Wednesday, April 17, 2013

Um dia que arde


 

O colchão ardia em chamas. O teto do quarto era a boca de um vulcão.

Ardia a carne e a consciência, como se alguém tivesse jogado um punhado de sal em minhas feridas mais profundas.

Ou pólvora, já não me lembro bem.

As coisas nem sempre correm como queremos, eu sei.

E, na contramão de um desejo inocente - que deveria ser o prêmio de todo trabalhador após um dia de labuta, o descanso -, passei a noite inteira de mãos dadas com a insônia.

Lá pelas quatro da manhã, eu tomei coragem, desci as escadas e comecei a trabalhar.

Meu expediente, nesta terça-feira, teve início às 4:30 da manhã e seria natural que eu adiantasse meus textos e que me colocasse numa posição de vantagem quando a cidade acordasse e o batente no jornal tivesse o seu início.

Os dedos furiosos correram pela extensão do teclado, é verdade, mas não chegaram a lugar algum.

Eu estava visivelmente fora do meu elemento.

Eu não me achava, apesar de voluntarioso.

E, apesar de querer andar para a frente, uma força maior me atava ao chão.

Eu apenas me arrastava.

Esta era para ser uma terça-feira gloriosa, pela qual há muito eu esperava.

Afinal, seria hoje que a Gangue dos Oito anunciaria o projeto de lei da Reforma Migratória que libertaria 11 milhões de trabalhadores, devolvendo-lhes a dignidade, o direito sagrado de ir e vir.

Pensei em milhões de pessoas que poderiam, finalmente, rever os seus respectivos países de origem.

Pessoas que tiveram na distância uma armadilha perigosa, que destruiu seus casamentos e arruinou seus amores.

Pessoas que não viram os filhos crescerem.

Que não os viram marcar um gol no campeonato da escola ou deu-lhes uma abraço na festa de formatura.

Pessoas que perderam cerimônias de casamento de irmãos, irmãs, filhos e amigos de infância.

E que perderam a festa de debutante da própria filha.

Pessoas que não puderam estar presentes a aniversários e batizados de entes queridos.

Pessoas que perderam entes queridos.

Pessoas que encontrarão buracos na alma, quando retornarem a seus lugares de nascimento.

Mas que estarão felizes, de alguma forma, sentindo-se aliviados e com a certeza do dever cumprido.

Ao invés de celebrar com estes e com aqueles, ir às ruas numa grande celebração, recolho-me ao luto.

As imagens da televisão não deixam dúvida: o demônio anda à solta e existem homens ensandecidos e dispostos a infligir indescritível dor em inocentes.

A cartolina na foto do jornal em que o menino Martin Richard - uma das 3 vítimas fatais da barbárie da maratona de Boston - pede ao mundo que não machuque mais as pessoas, passa a ser um documento que atesta o fracasso da raça humana.

Esta cartolina será, para sempre, um quadro dolorido pendurado na parede de nossas consciências.

Onde alguns conseguem ler a palavra paz, outros leem barbárie.

E qualquer dia destes terá sido tarde demais.

 

.

36 comments:

Dois Rios said...



Muito triste, Roberto! Ontem passei, também, o dia com o coração apertado.. Paira no ar a nuvem espessa da desesperança, descrença e perplexidade. Por que matar? Pra quê? Por quem? Por Alá ou pelo demônio que vive na alma desses insanos? Por terras, posses, religiões e poderes? ,Pra lavar a honra de suas crendices e ideais com sangue de inocentes? Aliás, pra que respostas para fatos inadmissiveis e inconcebiveis como esse? Barbárie se não explica. Se chora.


Beijos,

Além da Porteira said...

Um "documento que atesta o fracasso da raça humana"... é isso mesmo.
E os olhos desse menino? Um mar de tristeza...
O bicho homem pode ser perverso... cada vez me assusto mais com até onde ele pode ir.
Mas a questão é que ele, o bicho homem, somos nós... Se cada um fosse capaz de encarar o mal dentro de si penso que era maior a chance de vivermos em um mundo menos sombrio...
Bjo manim
Diubs

Zélia Guardiano said...

