Wednesday, November 9, 2016

O brinco


(Para o Pitico)

Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, fui dividir um porão com um conterrâneo meu, o Pitico.
Ambos vínhamos de Governador Valadares, mas só ficaríamos amigos por aqui. Fomos amparo um para o outro, tomamos porres homéricos chorando a saudade de casa e transbordamos incertezas que não couberam nos nossos copos. Juntos, enfrentamos o banzo dos primeiros anos, a dificuldade da língua e a brutalidade da vida de imigrante. Tivemos um ao outro. Parecíamos irmãos.
Um dia Pitico apareceu em casa com um par de brincos, algo que começava a virar moda entre os jovens daqueles dias. Relutei, mas aceitei perfurar a orelha esquerda e colocar ali uma argola de ouro.
Relutei, porque sabia que aquele brinco não seria bem recebido em minha casa, lá no Brasil, já antevendo a reação contrária de meu pai. Mas aquele gesto dele selava uma espécie de fraternidade entre nós dois, algo que nos irmanaria para o resto da vida, como realmente aconteceu.
O relacionamento com meu pai sempre foi permeado por amor e rigor.  Se não faltava carinho, abundava também a incompreensão, fruto do conflito de gerações e da formação dele.
Ele era militar.
Eu era militante.
Filho do seu Antônio não andava cabeludo, não frequentava mesa de carteado e evitava más companhias.
Ele queria o meu cabelo curto, como o dele. E eu queria mudar o mundo fazendo parte de uma revolução.
Ele queria que eu entrasse para a caserna, como ele, mas eu já havia sido mordido pelo marimbondo das palavras.
Arriscar a vida em um país estrangeiro foi uma porta de saída para aquela incômoda situação. Tanto que, em 1984, eu me mudei de mala e cuia para Nova York.
Em 1988 tive que ir ao Brasil para uma entrevista de legalização no Consulado norte-americano, no Rio de janeiro. Seria a primeira vez retornando à terra natal, após um período de quatro anos de espera e toda espécie de provações.
Fui ao Rio, resolvi minha situação, mas antes, fui a Governador Valadares abraçar meu pai e rever os amigos que ficaram por lá.
O ônibus da Viação Gontijo chegou à rodoviária por volta de duas da manhã. Pude vê-lo ao lado de Bispo Filho, aguardando-me, com seus pescoços espichados, tentando me reconhecer detrás do escuro do vidro do lotação.
Desci as escadas e pude notar o sorriso de meu velho se desfazendo gradativamente. Aquele moço cabeludo que desembarcara não era o filho que partira daquele mesmo lugar alguns anos antes.
Quando nos abraçamos, logo após o pedido de bênção, ele sussurrou ao meu ouvido:
   - Tira!
   - Tirar o que, meu pai?
   - Esta aberração enfiada na sua orelha.
    Levei na brincadeira, prometendo que falaríamos sobre o assunto na manhã seguinte, o que aconteceu logo na mesa de café.
   - Filho meu não usa brinco, disse antes mesmo de desejar bom dia.
   Meu velho deixou claro que "homem de verdade" não usa brinco, reflexo de sua formação antiquada e da homofobia aprendida no quartel da polícia militar.
   Levei na esportiva e argumentei que índio usa brinco e ninguém duvidava de sua masculinidade.
   Ele não se comoveu.
   Apelei para os temíveis piratas, sanguinários, couraçados, invasores, 'machos pra caramba', mas ele nem se coçou.
   Não teve jeito. Tirei o adereço da orelha e o coloquei no bolso. Estava encerrada a sessão de tortura, o que acalmou os dois durante os quinze dias que fiquei em sua casa. Tentei usar o brinco na volta aos Estados Unidos, mas sempre me lembrava das palavras dele, até que decidi-aposentá-lo definitivamente.

    Quase três décadas depois, retorno ao Brasil para visitar meus pais. Estava sentado na varanda da casa bebendo uma cerveja, quando ele se aproximou. Sentou-se ao meu lado, com ar solene, e puxou uma conversa.
      - Filho, eu estive pensando.
      - Sobre o que, meu pai?
      - Sobre aquela conversa do brinco que tivemos há muitos anos.
        Fiz cara de paisagem. Não atendi aquela abordagem. Ao que ele sorriu, timidamente, antes de dizer.
     - Acho que você já pode usar brinco. Todos os artistas usam. Os jogadores de futebol também. E praticamente todos os rapazes daqui da rua usam.

 Achei bonito o seu gesto, mas, trinta anos depois, não fazia mais sentido.

