Friday, October 1, 2010



















Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais
puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de
labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta benção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
Antes a vida

Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
Antes a vida

Antes a vida antes a vida infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua
mão
Antes a vida

Antes a vida com as suas salas de espera
mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
Antes a vida

Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
Antes a vida

André Breton


A Música Que Toca Sem Parar:
de Gero Camilo e Kleber Albuquerque, na voz goiana de Rubi, Astrolábios.

Arde-me o siso
Coração ungido a ferrolho
Arde-me entorpecido
Vil vão
Novamente novo

Como nunca pode ser um outro
Uma lágrima na lapela
Paz de espírito
Ontem eu lamentei demais
Por mãos que me jogaram
Nesse espaço de astrolábios
Hoje aprendi como
Se voam as mãos
Como se vão
Como carvão nos lábios

O homem tem de voar
Enquanto cai
Tem de alcançar
E vai

35 comments:

Marcantonio said...

Que poema! Eu sei, ele não estaria aqui se não fosse tão bom. "A vida como um passaporte virgem"; é possível? Se nem deixamos o berço e já temos o passaporte cheio de carimbos das viagens que outros empreenderam em nosso lugar: herdamos essa pré-ciência de quais sejam os caminhos válidos; e hoje como que nos dizem que há apenas um, apenas uma via que já nem mais demanda manuais, sem surpresas, sem dúvidas, sem excessos, sem perguntas dissonantes. É, o Globo Repórter sabe o que é a vida!
"Antes a vida como fundo de desdém..." E a minha questão diária é compreender o que desdenhar, como escapar ao sentido inexcedivelmente bovino da existência no qual até a rebeldia é uma forma domesticada nas propagandas. Onde esse caminho alternativo em que a vida venha antes da propaganda da coca-cola ou não caiba num anúncio da Nextel?
Antes a vida até mesmo que o poema! Bem, deixe-me seguir pra morrer na praia mesmo. Rapaz, pra que eu escrevi isso tudo?

Grande abraço, Roberto!

Primeira Pessoa said...

marquinho,
o passaporte é carimbado na chegada. não se entra nessa (fria de?) vida sem esse "documento". às vezes fico pensando na confusão e escuridão dos labirintos do viver, meio emputecido... mas aí vejo uma beleza fodida na "loteria" das encruzilhadas... das escolhas... sabe aquela do "qual estrada pegar"? ... dá uma puta sensação de poder (sim, pra muita gente ela imperceptível), a escolha. rs
ô, escolhemos viver. já pensou nisto nisto?
e se escolhermos a felicidade?
já pensou?

por mais que tenhamos nascido pra nadar, nadar...

é por isto que você escreveu este tantinho. rs

abração do

roberto.

Anonymous said...

escolher a vida não é simples escolha né não? principalmente quando ela nos coloca questões para as quais não estamos preparados (e já estivemos em algum momento?) filhos, família, morte, solidão, diarréia... enfim.

ó,
confirmadíssimo a parada.
(to lendo um livro do olavo romano - casos de minas) a melhor coisa que li nos últimos tempos. temos que dar um jeito de aproximar desse homem. o cara é patrimônio mineiro...

bjos e me liga!

Primeira Pessoa said...

a diarréia e a broxada são os mais complicados de compreender, fouad. pra mim, são...
ah, e os filhos.
to procurando o botão de "desligar" das minhas pequenas... não achei... é outro assunto sério.

e, o mais grave e complicado de todos: imposto de renda.
pagamos. somos obrigados a pagar. mas a gente nunca sabe (ou sente) pro que ele serve.

ô seo bobão... o que cê quer é facim de ajeitar.
quer ver?


abração,
r.

Unknown said...

prefiro nada dizer diante de tanta monstruosidade de beleza, o André sabia das coisas, se sabia



abração

Primeira Pessoa said...

só nos resta aprender, zé de assis.

aprender é preciso.
com o viver.

abração, maradona de ondina.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Ah, Roberto, o menino de ouro do Surrealismo sabia das coisas.
Poema antológico.
Antes a vida que qualquer coisa.
Obrigado pelas capas de disco escalafobéticas.
Abraço apertado, amigo das Geraes.

Primeira Pessoa said...

cê viu aquele trem medõin ali?
gostei dos avós do guga... e das raízes portenhas de amy...

ri um tanto.
eu, que ando meio barro, meio tijolo.

abração, procê que é da barra do potengi.

seu amigo das geraes, o

r.

Tania regina Contreiras said...

Ah, sim, antes a vida, Roberto: sempre!

Beijos,

Primeira Pessoa said...

como diria o paulinho pedra azul, taninha...
"a vida é bela... nóis é que fod'ela"...rs


um dia, aprendemos.
beijão.

Jorge Pimenta said...

a vida! sem advérbio, mesmo. simplesmente ela. seja em nisas de diamante, seja em romas a arder...
nem de propósito, querido amigo. e logo numa altura em que dei por mim a cantar a vida e a exorcizar a poesia... mesmo que em verso...:)
amanhã já estou doente, de novo, e o crivo ilusório da palavra volta a filtrar-me a visão... é sempre assim...
um brinde à vida! um meio brinde à poesia!
um abraço inteiro para ti!

