Saturday, November 21, 2009

.
Frágil coração de poeta

Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar. O meu deu um grande susto na semana que passou. Estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir. Foi quando senti aquela pontadazinha no peito. Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre. Não era. Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer. Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava. O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha. Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para escrever um poema num muro qualquer. O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu. Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”. Homem evita tocar nesses assuntos.
É como se um vampiro escutasse alguém pronunciar “alhos e bugalhos”. Ou Disábato diante de um prato cheio de bananas. Ou, ainda, George W Bush recebendo pela Fedex um pacote de Osama. Mas, ali estava eu, na contra-mão da história, sofrendo por assuntos periféricos, que não mereciam mais a atenção. E enfartado.
No escuro do quarto de hospital depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração, costuma chorar numa situação dessas.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, nos que verdadeiramente me queriam bem e nos que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner. Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso. Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola. “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.
Mais um calafrio.
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias. Eu não havia, verdadeiramente, enfartado. Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo. Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte. Após uma semana sob observação e transformando minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado. As enfermeiras, acostumadas a lidar com velhinhos descendo a serra e suas bocas sempre abertas, abandonaram por alguns dias a sisudez e o pragmatismo pelos quais elas são conhecidas, e entraram no samba do mineiro doido. Foi quase uma festa.
Fazia muito que as moças do Saint Barnabas não cuidavam de um paciente tão pirado. Uma delas chegou a sugerir que eu estaria na ala errada. A de psiquiatria ficava no outro extremo do grande complexo hospitalar de Livingston. Se não deixei saudades, terei deixado alívio. Vou enviar flores e chocolates qualquer dia destes. Junto com meu pedido de desculpas, obviamente.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca. Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis. Caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística. Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração. Segundo Kledir, se dá certo no computador, deve dar certo na gente também. Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire. Esses, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.

.

2 comments:

líria porto said...

faz anos, tive uma virose - miocardite!

se é o mal dos poetas, é isso que quero, morrer como um passarim!

Primeira Pessoa said...

ao poeta, a morte pelo coração.
ao peixe, a morte pela sede.

já notou que os poetas, em geral, possuem zóios de passarim.
viver e morrer como um... glória!

faz sentido?
ah, sei lá... rs
a poesia, sim... essa faz todo o sentido.

Abração do
R.