Saturday, May 18, 2013

Das coisas que preciso e que não são poucas



Para Nina Rizzi

Preciso encontrar meu passaporte brasileiro que se exilou de mim.
Desde que cheguei de Portugal, em novembro do ano passado, que não sei do seu paradeiro.
Estará no bolso do paletó que me acompanhou na viagem?
Será que caiu no chão e foi encontrado pela mulher da limpeza, e colocado num escaninho do departamento de achados e perdidos de algum lugar?
Terá sido esquecido num café de aeroporto e hoje traz a cara de um terrorista, um traficante de drogas, ou outro contraventor no lugar onde um dia existiu uma foto minha?
Eu gosto da minha fotografia naquele documento.
Estou dez anos mais moço e meu rosto ainda não era esse mapa pluvial do estado de Minas Gerais.
Estou dez anos mais novo e o mundo era um lugar bem mais jovem.
Há dez anos ainda ‘não havia para mim Sarah Palin, ou a sua mais completa tradução’.
Não havia Neymar nem Michel Teló, e meu time ainda não havia flertado com a Segunda Divisão.
Há dez anos eu ainda chorava as dores de outros onze de setembro.
Desde então, aumentou o buraco na camada de ozônio, subiu o preço da gasolina, árabes e judeus continuam na mesma e mesmo eu, continuo por aqui, na mesmíssima.
Só que mais gasto.
E seu eu precisar ir para o Brasil? - pergunto aos meus botões.
E se explodir uma guerra, e eu tiver que fugir como um cão, com o rabo entre as pernas? - pergunto a minha covardia.
Preciso encontrar a coragem para não fugir, é verdade.
Mas antes disto, preciso encontrar o meu passaporte.
E preciso de muito mais.
Preciso encontrar a coletânea de Carlos Drummond de
Andrade, e ler em voz alta o Poema das Sete Faces.

(...) Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração (...)

Preciso encontrar minhas sete faces e, se preciso for, dá-las a tapa, pois ainda há tempo.
Ainda há tempo de mudar de opinião.
De mudar de ares, de roupa e de vida.
Há tempo de virar o jogo.
De ganhar o jogo.
De criar novas regras e de reinventá-lo, o jogo.
Tempo de rabiscar montanhas e dar novas formas às nuvens.
E de pagar o preço.
Pois ainda há tempo de cuidar da saúde e retomar as caminhadas matinais.
Preciso encontrar, ainda, o amor próprio, a inteligência de querer ser longevo, de querer viver mais e melhor.
Inteligência, pois sim.
E encontrar os meus óculos, perdidos num lugar de mim.
Mas não os óculos, esses que me permitem enxergar o mundo com meus dois graus de astigmatismo no olho esquerdo, e um ponto cinco de miopia no direito.
Preciso encontrar aquele par de óculos especiais que me permita enxergar-me neles, peneirando, na leveza dos aros, o sol da cegueira que me desilumina tristemente os dias.
Este par de óculos que me permite ver joio e joia, menino bonito de mim.


51 comments:

Luiza Maciel Nogueira said...

também preciso desses óculos, :)! Bela crônica, gostei muito.

beijos

Zélia Guardiano said...

Crônica linda, amigo Roberto!
Sou fraca neste quesito comentário, nunca sei escrever direito a impressão real que a coisa me causa. Mas posso dizer-lhe que o que me encanta nos seus escritos é essa leveza, essa espontaneidade, como o fluir da água quando se abre bem a torneira. Não tem, nunca, uma peninha sequer para atrapalhar. Parece que você está aqui na minha frente,sentado, bebericando caneca de café, comentando um fato, me contando um causo. É tão bom assim!
Abraço com carinho
Zélia

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

E eu preciso reler essa crônica inúmeras vezes, eu que de óculos entendo um pouquim, rs...

Abraços do darrama.

nina rizzi said...

Precisamos jamais esquecer o que buscamos, ainda que não tenhamos ideia do que seja isso. O que eu nunca esquecerei mesmo, são as tuas lições, meu amigo querido.

Devo agradecer por estar sempre aqui, junto dos presentes e dos silêncios e ausências.

cirandeira said...

