Tuesday, May 15, 2012

O absurdo das febres


Erasmo Carlos escreveu brilhantemente num de seus grandes sucessos que é uma mentira absurda, a disseminação da informação de que a mulher é o sexo frágil. Concordo com ele e nem me estenderei demasiadamente nesse tema.
Ater-me-ei ao fato de que as mulheres são mais resistentes à dor, que os homens.
Já imaginaram se homem parisse um filho?

Não consigo sequer imaginar. Entro em pânico.
Eu, que nesse dia plúmbeo e cruel de segunda-feira, sinto-me extremamente fragilizado por uma gripezinha de nada.
Eu, que passei o final de semana no estaleiro, de moletom e pantufas, bebendo chazinho, tomando caldinhos quentes e desejando voltar pra dentro da barriga de minha mãe.
A gripe é uma das coisas mais desmoralizantes que existem.
Retorno à infância, sempre que gripo.
Quanto maior é a gripe, maior é a viagem no tempo. Maior é o inferno portátil, esse inexplicável purgatório de bolso.
Abandono-me ao recolhimento de um edredom de espinhos, construo uma espécie de casulo, quase um cocoon e fico ali, recolhido, encolhido, delirando de febre, desejando que minha genitora apareça pela porta, trazendo um prato de canja de galinha bem quentinho, ou um chá de flor-de-laranjeira, fumegando na xícara.
Escrevo essas mal traçadas e consigo sentir o perfume do chá, quase queimando a língua, o palato da lembrança.
A febre me queima a face e penetra a pele, impiedosamente.
É sempre assim. Deliro.
Vejo monstros saídos dos lugares mais fundos da minha alma.
Saem dinossauros, dragões, aquela professora primária que tinha uma palmatória implacável, e que aparecia sempre que eu aprontava alguma traquinagem ou desaprendia as lições de tabuada.
Nesses momentos de febre e reminiscências, recolho-me a dias de chuvas intermináveis em que eu ficava na soleira da porta soltando barquinho de papel nas águas da enxurrada.
Dias em que o barulho dos passos das pessoas no assoalho de madeira dos demais cômodos da casa, entravam em meus ouvidos como sinfonias fantasmas.
Dias de arrepios, calafrios, suadouro, pijamas de flanela, cedros escurecidos, mangueiras indecifráveis, caminhos incompletos, a desenvolver o imaginário num traçado incomum.
Dias que se prolongam em longas quarentenas de imagens desenhadas em um oásis amanhecido, num erguer de asas, a face rubra a brasa, o coração em desalinho...
Dias em que tento encontrar no anjo perdido de minha infância, os sorrisos largos, o olhar inocente e iluminado de menino, com a ingênua vontade de entrar na floresta de João sem medo, e não andar espantado por meramente existir, adulto.
E pintar com as minhas cores o momento fugaz de uma experiência nova, fazer-me dono da luneta mágica, construir meu próprio castelo, tocar com as mãos o pote mágico de ouro no final do arco-íris, como quem acaricia um poema.
Mas a febre continua profunda, dominante, esmagadora.
As lágrimas desse abandono correm soltas em algum lugar de mim – homem feito -, num incômodo que me consome a alma, como os áridos campos que clamam pela chuva providencial.
Cai o pano escuro da noite. Descortina-se o sol.
Nesse novo dia de janelas abertas sobre a minha vontade, levanto-me com as cores que uso nas noites claras de quando estou bem e uma canção, uma imagem, saúda-me com as cores inconfundíveis da Primavera.
Sim, é primavera na América do Norte.
É Primavera, de novo, no meu coração.
Raios de sol. Um pequeno milagre.
Renasço das cinzas e do absurdo das febres.
Açucenas bonitas brotam da palma da minha mão.

36 comments:

Andrea de Godoy Neto said...

ô, olha que poema bonito:

"Sim, é primavera na América do Norte.
É Primavera, de novo, no meu coração.
Raios de sol. Um pequeno milagre.
Renasço das cinzas e do absurdo das febres.
Açucenas bonitas brotam da palma da minha mão."

lindeza de crônica, cheia de poesia... mas essa das açucenas é maravilhosa.

sim, as mulheres são mais fortes do que se pensa, e os homens muito mais frágeis do que se divulga. E assim, de algum jeito, vamos nos descobrindo e nos equilibrando...

um beijo, pessoa!

Primeira Pessoa said...

dea,
segundo consta eu, até hoje pela manhã, era homem, frágil e dolorido. muito dolorido... uma espécie de isquemia do miocárdio andando sobre dois joelhos.

fico feliz que tenha gostado da croniqueta.


beijão do

r.

