Viagem na boléia do tempo
Venho a Minas Gerais por um motivo diferente. Venho dar uma força a meu pai, que há alguns dias teve um derrame cerebral.
Ainda nem aterrisei no aeroporto internacional de Confins, e uma sensação estranha começa a tomar conta de mim. Lá de cima, as montanhas mineiras ganham uma dimensão de beleza para mim, filho da terra, que é impossível descrever em palavras.
O sol brilhante fabrica sombra em árvores, transforma riachos e lagos em espelhos de prata, realça a trajetória de uma caminhonete levantando um poeirão na estrada.
Para onde estará indo essa caminhonete? – pergunto eu.
Durante alguns segundos, pego uma carona e, na boléia da caminhonete, saio "passeando" pelas Gerais.
Minha primeira parada é Ouro Preto, lugar que ocupa a prateleira de cima entre todas as minhas lembranças.
Passear sobre mortos em igrejas pintadas de ouro pode parecer estranho, e é. Mas amo demais esta cidade, que é a minha Paris, minha Pamplona, minha Nova York e minha Quebec, tudo reunido numa só.
Subo e desço ladeiras, as ruas apertadas, o chão de pedras lisas, colocadas ali por mãos escravas.
Entro na casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga e de sua janela quase consigo ver a cabeleira de Marília de Dirceu, crina de égua ao vento. Quero ficar pra dormir, mas a caminhonete da saudade não pode parar.
E é assim que, em alguns instantes, estacionamos na boca de entrada da gruta do Maquiné. Um rápido tour, os olhos cheios de beleza que a natureza esculpiu ao longo de milhares de anos, e já estou pronto para uma visitinha à casa onde viveu um certo João Guimarães Rosa, em Cordisburgo.
Sento-me na cama onde dormiu o criador do Grande Sertão Veredas, bebo café numa caneca de esmalte descascada pelo tempo.
Despeço-me do lugar onde viveu o escritor e já estou na Governador Valadares da minha história, comendo cascudo frito e carne-de-sol - de dois pelos - de Frei Inocêncio (acompanhada de mandioca cozida e manteiga de garrafa), bebendo cerveja estupendamente gelada num bar, enquanto asas-deltas e paragliders fazem um bailado colorido no céu.
Ali, com amigos de infância, bebendo uma boa pinga de alambique, tricoteando brincadeiras de um tempo que se foi, sou de novo um menino, correndo atrás de uma bola de meia, soltando pipa, levando à tiracolo um embornal cheio de bolinhas de gude.
Muito mais que isto, sou um homem correndo atrás de mim mesmo, como um cachorro rodopiando, tentando morder o próprio rabo. É assim a trajetória do homem, insistente em passar o resto de seus dias correndo atrás do menino que um dia foi.
E amanhecer na Serra do Caraça, passar a tarde num vapor do Rio São Francisco, escutando estórias de pescador.
Anoitecer em Diamantina e participar das serestas das noites de quinta-feira em Montes Claros, quando o mercado municipal se fecha para as vendas, e reabre para receber a população para uma cantoria de respeito.
Violões, cavaquinhos, tambores, pandeiros e flautas: a voz brotando dos pulmões num entusiasmo que te leva a abraçar estranhos, irmãos em outras vidas, e te dá uma indescritível alegria por saber, de cor, a letra de preciosidade como essa aqui:
“A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
costuma se embriagar
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol, num dourado sonho
Vai Claridade buscar” (...)
E acordar, nas cercanias de Belo Horizonte, lugar onde vive meu pai.
Sentar-me com ele à mesa, beber queimadinho, comer pão de queijo e biscoito de polvilho e um naco de broa de fubá.
Ver que ele está bem, lúcido, ligeiramente ranzinza, sem acusar nenhum resquício do acidente vascular que quase o levou de nós. Consigo sentir o seu cheiro...
Mas um barulho metálico me traz de volta ao mundo real.
A aeromoça anuncia que pousaremos em segundos. Aperto o cinto de segurança e retorno a poltrona à sua posição inicial.
Viro o rosto e, da janela do avião posso avistar ainda, lá em baixo, a caminhonete sumir no meio do poeira e da minha imaginação.
E o meu coração bate apressado, como o de um menino saudoso, que não vê o momento de abraçar seu pai.
*
5 comments:
id
líria porto
há dias que sou assim
a sombra da minha sombra
e meus pés pisam repisam
as minhas próprias pegadas
sei curvas sei obstáculos
não sei porém desviar-me
passeio sobre meus passos
caminho nos descaminhos
erro sempre os mesmos erros
repito as mesmas palavras
soçobro em minha sombra
sou nesga do meu passado
*
Liria, você, poeta de imenso talento. Sou seu fã!
Fico honrado com suas visitas ao meu cantinho.
Oi, tudo bem?
Gostei muito do teu blog, parabéns.
Sill
* Agora que me dei conta que fica fazendo download direto de uma música do Milton, enquanto eu olhava aas postagens do blog ela baixou 6 vezes no meu computador.
Sill,
passei pelo seu blog, lindíssimo! parabéns. Visitarei sempre.
Não entendi quando diz que meu blog fica "baixando" a música. está programado pra tocar, diretinho... cada semana coloco uma musica diferente...
aliás: como descobriu meu blog?
abraços,
Roberto.
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