Texto lindo de doer , amigo Roberto! De doer bem no fundo da alma, naquele recôndito que, muita vez, até esquecemos que existe...
E mais palavras são desnecesárias: você disse tudo!
Abraço bem apertado

Ana (Ballet de Palavras) said...

Roberto,
Intenso e, dolorosamente triste.

A minha alma estendeu-se de joelhos quando observei pela primeira vez a catástrofe, a segunda vez quando observei o rosto de Martin Richard como uma das três vitimas mortais, a terceira vez quando li a sua crónica e, observei de novo o rosto do menino pedindo ao mundo o seu desejo.

Sinto-me devoluta! Nauseada e, perturbada! Confusa! Pequenina, e, perdida perante a insânia na crença na raça humana.

Ana

Tania regina Contreiras said...

Sabe a esperança? Eu ainda tenho. Nada de lógico, porque pela lógica não dá para ter esperança. Eu me livro da lógica e espero um milagre. E, por mais insensato que pareça, acredito no ser humano. Da sua crônica fica a constatação do quanto você sabe dar vida às coisas. Vida não: alma! E isso eu amo.

Beijos,

ÍndigoHorizonte said...

Así es. Demasiado tarde. Y el horror... de que así sea. Un abrazo, Roberto.

Tatiana said...

Que dor mais bem descrita, Roberto. Se por aí temos estas, aqui as barbáries são outras, mas são. Que triste. Que difícil acreditar na paz.
Abraço, amigo.

Batom e poesias said...

Um acontecimento sem explicação, assim como qualquer ataque que envolva vidas inocentes...
Junte-se a isso os envelopes cheios de venenos.
O medo e a tristeza são indizíveis...

Abços
Rossana Masiero

Mary.Yamin said...

Beto
Barbárie ... Meus sentimentos às familias... Maratona da morte... sem perdão...
Meus sentimentos ao povo americano
bjs

Sílc said...

"Esta cartolina será, para sempre, um quadro dolorido pendurado na parede de nossas consciências. Onde alguns conseguem ler a palavra paz, outros leem barbárie."
Amém Roberto! Tarde demais...infelizmente. Colocaria aqui o termo ultrajante que traduzida do grego é uma expressão forte, denotando fúria com que homens atacam homens como furioso animal selvagem. Carregamos o peso do remorso quando sentimos essa impotência desse acontecimento. John G. Whittier disse: "De todas as palavras tristes saídas da língua ou da pena, as mais tristes são:'Poderia ter sido diferente!'" Me junto a você, recolho-me ao luto.
Síl

Luciana Marinho said...

são tantas tragédias a nos deixar frente a frente com o insuportável.. para vermos que o insuportável vai se tornando suportável e que ainda é insuficiente para o basta. muito triste.

beijão.

Unknown said...

tá phoda broda, assim caminha a humanidade?



abraço

Bandys said...

A paz esta longe do mundo...alis penso que nunca existiu essa paz...

Um beijo

byTONHO said...



"Trans...ferir é adiar a PAZ!"

:o)

Paulo Jorge Dumaresq said...

Bob, não esqueçamos as chacinas diárias no nosso Brasil e os carros-bomba no Oriente Médio. A morte por atacado. Crônica pertinente pela paz em todo o mundo. Abraço do tamanho das Minas Gerais.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

A humanidade é desumana, dissera o poeta! Me calo...
Mais uma crônica pintada com as tintas de quem sabe, numa hora triste do mundo...

Meu abraço e admiração!!!

Dois Rios said...

corrigindo: Barbárie não se explica. Se chora.


Anonymous said...

