Wednesday, November 25, 2009

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Pequeno Exercício
Para a Alma (Fazenda)


Bom mesmo teria sido acordar com o canto do galo. São seis da manhã. Fecho momentaneamente os olhos e em algum lugar um cachorro late e um carro barulhento ronca o seu motor. Deve estar a quilômetros de distância, mas parece ziguezaguear dentro de meu cérebro. O breu da madrugada oculta o poeirão que cobre a folhagem do capim que margeia a estrada. Posso imaginá-lo amarelando tudo.
Sei que escutar a sinfonia serelepe dos primeiros passarinhos, ainda rolando na cama, dá uma sensação agradável. É como se uma substância que causasse, ao mesmo tempo, euforia e tranqüilidade, fosse injetada na veia ‘da alma’ da gente. E aí, sentir o cheiro de café que escorre do bico do coador de flanela até definhar, transformando-se em pingos esparsos, deixando para trás uma borra escura agarrada ao fundo do saco.
E só então levantar da cama, calçar os chinelos e, ainda de pijama, tomar o lugar à mesa.
Temperar o café com a raspa da rapadura, misturar nele a brancura do leite gordo, tirado momentos antes da teta de alguma vaquinha generosa.
Saborear a coalhada, o queijo, o melado da cana respingado sobre a batata doce, assada no forno à lenha.
Comer a broa de fubá, o pão de queijo ainda quentinho, os biscoitos doces e salgados, a brevidade, a geléia de jabuticaba espalhada no pão, e as frutas que no dia anterior adornaram o pomar.
Escolher entre mangas, laranjas, pêssegos, cajás, mexericas, jambos, pitangas, caquis, frutas-do-conde, carambolas...
Escavar um gomo daquela viscosa e (perfumada!) jaca, que se oferece no canto da fruteira...
E, só aí me levantar da mesa e tomar o destino da vida. Antes, um ritual:
Sentir o orvalho no gramado sob os meus pés e perceber, no jardim, o momento em que ele desliza, quase uma lágrima, na pétala de alguma flor.
E essa gota cristalina poderia estar percorrendo o vermelho de algum hibisco, ou o branco de uma margarida, linda em sua simplicidade.
Perto dali, galinhas ciscam no terreiro e uma andorinha estica o pescoço pra fora de seu ninho, construído no vão da madeira que suporta o telhado da varanda.
Um bem-te-vi canta na vizinhança, um tiziu pula na cerca, e um bezerro desesperado berra à procura da mãe.
O João-de-barro passa apressado, num vôo rasante.
Leva no bico um pedaço de capim.
Sua casa no alto do jenipapeiro já ganhou forma. Em breve estará na fase do acabamento.
Um vaqueiro chega e acena de sua montaria. Vai cercar o gado. Mas não tem pressa.
- Ô, malhada..
- A-ê-ê, estrela...
- Ô-ô, dengoso!
Na beirada do riacho uma garça espeta um lambari, que desce pelo pescoço comprido, numa agonia prateada...
E a ave o engole com facilidade, como se nem um “glup!” fizesse.
Por alguns segundos, acho que fazenda é o playground de Deus.
E a vida pulsa em todo lugar.
Raios de um sol inigualável se refletem na água, dourando e embelezando o deslizar animado dos patos, dos gansos e dos marrecos...
Uma moça ainda nova passa com uma trouxa de roupas sobre a cabeça. Suas cadeiras balançam como se ela ouvisse um samba.
Em breve escutarei a roupa sendo batida na pedra, ritmando definitivamente o seu ritual:
- Plaft, plaft, plaftz...
E as lavadeiras cantam.
Quatro meninos nadam fazendo algazarra.
Na porta da cozinha outra moça cata o arroz em uma peneira de palha. Está concentrada, separando o joio da jóia.
Um rapaz passa a cavalo.
E uma anciã atravessa vagarosamente o quintal. Está amparada por uma bengala feita de cana-da-índia. Está indo para algum lugar.
E eu?
Bem... Eu estou à boca de entrada do Lincoln Tunnel, esperando impacientemente a minha vez de fazer a travessia que me levará a Nova York, oposto de tudo o que imaginei e descrevi nesta crônica, parida com o único intuito de não me deixar enlouquecer no trânsito desta metrópole.
Ah, antes que me esqueça: são seis horas da manhã.

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