Thursday, November 10, 2011

Na bagagem um desassossego



(Para Jorge Pimenta e Laura Alberto)


O que trarei na bagagem desta minha viagem?
Trarei as luzes da cidade derramadas sobre a ribeira?
Trarei a ribeira do D'Ouro e suas águas a um passo da foz?
Trarei barcos carregado de pipas?
Uma janela da torre dos Clérigos?
A proteção do anjo apinhado de pombas no topo do hospital Santo Antônio?
Trarei uma lua cheia?
Trarei estrelas nortenhas?
Trarei azulejos?
Trarei as vielas estreitas desta cidade, como aquelas transportadas em nuvens para as vilas portugueses da Minas Gerais colonial?
Sim, porque existe muito do lugar de onde venho, neste lugar que, agora, visito pela primeira vez.
Existe um certo bairrismo, um orgulho ingênuo, um sotaque distinto e uma quase doçura na voz.
Existem ladeiras que sobem e descem, mercados permeados por um burburinho e um vozerio que ecoa de dentro dos cafés e tascas espalhados por todos os cantos.
É manhã na cidade do Porto e, no que chego, chove, turvando a visão diante de uma paisagem distinta.
Lanço meu olhar-turista sobre pessoas e coisas com a sede dos que tem sede, com a fome dos que tem fome.
E eu chego e sou bem acolhido, já à entrada, sentindo-me imediatamente em casa.
Eu, que caminho por essas ruas como se fossem minhas.
Eu, que sou afeito a intuir e a intuir somente.
Eu, que só sei sentir.
Sei que trarei desta cidade, quando retornar ao lugar que chamo casa, as cenas épicas dos painéis da estação de São Bento.
Trarei a conversa quase intimista do motorista do táxi.
Trarei tripas à moda do Porto, alheiras, tremoços e sarabulhos.
Trarei romãs.
Trarei o gosto picante do molho de uma francesinha degustada numa transversal da rua onde as putas fazem ponto quando cai a noite.
Trarei poemas de Eugénio de Andrade e textos de Valter Hugo Mãe.
Trarei um solo da guitarra de Rui Veloso e uma pedaço de toucinho do céu, fatiado das páginas do menu do Dom Tonho.
Trarei os muros e paredes pichados, espirrados da fúria de um povo que não se dobra ou aceita as injustiças sociais que ainda persistem.
Trarei o doce-azedo das uvas que espremeram para fazer o vinho que embriagou e irmanou todos nós, durante a estada.
O calor dos abraços que entreguei e recebi, mais que em dobro.
Trarei nas malas o luto das roupas negras das mulheres que trafegam pelas ruas, como se ainda vivêssemos num século distante.
Trarei um olhar de adeus diante do mar.
Trarei tradição.
Trarei o peso da história.
E um pedaço dela, impregnado, essa tatuagem nas retinas.
Trarei uma travessia à pé da ponte Dom Luís I.
Trarei as canções de um concerto que reverbera, ainda, como se estivessem frescas como as laranjas dos pomares que adornam todo o norte do país.
Trarei um livro retirado do acervo da livraria Lello, que é uma espécie de relicário nobre das palavras, um dos lugares mais bonitos que meus olhos já viram.
E farei o meu caminho de volta, como quem atravessa um abismo.
Porque o oceano Atlântico é um abismo que separa os dois continentes e impede um abraço.
E eu cumprirei duas vezes este percurso numa agonizante jornada.
Nas despedidas, ficará o refrão de um fado.
No coração, o desassossego dos que deixam para trás um pedaço grande da alma.
Mesmo assim, ficará a sensação de que levo muito mais do que deixo.



A Música Que Toca Sem Parar:

poema de João Monge, interpretação do Trovante.

36 comments:

Lua Nova said...

Fiquei emocionada! Belíssimo texto e rico, muito rico em informações emocionais que se cravam no coração e dão vontade de pegar o primeiro avião e ir amanhecer lá. Deve ter sido realmente uma viagem pra nunca mais esquecer, uma companhia amorosa como só o português das aldeias sabe ser. Tenho muita admiração por Jorge e, é claro, por vc. Acho que adoraria ter estado nesse encontro.
Roberto, nem sempre me manifesto aqui, mas tenha certeza que gosto demais de tudo que vc escreve. Se pela capacidade literária e criativa não fosse, seria por essa mineirice encantadora e sagaz (todo mineirinho o é, né não?) que verte de vc como pão de queijo de forno à lenha...
Beijokas e todo meu carinho.

Jorge Pimenta said...

"guardadas vão as vontades e outras meias verdades"

a alma não tem geografia, querido amigo. está onde tiver de estar, nos lugares que são gente e na gente que é todos os lugares.
um abraço com saudades e um desejo imenso de novos reencontros numa qualquer cidade do peito!

