Monday, June 20, 2011

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Quero a Fome de Calar-me


Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança



in "Dos Líquidos"


Há uma Mulher a Morrer Sentada


Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens


Daniel Faria, in "Dos Líquidos"


3

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, da operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


In, Homens que são como lugares mal situados



A Música Que Toca Sem Parar

letra de Ronaldo Bastos com melodia de Celso Fonseca, O Tempo Não Passou.


Vou te escrever pra falar de new york
Não vim aqui esperar pelo fim do mundo
Estou feliz no postal de new york
E tudo mais e a saudade cortando o fundo
Quando acordo lá pra as três da madrugada
Sinto um anjo vir rondar meu cobertor
Colo a boca sobre a pele da vidraça
Sinto as mutações do tempo a meu favor
Não sou ninguém sem voçê em liverpool
Ou numa ilha dos mares do sul
Olho o relógio e as horas não passam por mim
Num cartão postal o tempo estacionou
Parou seu carro no drive-in
Pra nós o tempo não passou!

22 comments:

Tania regina Contreiras said...

...eu fico com "uma mulher cantando para que o homem possa respirar...". É tudo!!!
Beijos, Roberto...

Primeira Pessoa said...

taninha, acho que é meio isso, a vocação de ulisses dos hopmens, a vocação de sereia das mulheres.

daniel faria era um seminarista que sabia muito de algo que não fariaparte de sua vida.

morreu jovem demais.

abraço grande desse seu amigo de sempre, o

roberto.

Nina Pilar said...

muio bom, muio bem construída, andas a uma velocidade, caleidoscopicamente "As estrelas como as pinhas fechadas" os pinheiros sempre verdes, embora seja inverno, e suas pinhas são como estrelas cadentes. a vida é curta demais pra que deixemos estacionadas.
gostei, e não poderia ser diferente.

abraços fartos
beijo, e uma ótima semana.

Primeira Pessoa said...

daniel faria é um dos maiores poetas de língua portuguesa em todos os tempos.
pena ter nos deixado tão moço.

afeição retribuída do

roberto.

Sopro Vida Sem Margens said...

Poesia selecta e de um compasso que me deixou trémula.

Melodia que tocou sem parar..Excelente!

Grata.Grata pela partilha*

Um beijinho
da
Assiria

ana p said...

A poesia desde senhor é mesmo uma coisa do outro mundo...
Bj Roberto

Primeira Pessoa said...

magnólia,
uma surpresa agradabilíssima a sua visita.
ha muito não te via por aqui.

grande abraço do

roberto.

Primeira Pessoa said...

assiria,
fico feliz que tenha gostado.
a poesia de daniel faria é especial, sim, e um dever cívico compartilhá-la com o mundo.

grande abraço do

roberto.

MA FERREIRA said...

Roberto..
Até respirei fundo antes de fazer meu comentário.
Adoro poesias. Adoro a magia do encanto das palavras , que reunidas
tocam meu coração.
Lindas poesias.
As vezes as leio como se estivesse apreciando um quadro abstrato. Nunca sei se a minha interpretação é a correta, mas nem por isso me intimido. A minha subjetividade me basta. Aliás, o que é correto?

Parabéns pelas suas belas escolhas!

bj

Ma Ferreira

Primeira Pessoa said...

ma, acho que voce está certa.
o poema está aberto à intepretação de quem lê.
essa é uma forma de autor e leitor construírem uma espécie de parceria.

grande abraço do

roberto.

Unknown said...

Roberto!

Gostei de conhecer os poemas de Daniel Faria!

Algo assim diferente, mas transpõe a alma.

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

mirze,
daniel faria é muito apreciado. fico feliz que o tenha apresentado à obra dele.

tem muita coisa legal, de sua lavra,espalhada aí pela blogosfera.

abraçao do

r,

Zélia Guardiano said...

Amigo Roberto
Que poeta o Daniel Faria!
Fico muito emocionada quando leio algo como esses poemas, soberbos, sabendo que foram escritos por um jovem...
Dá-me impressão de que ele criou essa maravilha toda, correndo, correndo, entevendo a breve partida...
Tudo tão lindo, a ponto de dar um friozinho na boca do estõmago da alma.
Grata, amigo, pela lindíssima oferenda!
abraço da
Zélia

Anonymous said...

Bjs e uma ótima semana pro cê!

Primeira Pessoa said...

salve, fátima!
que sua semana seja igualmente boa.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

zélia,
ainda bem que nem todos os bons poemas morreram jovens, ne?

mas concordo com você: a obra de daniel é muito intensa, quase um presságio.

abração do

roberto.

Unknown said...

Daniel Faria, Ronaldo Bastos craques em suas searas. Outro craque o Pedro (das ramas) dedicou-te poema, e ao Manassés dedilhou líricas - ainda havemos de brindar mais palavras


abraço desse sertanejo em noites juninas

Primeira Pessoa said...

eu ja conhecia o poema, zé de assis.
mandei pro manassés, ontem. ele respondeu, hoje.

festa junina? aí no nordeste é um trem bão de doer.

bebe duazinhas por mim. mas da boa!

beijão,

r.

Anonymous said...

Seu nome diz tudo, sinto esquecer meus problemas aqui. Seu perfil seria o que talvez queria descrever... Temos gosto em comum... A música age em perfeição... lindas escolhas , lindas palavras

Primeira Pessoa said...

michelle,
as pessoas se tornam amigas pelas afinidades.
seja bem vinda ao primeira pessoa.

fico feliz que tenha gostado da recolha, e da canção.

abraço grande do

roberto.

Jorge Pimenta said...

daniel faria é das vozes mais surpreendentes da poesia portuguesa dos últimos anos, não te parece?
abracílimo!

Primeira Pessoa said...

daniel faria se eternizou em tão pouco tempo, jorgíssimo.
queria ser padre, por entender demais a alma humana, a alma desses homens do mundo.

saúdo voc6es dois!

abração,

roberto.