Unknown said...

A disputa começa muito antes do nascimento. Uma disputa aparentemente igual para chegar ao útero. Na primeira infância, morre mais menino que menina.
Aguentamos mais tranco. Só não entendo por que quando chega a hora de pegar peso chamamos um homem.
Beijos!

OutrosEncantos said...

encantador que você é, Roberto.
que pieguice mais linnndaaa!

beijo meu.

Rejane Martins said...

...pois Roberto, ontem, com algum tempo, eu vi-e-ouvi os 51 minutos do vídeo "Roberto Lima - Jornal Brazilianvoice" e fiquei impressionada com a pessoa que conheci ali - força imensa que tens e és!
Ler o revigorante Absurdo das febres foi, então, um alargamento exponencial das margens desta admiração - esta tua capacidade de deixar-nos brasilianamente satisfeitos e orgulhosos com a qualidade do que se lê. Brotam da palma das tuas mãos mais que açucenas bonitas, brotam também cantos de esperança pra muitos que vivem aí, que vivem e te lêem aqui. É uma delícia ver-e-ler gente como tu, gente que sonha e tem coragem de realizar o sonho e ir pra frente, num alegro, num andamento animado ...tal qual sapato de palhaço, como tu mesmo disse :)

Primeira Pessoa said...

Janice,
não sei o porque de se disputar tanto e mais... eu tenho um único irmão, o toninho (a quem chamo carinhosamente de cupim), e a quem sacaneio o tempo inteiro, e digo que meus velhos gostam mais dele do que de mim...
mas, no fundo (e no raso), quero mais é que gostem mais dele do que de mim, mesmo, pois ja ganhei muito mais do que eu mereci.

reconheço tanto.
agradeço tanto.

sou feito desse barro aí e não quero nem tapinha nas costas, pois não faço mais do que a minha obrigação.

abração do


roberto.

Primeira Pessoa said...

moça dos outrosencantos,
sou um ridículo, um piegas, brega, baranguíssimo...

nem preciso dizer mais nada.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

rajane,
você merece uma medalha, pois apenas uma pessoa, ao que eu saiba, teve saco pra ver aquilo ali srm passar mal e sem desistir de me ter entre os seus.
e aquilo ali é bem pouco diferente do que sou... se bem que, sei que ainda sou pior do que aqui ali possa transparecer.

abração do

roberto.

Unknown said...

acordar com a primavera nos dentes, o sorriso do lagarto, e açucenas a incensar o dia: eflúvios de poesia,


abraço deste em sol a pino

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
tem um um roquenrol das antigas (que eu ouvia TODAS AS NOITES quando frequentava - habitué sem regras nem limites- o greenwich village, nos 80, e meu fígado e minha moral a tudo resistiam)que rezava o que sinto agora:
"sometimes I feel like I'm dying"...

uma parte de mim já partiu pra serra do cipó... e ela, essa parte, já não volta mais... eu sei!

Tô cinquenteando, claro. é o inverno da minha vida chegando.
então, teoricamente, não dá pra pensar em futuro, mas eu pensei, insisti, insisto.

sou péssimo cabrito.

abração, poeta de feira.

do
r.

OutrosEncantos said...

roberto, você sabe que eu sou de afectos, só quiz fazer um mimo.
homem e mulher não se dispensam, precisam-se, completam-se.
eu achei encantador como você se revelou, tão cheio de mimo.
pieguice é palavra que uso com afecto.
desculpa se não soube passar a mensagem. adorei a tua "pieguice" que foi afinal humildade, reconhecimento ao valor da mulher em geral.
eu te admiro.

beijo.

Primeira Pessoa said...

moça dos outrosencantos,
eu não me ofendi (de maneira alguma!), que se registre nos autos.
eu disse em tom de brincadeira, de mea culpa (rs), me assumindo um derramado, afetuoso, cazuzisticamente exagerado, pessoa que abraça e que gosta de ser abraçado, que se emociona e chora pelos motivos certos.

não tem nada de errado nisto.
o afeto é piegas e brega até quando é afeto de amigo (um dos tipos de amor mais bonitos que existem).

fica tranquilinha, pois tá tudo bem.

abração do

r.

Anonymous said...

Boa tarde passei para fazer uma visita,e adorei bjs.

Iara Maria Carvalho said...

seu moço, que palavras! como alguém consegue tornar tão poética uma gripe!?
a melhor palavra é colhida no terreno da memória e do sentimento.
belo belo.
um beijo.

Primeira Pessoa said...

