Tuesday, September 20, 2016

Ensaio miúdo sobre a brancura da inveja


(Para as poetas Jô Diniz e Ana de Istambul)


Passo de carro e os vejo emparelhados. Existirá na vida aquilo que chamam de inveja branca?
Sim, existe.
E eu a conheço, tenha ela a cor que tiver.
Falo o seu idioma.
Domino seus desdo­bramentos.
Comungo da hóstia amarga dos invejosos, mas minha inveja não é daqueles que conseguiram mais e melhor.
Não invejo os campeões, os brilhantes, os ricaços, os bem nascidos e os bonitões.
Minha inveja é dele e dela, que vejo do outro lado do parabrisa .
Ele e ela, que caminham pelas ruas como que encantados por um violino imaginário.
Dele e dela, ela e ele, que poderiam ser outros quaisquer, que não estes.
E a minha inveja é de não sê-los e de não tê-los sido.
É inveja da inocência e da inconseqüência.
Do verdor, do frescor, da ausência de noção do perigo. Inveja da forma como eles amam.
O amor na juventude é o melhor amor que existe, posso assegurar.
Ele é chama que não se apaga e vive para sempre em quem o viveu, ainda que, agora, em fantasmagórica saudade.
Na outono da vida o amor parece não existir mais. Evapora, feito éter.
Mas eu falava dele e dela. E eles estão de mãos dadas numa avenida que conduz ao futuro que eles não sabem ainda ser incerto. Ele e ela de mãos dadas na praça.
Ele e ela num banquinho, as mãos entrelaçadas e o pedido feito ao meteorito que riscou o céu.
Ela lhe oferecendo a lua branca e cheia. Ele batizando uma estrela com o nome dela.
Toca uma balada romântica de Cazuza ao longe e aquela é a música que lhes embala a noite e tudo o que lhes foi prometido por Deus. Qualquer deus.
Na noite que cheira a jasmim e a grama verde, recende também a lavanda do pescoço dela e a água de colônia do queixo dele.
Beijos que se multiplicam como peixes, afagos que se perpetuam, pele que arrepia e o planeta ficou zonzo. A Terra parece ter parado de girar. E eles se amam como se não existisse o amanhã.
Para que nos servirá o amanhã? – pergunto eu.
Para que o amanhã, se a felicidade reside aqui, urgentíssima, agora, no carinho deles?
Vejo que ele apanha uma pedra no chão. Tem o formato de um coração, imagino. Diamante mais verdadeiro.
Ele dá pra ela a margarida que roubou do outro lado da grade E um anel de flandres, feito da tampa do copo de água mineral, que ela promete guardar pra sempre.
Em troca ela lhe oferece o ombro. Insinua o colo. E ele lhe garante ter dois bilhetes – de ida – para o paraíso.
Ele e ela sem medo de amar…
Ele e ela sem medo da felicidade, ou daquilo que algum adulto sem graça batizou de medo de ser feliz.
A graça de ser jovem existe, acima de tudo, porque os jovens não conhecem o medo. E há tempo de sobra para recomeçar do zero.
Eles desconhecem o desgaste, a rotina, os filhos e suas necessidades, o tempo que passa cruel e pontualmente e as pequenezas envolvendo dinheiro, pagamentos, prestações, ambições profissionais e a incorporação de bens.
Benditos sejam aqueles que conseguem, por um dia que seja, amar na idade madura com a graça, fúria e inocência dos jovens de ontem, de hoje e de sempre.
Benditos sejam eles. Benditos sejam...
Amém.

6 comments:

Lídia Borges said...


"Para que o amanhã, se a felicidade reside aqui, urgentíssima"

Sim, para quê?


Bj.

Lídia

Primeira Pessoa said...

Lidia, querida, o amanhã, às vezes, se torna uma paisagem distante. Apreciemos a janela do agora.

Grande beijo do

r.

Bandys said...

Uma doçura de texto.
Tem dias que recolho os pedaços de mim e me vejo na cortina dos olhos, pendurados nos cílios e ao fechá-los tudo vira filme, a memória é a tela. Que o dia traga os retalhos da vida, pra eu bordar com fios de seda as lembranças tatuadas no avesso da alma. Hoje, somente hoje.
Beijo

Primeira Pessoa said...

Bandys,
sua passagem por aqui é sempre um motivo de grande alegria. Desde sempre.

Beijo grande do

R.

Silvana Conterno de Oliveira Rodrigues said...

Gostei muito! Belo texto!
Tão verdadeira essa inveja! O frescor de não saber nada das outras estações da vida. Uma bolha colorida dançando no ar diante do nosso olhar!

Primeira Pessoa said...

Silvana,
a natureza humana também foi dividida em quatro estações, já reparou?
Grande abraço

r.