Saturday, August 2, 2014

Vis perdões


Perdoar é dificílimo. Ser perdoado, uma dádiva.
E eu perdoo.
Saio por aí perdoando incondicional e deliberadamente numa tentativa de, talvez, ser perdoado também.
Portanto, eu perdoo você e suas pequenas mentiras.
Suas grandes mentiras.
Suas mentiras de todos os tamanhos.
Perdoo até as mentiras que você ainda não contou.
Portanto, todas as falácias estão devidamente perdoadas.
Assim como as promessas de campanha, promissórias afetivas, seus ‘eujuros’.
Perdoo a nudez fingida, os seios oferecidos na transparência de geometrias infelizes e seus trejeitos de Catherine Hepburn.
Perdoo suas ancas escandalosas e seus triângulos isósceles.
E seus gozos de festim.
Perdoo suas luas de Caran d’Ache, seus abismos de prata e cada estrela de papel.
Perdoo os seus vermelhos.
E todos os tons de azul.
Perdoo suas nuvens vazias de chuvas, os relâmpagos de araque e trovões de tambores sem terreiro.
Perdoo a fome e a injusta distribuição, como perdoaria Drummond.
Perdoo seus minuanos, seus tsunamis e cada terremoto de bolso.
Perdoo os raros dias de sol e sua ausência de verões.
Assim como o cheiro de bolor que vem dos seus armários e o hálito adormecido de cada fantasma da sua coleção.
Perdoo a brisa do nunca de Havana, o calor improvável de Varadero e as ruas sujas do Malecon.
Perdoo seus boleros, suas rumbas e suas dores de corno.
Perdoo os seus punhais.
Perdoo estas bandarilhas em minhas costas sangradas.
E esta sangria desatada.
Perdoo cada pecado capital e até o seu excesso de zelo.
Perdoo as suas carências.
A sua falência de caráter também está perdoada.
Como perdoados estão os seus cactos, os espinhos dos seus cactos e o deserto que mora dentro de você.
Perdoo cada beijo amargo, sua saliva de bílis, esta overture de jiló.
Perdoo você como quem perdoa Judas.
Perdoo, principalmente, seus pra sempre.
E seus jamais.


Foto de Ken Cedeno:
Casa destruída pelo furacão Sandy em Union Beach-NJ (Outubro de 2012).

18 comments:

Tania regina Contreiras said...

Te disse: isso é um poema. E um poema belíssimo. Chame de crônica, mas chamo de poesia. E é uma alegria só saber que está escrevendo, outras pérolas como essa virão!
Beijo,mano querido!

na vinha do verso said...

sim
perdoar é ato solitário
e libertador
como a poesia

lindíssima crônica Beto
abração mano

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Sempre muito bom te ler, e cê sabe disso, como sabe disto: do difícil exercício de escrever bonito...

Um grande abraço,
do da rama.

Pólen Radioativo said...

Perdoo até esse meu fingimento de uma alma não devastada quando tento, diariamente, reconstruir o corpo de uma vida feliz.
Amei o texto, Beto!
Beijos...

Primeira Pessoa said...

e vamos reconstrinindo, reinventando, regenerando, como uma estrela do mar, Drica.

num lugar de cada ponta caída nasce uma outra, novinha em folha.

e a gente vai aprendendo.

beijo grande,

r.


Primeira Pessoa said...

da rama,
quem escreve bonito é você, jardineiro de fantasias de bom barro.

em outubro nos vemos.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

perdoar, marquinho, muito mais que libertador, ele é um ato exorcisador.

desabitam-nos os demônios.
um por um.

beijos

r.

Primeira Pessoa said...

taninha,
inicialmente a vontade era escrever uma letra de canção para o fred martins musicar. saiu este frankstein aí.

enquanto isto, a música espera por mim.


beijo,

r.

Concha Rousia said...

Perdoo vc, Roberto, por fazer-me chorar assim tão cedinho de manhã, que texto maravilhoso, vc a cada dia se tornando mais o grande Poeta que é, amei, acho que vou ter que ler de novo. Parabéns querido poeta-cronista. Abraços com muita saudade !!!

Primeira Pessoa said...

saudades de você, Concha Rousia, poeta galega de curacao brasileiro.

minas gerais espera por nós.

beijo maior do

r.

Carlos Borges said...

Amei Beto. Não sei porque você não larga tudo e vai fazer letra de música com seus muitos amigos "fodão". Você escreve justamente aquilo que a gente tá mais precisando e querendo. Beijo.

Primeira Pessoa said...

quem me dera, Carlinhos. mesmo porque, sou diletante, tentando aprender no serviço.
saudades de você, que foi visto pela última vez amanhecendo em Tóquio.

beijão,

r.

Ana Cecilia Romeu said...

Fala simpaticão!
Tá bonitona o teu escrito, meio verso, meio prosa. :)
Dizem por aí que "a experiência é um pente que se usa quando a gente fica careca", - acho que sim... Depois de um bom tempo é que descobri que é bom relevar certas coisas, afinal, de minha parte:o colesterol tá muito alto para incomodação desnecessária. E tá alto mesmo...

Deixo um abração do Pampas para ti!

Tô devagar quase parando nessa de blog, mas sigo mais um pouco.

Primeira Pessoa said...

ana cecília,
mil perdões por só ter postado agora o seu comentário. Estava trabalhando no 'bronzeado', em viagem, mas estou de volta, com muita vontade de escrever e retomar a prosa com vocês.


saudades, viu?

beijão,

r.

Suzana Guimarães said...

Otima cronica! Posso ve-lo escrevendo, o momento do impulso, e para onde seu pensamento voou. Li de uma vez so!

Abracos,

Suzana Guimaraes, Lily

Primeira Pessoa said...

Sou meio desorganizado também para escrever, Suzana. E a escrita, em mim, depende também de leitura. Se estou lendo alguma coisa é bem provável que produza alguma coisa, provavelmente alfinetado por algo que veja ou sinta. Não consigo escrever o que não vivencio.

beijão,

r.

Suzana Guimarães said...

É normal.

Primeira Pessoa said...

deveria ser, suzana.
cheio de imperfeições, perdoar, às vezes, me custa um braço.

sem o qual não abraço.

beijão,

r.