ô Iara, cê é que escreve bonito. muito bonito. e eu já te falei isto trocentas vezes.

aproveito a deixa pra dizer que, de certa forma, eu gostava de uma gripezinha, quando menino. minha mãe me cobria de mimos. até presente eu ganhava... e eu não morri até hoje. s
ó morri de outras mortes, morri de tristezinhas de nada, de desilusões. mas de gripe, never.

beijão do

roberto.

Tania regina Contreiras said...

Beto, tu escreve escancarrando a alma, e isso faz da tua escrita única, tua, e eu amo tanto te ler, tu sabe. Somos (homens e mulheres) frágeis e fortes, e isso nos torna tão bonitos, né?

Beijos,

Noiva Cadáver said...

Deixe-me fotografar estas flores.

Primeira Pessoa said...

fotografe o quanto quiser, Noiva.
faça uso e gáudio.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
eu juro que queria ser mais couraçado, mais invasor...

mas sou só essa casquinha aí que cê tá vendo.

abração do

roberto.

Daniela Delias said...

Que bom saber que aí é Primavera...

Bjo, Beto. Texto lindo...

:)

na vinha do verso said...

ehe, mano Beto
desibernando
em belos delírios febris

saúdo sua primavera

aquele abração

Primeira Pessoa said...

marquinho,
senhor de todas as febres, pintor de primaveras...

cê fez aquele prefacim que encomendei pro Meninos de São Raimundo?

beijão do
R.

Primeira Pessoa said...

uai,, dani...
os relógios e as estaçãoes daqui e daí parecem brigados um com outro...

verão procês por aí, é inverno e inferno e trevas por aqui...
e vício em verso.

em mim, a primavera é a mais bela de todas as estações.


beijão do

r.

Linda Simões said...

Roberto,

Gostar é pouco...
Eu simplesmente amei! E as açucenas...
Trancou ! Como dizem meus alunos... Com chave de ouro.


Beijão,


Linda Simões

Primeira Pessoa said...

linda, nasci em pedra orrida, município de Açucena...

é o que conta a minha mãe... e, verdade seja dita, meus pés nunca pisaram em açucena... ou seja: nunca pisei na fulô.


abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

pedra corrida...rs

Anonymous said...

mulher, sexo frágil?
acho que não...

Primeira Pessoa said...

sexo frágil?
claro que não.
é exatamente o oposto disto.

Denise said...

Uma crônica deliciosa, que me fez engasgar em alguns momentos...não é vulnerável aquele que se mostra tanto...lindo demais!

Primeira Pessoa said...

fico feliz que tenha gostado, Denise.
aqyin nesse vendeirim, o que se vê, é o que se compra...

seja mais que bem-vinda.

abração do

roberto.

Além da Porteira said...

Essa crônica é uma das mais lindas manim...
Me leva de volta pra casa, pra dentro do edredon, pra dentro do ventre...
Acho que preciso de alguém que me faça uma sopa... ;o)

Beijo
Diubs

Mayara Cruz said...

Boa tarde!
Realmente essa crônica é perfeita, aah como eu amava soltar barquinho de papel nas águas da enxurrada, aah que saudades das gripes da infância, em que minha mãe ficava do meu me paparicando, hoje as gripes são apenas gripes,tenho que trabalhar, tomo um remédio e bora melhorar sem descansar, é tempo passa, e as responsabilidades aumentam, e enfim vemos somos adultos.

beijoo

Primeira Pessoa said...

fico feliz que tenha gostado da crônica, mayara.
quando menino, achava a gripe uma espécie de carinho de mãe (porque ele, o carinho da mãe, vinha junto com a gripe).

na presente idade, acho a gripe "desmoralizante"...rs
olho no espelho e vejo um homão véio desses, fragilizado por uma gripezinha de nada.
com o passar do tempo, até as gripes mudam em nós.

fico feliz pela sua presença no PP.

abração do

roberto.

ananomundo said...

Texto excelente! Adorei!

Bípede Falante said...

Apesar dos pesares, dos ossos quebrados e da pele arranhada, não tive uma única febre quando criança.
O corpo bloqueou firme os vírus fossem eles quais fossem.
Um dia cresceu e perdeu a firmeza. Perdeu a paciência. Perdeu a vontade.
Retratos da carne quem sabe revelam mais que os negativos da alma.

Leila Cantizano said...

Roberto, passei munha infância toda lutando contra tifo, tétano, difteria, hepatite e mais todas as doenças infantis...sendo que caxumba, tive 2 vezes...fiquei com pena de você...gripe eu nunca tive.
bjos