Deus, esse menininho tá sem dente como meu Hebinho e eu meio sem esperança como muitas pessoas. às vezes fico pensando se o mundo tá realmente pior ou se sou que sou uma inadaptada. Essas barbáries doem demais na gente.

Seu texto é muito comovente. Beijos!

Primeira Pessoa said...

esse estágio de menino que ganhou o dente e perdeu o dente é um estágio muito bonito na vida e toda criança.
eles ficam engraçados, mas ostentando ainda a pureza que os meninos e meninos desta idade tem.

virou anjo, Adri.
continuou anjo.


beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

barbárie a gente chora, sim, inês.
mas que tem explicação, tem.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

da rama,
humanidade mais desumana, sim.
vivesse o mundo sob o fundamentos dos seus olhos....

ah, vivesse o mundo...

abração do
r.

Primeira Pessoa said...

Paulo Poeta,
a idéia é esta, sim.
vastidão.

violência, qualquer tipo de violência, deveria desaparecer da face da terra.

eu sei, utopia minha...
mas não custa sonhar.

abração do
r.

Primeira Pessoa said...

tonho,
se adiássemos, mas conseguíssimos...
ah, quem nos dera...


abração,
r.

Primeira Pessoa said...

bandys,
a paz do indivíduo é a paz do mundo, ja dizia a canção.

beijão do
r.

Primeira Pessoa said...

broad zé de assis,
assim rasteja a humanidade.

tá osso.

abração.,
r.

Primeira Pessoa said...

Luciana,
é incrível a resistência do ser humano. nesta constant superação do insuperável.
me chocam ainda mais as justificativas...

beijo grande do
Roberto.

na vinha do verso said...


o humano
nestes extremos
nos desumaniza

é para chorar sim Beto
e muito

abs

Canto da Boca said...

A vida parece ser tão inútil para alguns. Além da perplexidade murmuro baixinho: por quê (sabes me responder, Roberto)?

Fecho os olhos e sua frase final, ecoa em todo o meu ser: "E qualquer dia destes terá sido tarde demais"!

Unknown said...

venho aprendendo que não posso mudar o mundo, até porque cada um, a seu jeito, tem uma forma de o querer/ ser que é apenas sua. mas há algo de que não abdico: de lhe gritar, puxar-lhe as orelhas, para, no instante seguinte, o agarrar no peito e dar-lhe um beijo nos lábios. porque acredito nele ou deixaria de crer em mim. mesmo que receie que alguns dos seus dias sejam já tarde de mais, até porque se esses sim, outros ainda não nasceram sequer.

um abraço, robertílimo, ainda incrédulo com nova série do que de pior o homem sabe ser, aqui em contraponto com o encantamento que é ler-te para lá das palavras - sim, porque a tua escrita está sempre a montante do dizer.

Primeira Pessoa said...


(da memória salta a imagem do homem com suas pernas amputadas pelo artefato, aquele pedaço enorme da tibia exposta, apontanto para o chão)

sim, poderia ter sido diferente, silvia.
deveria ter sido.
.

beijão.

r.

Primeira Pessoa said...

mariângela,
ainda bem que não somos postes.
que não somos tijolos.
não somos pedra.

enquanto houver quem sinta pesar, quem chore, existe esperança.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

rossana,
estamos vivendo num lugar doido demais.
a religião é uma das piores invenções do homem.

atrofiaram a fé.

estou (verdadeiramente) tão desgostoso, sabia?

abração do

r.


Primeira Pessoa said...

tati,
barbárie é uma palavra armada até os dentes, já percebeu?
nos protegemos dela com arame farpado, em ingles, arame barbado.


beijo beijo,
r.

Primeira Pessoa said...

tarde e nunca, indigo, são irmãos.

percebes?

beijão,
r.

Sônia Brandão said...

As dores do mundo são também a nossa dor. E como dói...

bj

Primeira Pessoa said...

não me canso de dizer, Sonia, que a paz do indivíduo é a paz do mundo.

temos que nos pacificar, antes.

beijão,
r.