Tania regina Contreiras said...

Eu, que sou mais dadas a viagens internas do que externas, estava ávida por "viajar" através de seus olhos, Beto, queria muito enxergar essa viagem e esse encontro que imaginei através da tua emoção, com a delicadeza do teu olhar, com o sentimento que só você sabe traduzir. O resultado não poderia ser outro: um belíssimo e emocionante texto, que nos põe ali onde você esteve, sentindo como você sentiu. O Jorginho, querido, deve ter amado ler. Eu amei!
Beijos,

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Beto,
Saudade de pousar os pés aqui, pousar a alma aqui. Viajei essa viagem con'cê, pode acreditar. E um dia quem sabe faremos algum percurso juntos! De repente, Santo Amaro. Quanto me basta, é estar vez em quando ao seu lado, como da última Tertúlia...

Abraço e admiração,
darrama.

MARILENE said...

A sensação de que levamos mais do que deixamos é a melhor bagagem que podemos carregar.
O Jorge fez referência a você e não resisti à curiosidade. Encantei-me!
Parabéns pela linguagem clara, bela, poética... e repleta de sentimento.

Abraços

Anonymous said...

obrigada meu querido ROBERTO
a nossa amizade já existia há muito tempo, desde sempre

(dois poetas-escritores e uma aprendiz)

um grande abraço com muita, muita saudade!

LauraRaquel

Unknown said...

eis aí um desacerto de contas, afinal são assim essas contabilidades de almas em júbilo,



abraços

nina rizzi said...

meu amigo, te ler, em qualquer dia é uma coisa danisca. mas nessa manhã, é encharcar o deserto. maravilha!

Primeira Pessoa said...

nina,
uma margarida sua me faz ganhar um dia. uma braçada delas então... coubessem no meu abraço.

beijo meu,

r.

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
qualquer dia destes é o meu desacerto de contas contigo, meu caro.

to como aquela zebra, dizendo pra mosca: ce ta na minha listra negra...rs

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

mais que querida laura alberto,
quando 3 pessoas que se querem bem encontram-se, as noites tornam -se mágicas e estreita-se as margens de um rio.

nossa amizade, as luzes derramada sobre a água do D'ouro, tudo muito lindo...

"emoldurei" aquela noite... e na parede da memória ela é um quadro bonito.

beijão do

roberto.

Primeira Pessoa said...

marilene,
se chega pelas mãos do jorge, assenta-se à cabeceira e pode repetir a sobremesa.

seja mais que bem vinda.

jorge pimenta?
um querido.

beijo grande do

r.

Primeira Pessoa said...

da rama,
essa viagem a santo amaro já virando folclore...rs
sim, eu adoraria...
qualquer roteiro na sua companhia é motivo de enorme alegria.

ah, sim... trouxe de portugal um azulejim procê, com uma frase de pessoa e a caricatura do bardo.

beijão, da rama.

r.

Primeira Pessoa said...

taninha,
saiba que você estava lá, conosco. e seu nome foi citado, recitado, proseado...voce deve ter ficado com orelha queimando aí no brasil... aliás, não apenas você... nossas vítimas foram voce, assis, marcantonio, daniela, andrea... aquela turma do início das coisas por aqui...

um dia, mandamos sequestrar voce aí em salvador.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
ficou faltando um tantão de coisas bacanas pra gente fazer. ficaram pra uma próxima.
vamos nos programar direitinho.
não perco aquelas sardinhas assadas em matosinhos por nada desse mundo.
ah, sim, claro, quero ir fazer xixi na espanha. rs

beijão do

r.

Primeira Pessoa said...

lua nova,
sabia que "lua nova" é uma das cachacinhas que mais bebo quando estou em minas? rs... é sério. se não experimentou, eu recomendo.

suas palavras me deixam honrado. mas quero que saiba que é belezura toda, está no olhar de quem vê. no olhar de quem lê.

ainda assim, coloco, feliz, essa pena azul no meu chapéu.

beijão do

roberto.

Luciana Marinho said...

palavras que alcançam sem esforço nosso íntimo. bela poesia. e essa fotografia também é um belo sentimento!

beijinho, roberto!

"No coração, o desassossego dos que deixam para trás um pedaço grande da alma"

Primeira Pessoa said...

luciana,
notou que tão pouca gente fala no porto?
trata-se de uma uma cidade belíssima, cheia de história, cortada por um rio lindo... é uma cidade cheia de poesia.

eugénio de andrade era bem da beirinha... daniel faria, também.

beijão,
r.

Unknown said...

ROBERTO!

Como é bonito quando a gente deixa a alma leve falar!