Pois sim! Hás de encontrar tudo isso, e ainda "passar o porte" dessa tua determinação otimista e rara!!!

beijoss

Sinval Santos da Silveira said...

"Preciso encontrar a coletânea de Carlos Drummond de
Andrade, e ler em voz alta o Poema das Sete Faces."

Boa noite!

Gostei muito...demais do teu trabalho.
Parabens
Sinval

Eleonora Marino Duarte said...

Roberto,

juntou duas coisas que amo, Nina e imagens líricas de primeira. bonito... bonito, menino.
beijo.

Unknown said...

precisamos de tanto e tão pouco, no mínimo já há vida bastante


abraço

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
levando-se em conta o tamanho da ressaca, até que cê tá raciocinanando bem legalzim...rs

no meio do pouco, a cura pra bendita...

né não?

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

Eleonora,
e quem não ama Nina Rizzi?
E quem não ama você?

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

muito grato, Sinval.
Volte sempre que quiser.
a casa é sua.

Abs,

r.

Primeira Pessoa said...

como diria o lula,
a busca continua, companheira....

beijo grande, cirandeira.
bom domingo procê.

Primeira Pessoa said...

é verdade, Nina...
é verdade...

e que nunca nos esqueçamos, na vida, daquilo que estamos indo buscar.

a vida é curta demais para perdermos viagens.


beijo beijo

r.

Primeira Pessoa said...

da rama,
você que é presença obrigatória não no primeira pessoa, mas em minha vida.

sua doçura melhora tudo.

abração do

r.

Primeira Pessoa said...

zelinha,
acredito que, quando temos afinidade com a outra pessoa, não importa onde estamos, estaremos sempre frente a frente em quando caminhamos, é lado a lado.

beijo grande,

r.

Primeira Pessoa said...

mas você os tem, Luiza...
tenho certeza de que, quando você se olha no espelho (da alma) gosta muito do que vê.

beijo grande do

r.

Tânia regina Contreiras said...


Gosto de olhar pelos seus olhos. Não pelos óculos, pelos olhos mesmo. Tudo volta a ter a beleza que tem, mas que nem sempre vemos.

Beijos,

ivone said...

Ô querido meu, que delícia "ler" você nesta manhã de domingo, adorei !

Agora convenhamos .... tentamos muito torcer pro teu time aqui, homenagem a vc, mas deu não, nem com muito amor,rsss

gagau said...

Maravilha!lindas palavras mas,agora só lhe basta o passaporte pois a saudade apertou.bjs gagau

gagau said...

Maravilha,lindas como sempre tuas palavras,poeta!bjs
Gagau.

Unknown said...

Gostei muito. Bem sincera, bem escrita. Senti que você precisa "voltar pra casa, esteja ela onde estiver, até dentro de você mesmo". Beijos, amigo
Judith de Souza

Anonymous said...

Sempre achei que você visse o mundo diferente, tio, escrevendo desse seu jeito que embala a gente e deixa sonhando.

Beijo!

Lídia Borges said...


Deliciosa prosa!

"Preciso encontrar aquele par de óculos especiais que me permita enxergar-me neles, peneirando, na leveza dos aros, o sol da cegueira que me desilumina tristemente os dias."


Também eu queria uns óculos, assim!

Beijo

Márcio Ares said...

Você já me ganhou na primeira linha (ia dizer "no primeiro verso"). Depois, quando do atlas facial das gerais, fiquei de vez meio louco, meio pouco, meio putaqueopariu!!!! Acertar os detalhes da viagem entre o muito por dizer e o passaporte que te acha e te perde, foi bagagem de puro e grande entendimento. E o menino mais bonito que chega ao final é de receber parabéns demais, meu querido!

byTONHO said...



Grande Roberto!

"Olhe-se no espelho e veja no "mapa do teu rosto", deve ter lá uma cruzinha, marcando onde ficou o menino esquecido...!"

Abraço-tchê, uai!

:o)

Tuca Zamagna said...

