Tuesday, June 3, 2014

A janela mágica


 
A primeira vez que ouvi falar em copa do mundo foi em 1970. Tinha 8 anos de idade e em São Raimundo havia 4 aparelhos de televisão, ou televisores, como chamavam alguns.
Se não me falha a memória, foi o primeiro ano em que se transmitiu alguma coisa em cores no mundo, com aquela Copa  disputada no México.
Nenhum dos quatro aparelhos existentes era em cores, mas estava de ótimo tamanho, mesmo a imagem não sendo lá grande coisa e o vento mudando de vez em quando a qualidade da imagem.
‘Chuviscava’ muito nas telinhas de então.
Na Rua Topázio, na casa de Dona Núbia e seu Noca, passava Bonanza, Forte Apache, Terra de Gigantes, Túnel do Tempo, Perdido no Espaço e Viagem ao Fundo do Mar.
Passava um mundo feito de encantamento e magia, que não consigo descrever em palavras, por mais que tente convencer minhas filhas de que antes do videogame, existiu a televisão.

Não dava para colocar a rua inteira na casa dos Novais e Dona Núbia, generosa, abria a janela, para a molecada assistir, ainda que do lado de fora.
Amontoados uns sobre os outros, na ponta dos pés ou sobre tijolos catados em terrenos baldios, nós nos espremíamos por um pedacinho de tela.
Um cotovelo aqui, um ombro se esgueirando ali, ninguém brigava.
Ninguém reclamava, com medo de perder o lugar no futuro.
Um dia, menino de sorte que sempre fui, fui convidado a entrar e me sentar entre os filhos do casal. E nunca mais saí de lá. E nem aquela sala saiu de mim.
Eu já gostava de futebol, claro.
Jogava com os meninos na rua e queria ser Pelé.
Depois quis ser Tostão e Jairzinho, o Furacão. O time montado por João Saldanha era tão bom, que eu não me importava em ser Clodoaldo, Rivelino ou Gerson, o canhotinha de ouro.
Poderia ser até Wilson Piaza, capitão do Cruzeiro do meu coração.

Apesar de muito menino, lembro-me muito claramente de tudo o que me cercava naqueles dias.
Eu era obviamente muito novinho para entender que o país vivia sob uma ditadura militar e que o futebol, o ópio do povo, era uma eficiente ferramenta do regime para acalmar os ânimos. O futebol tem esse poder, pacifica e inflama.
E, no Brasil, não sei explicar o porquê, ganhou contornos muito diferentes mesmo dos lugares onde a paixão pelo esporte é igualmente inexplicável.

Lembro-me do foguetório a cada vitória, dos relatos no radio e do burburinho na mercearia, os adultos recitando jogadas, cantarolando gols que nem todos viram, mas ouviram pelas ondas do rádio.
A Copa seguinte eu veria em casa, praticamente sozinho, num aparelho preto e branco de segunda-mão, que tinha o auxílio luxuoso de uma tela degradê, que mais se pareciam a uma lasca do arco-íris.
E nunca mais parei de acompanhar o Brasil nas Copas do Mundo.
A de 1982 foi a que mais doeu, mas foi também a que me deu maior prazer.
O Sarriá é meu Maracanazo, mas é também meu estádio Azteca de 1970, palco da primeira vitória.
E é muito mais.
Só não foi a minha primeira. Isto é que não foi.
Quarenta e quatro anos depois daquele momento marcante em minha vida, o Brasil recebe uma Copa do Mundo e eu não vou estar presente.
Não vou por opção. Muito mais do que isto, não vou por convicção.
A janela da sala de Dona Núbia já não existe mais.
Onde um dia existiu uma casa, existe hoje uma loja de material de construção.

16 comments:

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

A de 82 ainda doi que doi, mas foi arte, era arte...
Bom demais estar aqui te lendo de novo, me relendo de certa maneira...

Abração do Darrama.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

A de 82 ainda doi que doi, mas foi arte, era arte...
Bom demais estar aqui te lendo de novo, me relendo de certa maneira...

Abração do Darrama.

Leonina Fortunato Heringer@hotmail.com said...

Também tive a minha D. Núbia, em Lajinha, Minas Gerais. Chamava-se D. Jane e lá assistia `as novelas "O Sheik de Agadir", "Sangue e Areia"... Depois que meu pai comprou televisão, nossa casa estava sempre cheia de crianças vizinhas e passamos a ser a D. Núbia. Momentos que uniam...

Tania regina Contreiras said...


Viagem no túnel do tempo...e, como sempre, uma sensibilidade única. É como olhar álbum de fotografia e se encantar com gente que a gente não conheceu, mas pôde conhecer a alma.
Beijos, Beto.
Linda crônica!

Primeira Pessoa said...

Aquela de 82 é uma ferida aberta, Da Rama... Basta um ventinho mais forte ou o som de uma castanhola para eu sair cantando Fanatismo por aí.

E tinha o mestre Telê. Pena ter faltado o Rei.

Teria sido macuco no embornal.

beijão,

R.

Batom e poesias said...

Também por convicção, decidi que ia torcer contra.
Mas meu coração verde e amarelo ainda pulsa aqui dentro, e independente de toda a politicagem, sei que ainda vou vibrar por cada gol que "fizermos". Tenho alma molenga.
Adorei a crônica e me lembro vagamente da copa de 70.
Bj
Rossana

Primeira Pessoa said...

Leonina,
era a famosa televizinha...
Lembro-me de quando adquirimos uma tv "de segunda mão" (meu pai fez um escambo dando um radio, um guarda-roupa e uma garrucha em troca) e as vizinhas vinham todas as noite ver a novella com a minha mãe.

Viva as donas Núbias.

Beijão,
R.

Primeira Pessoa said...

taninha,
cê ainda não era nascida nesse tempo.
mas sei que consegue viajar e chegar lá.
beijoca,

r.

Nidia Telles said...

Seus textos, sempre sublimes, me trazem lembranças boas.A casa de meu avô Pedro era a casa da D. Núbia para os trabalhadores de sua fazenda. Até hoje tenho na memória o barulhinho do chiado da TV de sua casa. Parecia chuva fininha no telhado.
Parabéns pelo texto.

marlene edir severino said...

[... Também tive minha fase de televizinha]

Mágica janela esta tua, Roberto.
As imagens vão se sobrepondo: caixa de guardados impregnados de lembranças.

Belo texto!
Abração!

na vinha do verso said...

somos da mesma copa, Beto

e para todo bom cruzeirense, até hoje ela é a última grande seleção rs




Primeira Pessoa said...

da mesma copa. da mesma cepa. da mesma pipa. do mesmo copo.

beijão, marquinho,

r.

Primeira Pessoa said...

ah, as televizinhas, marlene...
so quem teve, sabe o que é.

beijoca,

r.

Primeira Pessoa said...

rossana,
eu me peguei quase chorando na hora do hino (no jogo contra a croácia).

foi uma peleja para me recompor...rs

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

rossana,
eu me peguei quase chorando na hora do hino (no jogo contra a croácia).

foi uma peleja para me recompor...rs

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

nidia,
você sempre gentil e doce.
volte sempre que puder.

beijo grande do

roberto.