Viajei com você.

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

mirze,
a alma nos leva... o corpo carrega. sempre.

e a gente segue a música (que, às vezes, toca sem parar).

falando nisto, esta que toca aqui, hoje, no blog, é rebuscada em baltazar e blimunda, personagens de josé saramago.
cada vez mais, amo portugal e suas coisas. e não me canso de repetir: tenho vários ossos lusitanos em mim.

beijão,

r.

Paulo Jorge Dumaresq said...

BOB, resumindo a ópera, você trouxe os Portugais com você.
Poema mais que demais.
Acompanhei a Tertúlia à distância e seu périplo por terras lusitanas.
Também falamos em você - eu e a Cris de Souza - e exaltamos seu enorme talento.
Beijos e bom retorno à América.

Primeira Pessoa said...

paulo poeta,
somente pessoas generosas como voce e a cris para falarem bem desse escribinha de rasos talentos.

mas eu sou fã dos dois.

na tertulia do ano que vem ce tá dentro., ne???
ou tenho que mandar alguem te sequestrar em natal???

beijão do

roberto.

Anonymous said...

Que bom que levas mais do que deixas
(sensação).A bagagem de experiências não tem aula que pague.
Tudo muito bem feito por aqui. Volto.
um abraço.

Primeira Pessoa said...

marisete,
é bem essa a sensação que carrego. fui muito bem recebido pela cidade, pelo povo do porto. e meus amigos naquele lugar são lindos, generosos...

costumo dizer que tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar. é bem isto.

abração do

roberto.

Luna Sanchez said...

"Trarei um olhar de adeus diante do mar."

Desassosseguei-me diante das tuas palavras, Roberto.

Tenho um chamego especial por aquela terra.

Que beleza de post!

Um beijo. Seja muito bem-vindo ao meu blog, vou acompanhar o teu também.

Primeira Pessoa said...

fico feliz que tenha gostado, luna.
seu blog é lindo, bem feito por alguém que sabe o que está fazendo. é um dos mais belos que já vi por aqui.

seja bem vinda entre os meus.

abração do

roberto.

Linda Simões said...

"Mesmo assim, ficará a sensação de que levo muito mais do que deixo..."


Um beijinho de admiração,


Linda Simões

Primeira Pessoa said...

linda,
é sempre essa a sensação que carrego. a vida me tem sido generosa demais.

afeto retribuído. admiração do

roberto.

Adriana Riess Karnal said...

Roberto, o texto é uma declaração de amor à viagem, à esses encontros de além mar que nos aproximam em terra. Conheceste a nascente da tua língua materna, e ainda mais, conheceste um irmão. Quer coisa mais bonita que um passeio nessas pontes da vida?

Anonymous said...

Que delícia de encontro, Roberto!
Eu o li no blog desse meu querido amigo Jorge Pimenta.
Por esse seu post, dá para imaginar o quão rico ele foi. Traduziu perfeitamente essa amizade de além-mar, que se prorroga aqui e, vez ou outra, se comunica de frente, lá.
O que afinal esses Portugueses possuem, que os fazem nossos bons amigos...?! Não foi à toa que gostei de Lisboa (1999 - tá na hora de repetir a visita, por sinal...)
Abraço,
Ana Lúcia.

Anonymous said...

No mais, parabéns pela sua apresentação, por lá! Este seu post vai de encontro com os elogios de Jorge... Sucesso!

Bípede Falante said...

Vivaaa! E fez-se a luz por aqui :) Gostei do fundo de tela. Vejo tudo muiiitooo melhor!
beijoss

Primeira Pessoa said...

bípede,
quisera eu saber mexer com esses trem.

to apanhando.
mas eu não estava feliz com a leitura do blog. tomara que tenha melhorado pelo menos um cadiquim.

beijo grande do

r.

Primeira Pessoa said...

cores da vida,
os braços do querido amigo jorge pimenta me indicam o caminho da melhor amizade que existe.
portanto, se vem pelos braços dele,

vem para o melhor abraço.

admiração do

r.

Sílc said...

Me deu saudades. Fui 'alfacinhas' por anos e anos... E lá ficou minha filhota.
"Sim, porque existe muito do lugar de onde venho, neste lugar que, agora, visito pela primeira vez.
Existe um certo bairrismo, um orgulho ingênuo, um sotaque distinto e uma quase doçura na voz."
Que gostoso acolhimento.
Sim, muita saudades...
Com carinho,
Sílvia

Primeira Pessoa said...

silvia,
o povo português tem dessas generosidades, né?
sabe acolher, sabe fazer a gente se sentir em casa.
e a nossa história nos mistura, mesmo que não o quiséssemos.

mas queremos.
e eles também.

beijão do

roberto.