Passaporte é umas das raríssimas coisas que eu nunca perdi, Beto. Porque nunca tive um. Nem terei. Se um dia eu sair do Brasil, é pra não voltar. Se um dia eu tivesse saído do Brasil, pobre de mim que não saberia voltar eu mesmo. Mesmo! E não tem nada a ver com essa conversa fiada de que a gente nunca é o mesmo. Eu sou, sempre fui. Tanto que quando eu nasci os médicos se espantaram com a minha barba, mais vasta e cerrada que a mata do entorno da grota de onde me escafedi.

Ser sempre o mesmo não é mole, não, né? Tem que se carregar duplo fardo: o peso dos anos mais o baú da própria história, abarrotada de pecados, dívidas e lembranças - umas boas, outras nem tanto, mas todas gordas, cada dia mais gordas, de uma obesidade incontrolável e sem cura, porque a caloria que as superalimenta é a capacidade de mentir, essa dádiva que o Diabo deu a todos nós que não sabemos as verdades necessárias, úteis, pragmáticas, mas só as que inventamos e, às vezes, botamos no papel que poderá, quem sabe, ser lido por outras pessoas depois que nossos óculos nos perderem para sempre.

Beijão

na vinha do verso said...

bela e única viagem

do passaporte que se exila
aos óculos que se nos reencontram

assim
só pode ser para casa mesmo rrsrsrs

abração mano

Primeira Pessoa said...

marquim,
a gente ta precisando se ver.
to precisando achar meus óculos de reencontrar amigo querido

:-)

beijo grande do

r.

Primeira Pessoa said...

Tuca,
eu viajei bem menos do que achei que viajaria, no que comecei a ganhar um dinheirinho e podendo, finalmente, me deslocar de um lugar pro outro, como sempre sonhei.
na contramão disto redescobri o brasil, meus amigos de infância (e outros que foram chegando), o afeto de meus pais... rapaz, sou muito ligado às minas gerais e o que tudo aquilo representa pra mim... eu me acho mais mineiro do que tudo nesta vida, mesmo vivendo há 29 anos fora daí.

olha, você não viajou por não ter precisado, por não ter querido.
sua viagem pessoal é a grande viagem, tuca.
ô, quero que cê saiba que te gosto muito.
que te admiro um monte.
e que você faz parte de minha vida desde muito antes se termos esbarrado virtualmente graças ao milagre da amizade.

estou amarrando com uns amigos o lançamento de meu livrote numa livraria aí do Rio e quero muito (mas muito) que cê fique o tempo todo com a gente.

vou ficar muito feliz, se cê for.

beijo grande do

r.



Primeira Pessoa said...

Tonho, amigo querido,
costume dizer que não tenho rugas: tenho cicatrizes...rs


beijão do

r.

Ana (Ballet de Palavras) said...

Roberto,
Sublime, crónica como gentilmente e, habitualmente nos oferta.

Semelhantemente, também preciso.
Preciso de enxergar o mundo mais cor-de-rosa, adornado por melodias melodiosas. Observar, sentir, agir e, pensar como quando era criança.

Um laço de admiração.
Ana

dani carrara said...

e depois de encontrar esse "tempo que há"

ainda, haverá tempo


um abraço.


Primeira Pessoa said...

marcio,
moço dos verbos bonitos, das metáforas dos galhos mais altos...
nesta ida a BH temos que nos encontrar.

aliás, nos reencontrar...rs

esta amizade já existia.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

lidia,
ainda não achei o danado do "zóculos"...
e meu espelho é cruel.
ele não mente pra mim :-)

grande beijo do

r.

Primeira Pessoa said...

Ivoníssima,
sofri muito naquele domingo. mas me curie rapidim, rapidim.
eu e o seu moço ainda sofremos por futebol, né?

saudades imensas de ti, do moço e das crianças.
nova york tá linda nesta primavera.

vem???

beijos,

r.

Primeira Pessoa said...

dani,
cê não tem idéia da alegria que cê me deu vindo aqui hoje.

uma saudade tertuliana.
daquelas outubrinas, da turma toda reunida, lá em bh.

beijo grande,
r.