Pólen Radioativo said...

"Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves..."

Ainda ressoando aqui desde a primeira leitura, Roberto.
Fico tentando entender como essa ideia ganhava corpo na cabeça de um surrealista...
Não é atoa que o André era um cara massa!!!

A música acalmou meu coração, querido.

Beijos da Ilha,

Adriana

Primeira Pessoa said...

adriana,
como o perdão do humor excessivo em dia de eleição, vale perguntar: como qual idéia tomo corpo, na cabeça de um surrealista? rs

os cubistas viam tudo em quadrados...rs

que bom que cê gostou da música. se quiser, te mando o mp3.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

escrever poesia pra exorcisar a vida é uma forma de amor, amigo jorgíssimo.
é o mesmo que jogar água-benta na cabeça do diabo. rs

acordei um pouco melhor da bronquite e pior da cabeça, amigo querido.


benfica e braga, hoje. é lá ou cá?

to nas torcidas.

abraço grande, do tamanho da luz, o ninho da águia.

r.

Zélia Guardiano said...

Roberto
"Antes a vida adversa e longa"
No mais, faço minhas as palavras do Assis...
Grande abraço, mau querido!

Pólen Radioativo said...

"...Nesse espaço de astrolábios..."

Astro.lábios... Será que é o sol se abrindo num sorriso ou o céu da boca cheinha de estrelas, Roberto?

Certa vez li um verso lindo que dizia assim...

"Teu riso desata um solstício"

Beijos

Jorge Pimenta said...

é na luz (um cá que fica a 300km :)); o glorioso ganhou 1-0 num jogo com frémito. e ontem o porto empatou em guimarães. es la remontada, como dizem nuestros hermanos :)
um abraço e trata-me dessas maleitas!
p.s. o nosso cruzeiro também não vai nada mal, verdade?

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo, nosso cruzeiro está em terceiro lugar, o que é bom (embora bom mesmo seja ser campeão, né?)
o campeonato brasileiro é, com toda certeza, o mais difícl do mundo. existem pelo menos dez grandes clubes com reais condições de vencer.

as maleitas?
vâmo driblando... acho que to com prazo de validade vencido...deve ser isto... cheio das mazelas...

abração, meu irmãozinho em braga, capital mundial da pedreira (rs).

r.

Primeira Pessoa said...

pólen,
quando o poema é belo, é bom, faz brotar poesia na gente.
acabamos nos tornando meio poetas, também.

já percebeu?

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

zélia, querida,
quando o assis fala eu presto muita atenção.
e, saiba, acontece o mesmo quando você fala.

admiração perene do
roberto.

Tania regina Contreiras said...

Voz bonita essa de Rubi, Roberto...Voz forte..
T.

Olívia Comparato said...

Passei por aqui para me encantar.
Beijo grande.

jad said...

Bom dia, Roberto.

"Antes a vida", claro. mas são tantas os rostos de que se veste! E depois há sempre a atormentar-nos o poema de Pessoa:

Navegar é Preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Fernando Pessoa

Tantos rostos! Tantas formas de os (en)cantar!

Abraço

Gerana Damulakis said...

Nossa, maravilha pura!

panaceia said...

Bom dia. Passei por aqui e amei. Sou de Portugal, Lisboa. Achei teu blog muito bom. Parabéns!
Lia Branco

Rita Contreiras said...

Sempre acredito que há um caminho secreto em meio às placas da estrada. Um desvio que nos remete ao que necessita a nossa singularidade. A senha é sempre dizer sim ao viver, pagar pra ver e desobedecer sutilmente a obviedade.

Gerana Damulakis said...

De novo meu comentário, escrito dias atrás, não está publicado. Vou procurar descobrir o que faço de errado.

Unknown said...

"Antes a vida com suas cicatrizes de fuga"

Formidável!

Roberto sua colheita é divina!

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

mirze,
formidável, mesmo, é a sua presença entre os meus.

amizade do

roberto.

Primeira Pessoa said...

gerana,
eu é que andei não postando, não visitando minha própria casa...rs

sua presença, aqui, sempre um luxo.

carinho e admiração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

sim ao viver, sempre, rita.
e pagar " o preço", é mais que uma obrigação: é uma certeza (co o morrer, um dia).

todos os dia morro um pouquinho.
pago a minha ás prestações.

do início ao fim.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

seja bem vinda ao blog, panacéia.


sua visita me alegra. põe um ponto de exclamação no meu dia.

abraço grande do


roberto.

Primeira Pessoa said...

jad,
meu irmão esteve comigo estes dias e saímos para uma cerveja num destes bares de mercado.
lá pela quinta cerveja é que notei que ele estava vestido com uma camiseta linda, que tinha como estampa o rosto de fernando pessoa.

preciso prestar mais atenção...rs

belo presente, o poema que aqui me dá.

afeição do

roberto.

Primeira Pessoa said...

olívia,
venha sempre que quiser. o encantamento vem de quem lê.
esta casa é (também!) sua.

grande abraço do

roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
já te mandei o rubi.
aliás, nossa mpb está repleta destas gemas, algumas ainda não lapidadas.

o que não é o caso de rubi.

abração do

roberto.