas ruas e avenidas, carros vão ser atropelados por cachorros. O ar será puro, sem o veneno dos canos de descarga, e vai existir apenas a contaminação que emana dos medos humanos e das humanas paixões. O povo não será guiado pelos carros, nem programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de passar ou uma máquina de lavar roupas. Vamos trabalhar para viver, em vez de viver para trabalhar. Em nenhum país do mundo os jovens vão ser presos por contestar o serviço militar. Serão encarcerados apenas os quiserem se alistar. Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas. Os cozinheiros não vão mais acreditar que as lagostas gostam de ser servidas vivas. Os historiadores não vão mais acreditar que os países gostem de ser invadidos. Os políticos não vão mais acreditar que os pobres gostem de encher a barriga de promessas. O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza. E a indústria militar não vai ter outra saída senão declarar falência, para sempre. Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de indigestão. Os meninos de rua não vão ser tratados como se fossem lixo, porque não vão existir meninos de rua. Os meninos ricos não vão ser tratados como se fossem dinheiro, porque não vão existir meninos ricos. A educação não vai ser um privilégio de quem pode pagar por ela. A polícia não vai ser a maldição de quem não pode comprá-la. Justiça e liberdade, gêmeas siamesas condenadas a viver separadas, vão estar de novo unidas, bem juntinhas, ombro a ombro. Uma mulher – negra – vai ser presidente do Brasil, e outra – negra – vai ser presidente dos Estados Unidos. Uma mulher indígena vai governar a Guatemala e outra, o Peru. Na Argentina, as loucas da Praça de Maio vão virar exemplo de sanidade mental, porque se negaram a esquecer, em tempos de amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja vai corrigir alguns erros das Tábuas de Moisés. O sexto mandamento vai ordenar: “Festejarás o corpo”. E o nono, que desconfia do desejo, vai declará-lo sacro. A Igreja vai ditar ainda um décimo-primeiro mandamento, do qual o Senhor se esqueceu: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”. Todos os penitentes vão virar celebrantes, e não vai haver noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro.


A Música Que Toca Sem Parar:

de Caetano Veloso, na voz de Rita Ribeiro, Oração ao Tempo


És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...


18 comments:

Andrea de Godoy Neto said...

Quem sabe no próximo século isso deixe de ser um delírio... quem sabe o mundo resista até lá...tomara

engraçado, essa música tocou sem parar na minha cabeça hoje, acordei cantando ela, ouvi umas quantas vezes durante o dia na voz de caetano...vou ouvir aqui de novo, porque adoro.

beijo, roberto!

ana p said...

Gosto muito deste Galeano...

Tania regina Contreiras said...

Amém.
Beijos,

Anonymous said...

Galeano é o cara, difícil encontrar uma mente perspicaz como a dele no mundo hoje.

Você, apesar da vocação pra Don Corleone, hehe, figurará entre os sábios com o dom de cultivar amigos!

Bjo fiote.

Juliana Kalid said...

Palmas para Galeano! Palmas para Caetano!

P.s.: na voz de Bethânia, sim, essa música é verdadeira "oração"! Já ouviu?

;)

Anonymous said...

tanta imaginação, e no que deu???
já não vinha aqui há muito tempo e fui agradavelmente surpreendida com o novo design, gostei bastante
abraço do lado de cá
LauraAlberto

Adriana Riess Karnal said...

Galeano tinha o olhar do visionário, adiantou o por vir.parece ser tudo uma questão de "tempo, tempo, tempo"..como diria Caê.

Unknown said...

Alo, Roberto!

Saudades de ti. Galeano, meu querido, que não sejam utópicas suas idéias, mas que possamos encontrar ainda vivos um paraíso assim.

Beijão maninho.

Mirze

na vinha do verso said...

sonhar é direito
direito é sonhar

abs mano

Primeira Pessoa said...

marquinho,
sonhar, mais que um direito, é um dever.

sonhemos, então.

beijo grande,

r.

Primeira Pessoa said...

mirze,
saudade de te prosear com você, também.
ainda estou em bh. volto nessa segunda pros eua, refeito, recarregado e feliz.

beijo grande,

r.

Primeira Pessoa said...

já ouvi na voz de betânis, sim, juliana. e gosto, também.

fico feliz que o post tenha agradado a você.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

fouad,
até nos emanciparmos (rs), esse é o batido da lata.

saudades anciadas de você, brodinha.

r.

Primeira Pessoa said...

amém nóis tudo, taninha.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

magnólia,
esse galeano é fera. sou fãa do uruguaio.

beijao,

r.

Primeira Pessoa said...

tem muito de mãe dina, nesse eduardo galeano (rs).

o tempo, esse sim, é o senhor de todas as verdades.

beijão, adriana.

r.

Primeira Pessoa said...

andrea,
certas canções se anunciam pra nós, logo pela manhã.

e isso é bão demais da conta.

beijão desse seu amigo e fã, o

roberto.

Primeira Pessoa said...

laura alberto,
sua pedrinha brasileira já está dentro da mala. gaarimpei-a no jardim de uma livraria de belo horizonte.

vamos combinar com o jorgíssimo o grande encontro para o show do trovante, no porto.

abraço amigo do

roberto.