Primeira Pessoa said...

ana,
muito mais que te limitando ao cor-de-rosa, tenho certeza absoluta de que as lentes com que vê a vida lhe permitem todos os matizes, variações...
cores vivas.

beijo grande do

r.

Primeira Pessoa said...

larinha,
a gente vê a vida e suas coisas, mais ou menos do mesmo jeito.

sinto-me feliz de vê-la crescendo bem "pertinho" de mim.

tio coruja, esse

Roberto.

Primeira Pessoa said...

Judith,
mesmo quando estou longe destas montanhas, sinto-me perto demais.
perto em essência, em saudade, vontade de pisar o chão.

Cambuquira que me aguarde com sua água boa.


Sua visita me fez enorme bem.

Grande abraço do

Roberto.

Primeira Pessoa said...

gagau,
temos que costurar aquele encontro com mita, julim, balim...

todos aqueles ins.

saudade sua, brodinha.

r.

Lauriane said...

Gostei dos textos, o do post anterior tb.


Quero ver sua visita em meu blog tbm!
Hoje, duas postagens super bacanas!
Te aguardo.
abç

Pólen Radioativo said...

"Ainda há tempo de mudar de opinião.
De mudar de ares, de roupa e de vida".
Isso é uma sensação permanente. Aliás, uma certeza permanente que me angustia.
São mundos demais, ideias demais, coisas demais... E ainda estou por aqui.

Um cheiro!

ana p said...

Obrigada Roberto por me ires lendo e recomendando: tu que tão bem escreves.
"Ofereço-te" um poema de delicadeza


Sento-me à mesa de trabalho. Inclino a cabeça para a memória dos livros que li e amei.
Com um gesto de ave pouso a mão sobre o papel.
E no interior da sombra da mão, começo a escrever: era uma vez…


Al Berto

Primeira Pessoa said...

grato pelo poema, Magnólia. Al Berto é um dos maiores... adoro.


sou fã do seu blog, desde sempre.
foi influenciado por alguns blogs (incuindo o seu) que tomei coragem de iniciar o Primeira Pessoa.
sou fã (muito fã) do Primeiramente... aprendi muito da nova literatura que se faz em Portugal, lendo você.

beijo grande,
r.

Primeira Pessoa said...

drica,
a necessidade de mudança é permanente, naquela onda da metamorfose ambulante, aquela de Raulzito.

pessoas inquietas como voc6e fazem a bola do mundo rolar...

beijo beijo

r.

Primeira Pessoa said...

lauriane,
fico feliz que tenha gostado.
vou visitar seu blog, sim.

beijo grande do

r.

Unknown said...

tantas precisões nesse chão inteiro de dez anos... onde estão os óculos que me estala a visão?

abraço, robertílimo!

Primeira Pessoa said...

euriquíssimo,
ando um tanto atrapalhado e em falta com os que mais quero bem.
mas estou me organizando, aos bocados.
tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.

muitas delas, boas.

saúdo-te.
abraço-te, como meu irmão que és.

r.

ÍndigoHorizonte said...

Bella crónica, como siempre Roberto. Preciso encontrar la fuerza de seguir viajando en este viaje interior, de seguir saliendo de mí para encontrarme con la belleza exterior e interiorizarla y volverla a sacar al exterior. Preciso encontrar el pasaporte que me siga aferrando a la vida, y a cada uno de sus minutos, y preciso encontrar el reloj que aún sin minutos ni segundos me permita seguir saboreando la belleza de palabras como las tuyas. Un abrazo grande, Roberto.

Sílc said...

Roberto... querer ser longevo sim mas, com absoluta serenidade, resolvendo, com naturalidade, qualquer adversidade!
Me fez lembrar: "...Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo. Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim. Eu sou a viajante e a viagem.”
Beijos com carinho,
Sílvia

Unknown said...

robertílimo,
assististe àquele pôr do sol nova-iorquino em que o astro-rei como que suspendeu os seus passos para se fixar ao fundo da (V?) avenida, num fenómeno raríssimo, mas que, ao que parece, em 2013 ocorre duas vezes (anteontem e em junho, creio). diz-me que o fotografaste... :)

abraço, querido amigo!