Thursday, October 12, 2017

Papoulas de Kandahar: crônicas com sabor de poesia


(Por Wilson Pereira)

Há alguns anos, numa noite de alegria e confraternização, na casa do inesquecível e sempre querido amigo Jorge Ferreira, desses cujo selo da amizade fica para sempre grudado em nossa memória e em nosso coração,  eu conversava com o Ziraldo. Falávamos de livros e de poemas que nos tocam o fundo da sensibilidade. Quando citei algo – não me lembro se um livro ou poema – ele me saiu com essa tirada bem própria do seu humor e de sua sinceridade artística: “hoje eu tenho um critério para gostar de um texto: é sentir inveja”. Captei imediatamente o sentido da palavra “inveja” e vesti a carapuça.
Desde então eu me lembro do Ziraldo muitas vezes. Se eu fosse músico, compositor principalmente, gostaria de ter feito “Tocando em frente”, de Renato Teixeira e Almir Sater. Também gostaria de ter feito “O que é o que é”, de Gonzaguinha. E, ainda, de ter feito quase tudo que o Chico Buarque fez como compositor. Aliás, por falar no Chico, ouvi certa vez uma “sacada” singular em termos de inveja: o sujeito dizia: o Gilberto Gil é genial, o Caetano é outro monstro. Queria ser músico como eles. Agora, o Chico…  O Chico, eu queria era ser ele.
Enfim, o que o Ziraldo quis dizer – e disse, porque para bom entendedor uma vírgula é letra – é que: isso é bom demais, isso me preenche, isso me arrebata, me esfola e me acaricia a alma artística.
Pois bem, quando leio uma crônica de Roberto Lima, sinto essa espécie de inveja: como eu gostaria de escrever crônicas assim.
Roberto Lima está lançando seu primeiro livro de crônicas: Papoulas de Kadanhar.  Livro primoroso,  que nos puxa do fundo de nós para a luz solar dos olhos, pela isca das palavras. Não há como não se emocionar com a leitura de “Aretha Franklin e Deus”, em que o autor, com intervalos de ironia como este “Mas nem só de Aretha Franklin vive o ‘Todo Poderoso’. Quando Ele cansa e cochila no serviço, acontecem Tsunamis, Fukushimas, golpes de Estado, negociatas de corrupção e gols contra no futebol”, discorre sobre a divina cantora e ainda faz ilações filosóficas e líricas, da mais pura e elevada poesia, sobre a existência de Deus.
Roberto Lima, coração aberto e disponível, tem o dom de fazer amigos. Muitas de suas crônicas são um tributo à amizade. São relatos, poéticos e bem humorados, de encontros e episódios com amigos, muitos deles  celebridades, como Gonzaguinha, Raul Seixas, Guarabira, entre outros. Alma sensível e melódica, é com os músicos que tem mais proximidade. Mas também, poeta que é, além de cronista, com livros publicados, tem convivência afetiva com escritores. Exemplo é a crônica “Veríssimos”, em que conta sua aventura embevecida de acompanhar o escritor Luís Fernando Veríssimo em Fort Lauderdale (EUA).
Humor, ironia e poesia percorrem os textos de Papoulas de Kadanhar, do início ao fim. Humor, para citar só duas passagens: “ O homem não aprenderia a sorrir com o rabo, nem se tivesse um”. (“Bom mesmo é ser cachorro”, p. 59). Outra: o final da crônica: “ As muitas vidas de  Gutremberg Guarabira” (pp. 30 a 33)
Ironia (e ainda humor), como na primeira das crônicas acima citadas:
“ Pesquisei na internet e descobri que existe tratamento holístico para depressão canina. Devem ter aprendido com o homem o truque da tristeza.” E essa conclusão (ainda da mesma crônica): “Ao contrário do ser humano, o cachorro parece ser uma raça em franca evolução”.
Poesia é o que não falta em Papoulas. Há muitas metáforas e sutilezas semânticas  incrustadas nas narrativas.
E ainda existe, nas crônicas de Roberto, sem nenhum proselitismo ou filiação idiológico-partidária, um compromisso com o bem: com os direitos humanos, com o respeito pelo outro, com a preservação da natureza, com a necessidade de paz,  com a justiça e, sobretudo, com a crença num mundo melhor.  E tudo isso elaborado e afinado com o mais elevado tom literário.
Roberto Lima dignifica essa espécie literária, consagrada por Rubem Braga e, também, por nomes como Carlos Drummond de de Andade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende.
Por fim, penso que Papoulas de kandahar exalam, sobre esses tempos de vergonha política, aromas de bondade e poesia.


*Wilson Pereira é poeta,
cronista, contista, ensaísta e autor de livros para crianças e jovens

2 comments:

Pólen Radioativo said...

Nossa!!! Tudo que eu e todo mundo que conhece o Beto Lima queria ter escrito sobre ele, sobre o livro e sobre a lindeza que é ter um escritor/poeta/jornalista/contador de causos e cozinheiro de mão cheia como amigo.
Beijo, Beto!

Primeira Pessoa said...

Adriana, Wilson Pereira é um dos maiores poetas do Brasil e as palavras escritas por ele me deixaram muito feliz. Fico feliz pelo seu apreço e retribuo com afeto e gratidão.
Beijão,

R.