Saturday, March 12, 2011

4 Poemas de António Franco Alexandre

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Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
já te espantou o lume, quando viste
uma língua no sonho da saliva,
e te riste, de ser tão branco o sangue
que nas beiras da noite adormecia.
Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma humana
e resolver enfim, mas para sempre,
se ser o sacro emblema do horror
ou o primeiro verso de um poema


**

Duende
Assírio & Alvim, 2002

quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.


Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999


**

Ocupam-te as nuvens, bem vejo
como te cega a dimensão da água,
como ordenas os quartos e os rios
a mesa da brancura e os limites

na rua continuam perguntando
que nome melhor rima com a boca
bem sei que te distraem os cargueiros
a dobra da janela nos cabelos

um sopro é a avenida o horizonte
rasgado pelo meio


A Pequena Face
Assírio & Alvim, 1983


**

Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

A Música Que Toca Sem Parar:
de meus becos mais escuros fui buscar Ooh Baby!, com o grupo Gamalon.

17 comments:

ÍndigoHorizonte said...

Me gustaron, sobre todo, los tres primeros pero si tuviera que quedarme con uno de los cuatro, me quedaría con el primero, porque, hasta en el más horrendo horror, sigue vibrando la poesía. Un abrazo y feliz domingo.

Primeira Pessoa said...

"quede-se con todos, indigo".

por que não?

são todos seus.
presente da poesia pra quem aprecia.

abração do

r.

Tania regina Contreiras said...

Olha que nesses becos mais escuros tem coisa muito boa, heim?
Os versos? Ah, como se pode não gostar???
Beijão, Roberto!

OutrosEncantos said...

oh baby Roberto!...
obrigada...
que poesia fabulosa!
um poeta fantástico que eu não conhec ia...
amei o sentir que me chegou da pessoa que parece ser!
quero esses livros para mim, também.
beijo!

Primeira Pessoa said...

taninha,
conheci o gamalon numa época muito doida, de muitos exageros de minha parte. naquele período, chegava a ficar 5 dias dormindo duas, 3 horas por noite... eu queria devorar a noite, tornei-me figurinha carimbada da boemia do east village, em NY.
escutei a musica hoje, após muuuuitos anos...e foi uma viagem cheia de piruetas ... rs.

beijão do

roberto.

Primeira Pessoa said...

moça do outrosEncantos,
antonio franco alexandre é das melhores coisas que a poesia em lingua portuguesa contemporânia produziu.

é biscoito fino.

beijao do

roberto.

Unknown said...

"uma espuma de cinza em muita" mãos, oh etéreo que faz viajar, há tanta poesia a ser lida e ainda bem que elas nos chegam assim,


abraço

Primeira Pessoa said...

é bem assim, assis... quando achamos que tudo ja foi dito e escrito, aparece uma nova imagem, reinventam o sentir, reescrevem o verbo...

há tanta poesia a ser lida.
há tanta poesia por escrever.

abração do

r.

Tania regina Contreiras said...

Cheguei, enfim, mas agora pelo dia nacional da poesia, para dizer OBRIGADA a esse poeta cheio de prosa e que sabe, como ninguém, mexer com nossos corações profundamente.
Beijo, Roberto,
E Viva a Poesia!

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Poesia, escrevem-te Assis Freitas e Roberto Lima...
Saudade de vir-me aqui, rapaz, pelo menos de comentar toda vez que venho, que venho toda vez que tem biscoito novo na vitrina...
Aqui é "Minha Pátria, Minha Língua", sotaque que escuto longe...

Abração de admiração maió,
Da rama.

Primeira Pessoa said...

da rama,
quando cê some, isso aqui fica meio sem graça.
fico feliz de ver-te-ler-te por essas mirradas plagas.

beijão do seu amigo
roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
quem tem que agradecer sou eu.
você, sua generosidade e carinho estão mantendo esta portinhola aberta.
saiba disto.

beijão do

r.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Bob, o António Franco Alexandre escreve como gente grande.
Sensibilidade à flor da alma.
Parabéns por mais esta seleta d'além mar.
Em tempo: onde fica a rua da Aurora?
Na região central?
Há braços, meu bom.

Primeira Pessoa said...

PJ,
qualquer motorista de táxi de sampa conhece o bar do léo. é uma lenda. melhor chope do brasil.
sim, fica na região central da cidade.
vá, eu recomendo.

abração do

roberto.

Luciana Marinho said...

achei tão belas essas evocações à vida, ao verbo para restituir mundos..

"Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma humana"

beijoca, roberto.

Primeira Pessoa said...

luciana,
esses caras sabem desta língua com nuances que nós, brasileiros, ainda não descobrimos.

ainda bem que somos relativamente jovens, né?

beijão do

roberto.

Charles Burck said...

Pois é Roberto, zombamos dos amigos portugueses, mas tenho lido lindíssimos blogs, e a cada dia mais encantado com a cultura portuguesa, Herberto Helder
António Franco Alexandre, Joaquim Pessoa , Rosa Maria Ribeiro, os blogs verdades indômitas, arquivos fantasmas, no vazio das ondas, quisera dizer-te...passo horas a vasculha-los e nessa busca dei aqui, gostei muito, assim como gosto muito de Portugal, gosto de Minas Gerais, tenho amigos em JF, Rio Novo, Mirai, Goianá. Também escrevo, estou na luta desde 2008, se puder dê uma olhada no meu blog, tem algumas coisas bem legais, rsss, um abraço, fica bem

https://charlesburck.blogspot.com.br/2016/12/apoesia-adula-o-dia-os-meus-olhos-vazam.html