     - Obrigado, pai, mas eu não sou mais um rapaz. Eu fiquei velho demais para usar brinco.
   
   Retornei aos Estados Unidos e, alguns dias depois, recebi a visita de Pitico, que não via desde o ano passado.
    Saímos para tomar um café e colocar a prosa em dia, pois ele está enfrentando bravamente um câncer no estômago. Alegro-me: ele está vencendo a a batalha. Está confiante.
    Olho para a sua orelha e o brinco colocado três décadas atrás ainda está lá.
    - Você continua usando o brinco, observei.
     Ele respirou fundo e devolveu com um olhar de decepção.
    - Estou. Mas você tirou o seu.
 
Nos despedimos, ele entrou no carro e se foi. Fiquei com aquilo na cabeça.
Naquela mesma noite, chegando em casa, pedi um brinco emprestado à minha e filha e reabri, na hora, o buraco que o tempo se encarregou de fechar. E em solidariedade ao Pitico, enquanto ele estiver em sua batalha contra a doença, eu o usarei. E talvez não o retire nunca mais.
Em solidariedade, é verdade, mas principalmente porque um pacto de irmandade para o resto da vida não deve ser quebrado. Ainda mais com a bênção de meu pai.

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9 comments:

Marcantonio said...

A escrita sempre intermediada pelo afeto. Característica de Roberto Lima. Ótima crônica.

E lembrei do que eu mesmo disse aos meus filhos ao ser questionado a respeito do uso de tatuagens, piercings e brincos:bem, pessoalmente eu não usaria, pelo meu gosto. Mas cabe a vocês decidir, e de preferência sem ser por impulso. Todos usaram brincos. Tatuagens até agora não.Veja só, isso não daria uma crônica interessante.

Abraço!

Pedro Brasil Jr said...

Parabéns pela sua crônica-relato. Gostei muito porque você adentra justamente nestas coisas que envolvem as mudanças de comportamento. Meu pai também era militar e radical em relação a muitas coisas. Se vivo fosse hoje eu acho que ele ficaria louco de pedro. Recordo lá nos tempos da Jovem Guarda a gana que ele tinha em relação ao Erasmo Carlos. Pense se ele tivesse vivido os tempos de um Cazuza e de outros tantos por ai. Mas talvez, a exemplo do seu pai, ele viesse interagir com o novo. Grande abraço e sucesso pra você!

Primeira Pessoa said...

Marcantonio,
sentia muita falta de nossas interações, nossos diálogos. Ainda bem que retonamos. Isto me deixa feliz.
Filhos, suas escolhas, temos que respeitar, mesmo que não seja exatamente aquilo que gostaríamos para elas. Estou aprendendo no serviço. E isto é difícil pra caramba.

Seva re-benvindo.

Abraço fraterno do

R.

Primeira Pessoa said...

O tempo amolece os corações, Pedro. Meu pai se tornou um homem mais macio, digamos assim. mas ainda tem arroubos de caserna. O amor se encarrega de tapar os buracos e fechar as feridas.

Abraço grande

R.

Tania regina Contreiras said...


Sem emoção não seria Roberto Lima. Pois então, até na orelha não deu certo comigo. Uma babá furou escondido da minha mãe, que ficou possessa, eu bebê. Fechou e fiquei anos sem ele. Aí furei e na adolescência quase lasquei de tanta coisa pendurada. Mas foi só. Já veinha...rs...um furo no nariz e recentemente uma fênix no pé, feita pelo melhor tatuador do Brasil: meu sobrinho! rs

Sempre bom te ler. Não há como não abrir o coração, mesmo quando ele parece emperrado pelas desesperanças. Um dos melhores cronistas que conheço, porque é POETA! Bjos, Beto!

Primeira Pessoa said...

Outra alegria, te ler aqui, Taninha. Com vocë e Marcantonio escrevendo aqui, nascem lírios e jasmins.
Minha esperança de revitalizar o blog renasce.

Beijos

R.

Aline /B. said...


Comoveu-me.
Queria dizer como me senti ao ler, mas nenhuma palavra parece boa. Também não foi possível ler e calar.. Que coisa! Que coisa!

Primeira Pessoa said...

Fico feliz que tenha gostado. Volte sempre que quiser.
Abraço grande do
Roberto.

Suzana Guimarães said...


Quando fazemos muito em pouco. Talvez seja um dos motivos de tantas reencarnações (bom, eu creio), essa chatice de aumentar. Era só um brinco, nada mais, mas o mundo precisou dar dezenas de anos de voltas para que ele assim fosse assimilado, um brinco, somente um pequeno adereço, nada de principal.

Beijos!