Sunday, December 26, 2010

Dois Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

.














Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo



In,
Ilhas
Caminho, 2004


***


enquanto longe divagas
I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por nomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges como entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece a tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


In
O Nome das Coisas
Editorial Caminho, 1991


A Música Que Toca Sem Parar:
porque tudo o que Sophia de Mello Breyner Andresen
escreveu é lindo...
Beautiful, na voz de Steve Hogarth e seu Marillion.

22 comments:

Bípede Falante said...

Maravilhoso...

Zélia Guardiano said...

Roberto
Se eu fosse uma menininha [caindo no lugar comum] diria: quando crescer, quero escrever assim!
Como já não sou tão novinha, quem sabe na outra encarnação...rs...
Mas, amigo, brincadeira à parte, que maravilha de postagem você nos oferece!
Poemas, autora, música, tudo forma um kit que Papai Noel nenhum seria capaz de inventar...
Grata pelo magnífico presente!
Forte abraço da
Zélia

Ana SSK said...

Benvindo ao Significantes.
Te seguindo aqui, lugar de palavras tão bem escolhidas.

Anonymous said...

Roberto, lindas escolhas de muita sensibilidade. Sophia é uma poeta incrível!

Um abraço,
G

Luciana Marinho said...

belíssima sophia!

"mar
metade da minha alma é feita de maresia" (s.m.a)

beijos!!

controvento-desinventora said...

Sophia Breyner é tudo de bom, como diz minha filha...Eu a conheci num
curso de Literatua portuguesa. Muito bom gosto e boa escolha!

Primeira Pessoa said...

Controvento-desinventora,
Sophia Breyner é uma grande poeta. daqui a cem anos estará sendo recitada, lida.

chegamos a tempo.

em tempo.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

luciana,
sophia caminha em lugares doloridos dentro da alma da gente, né?
ela vai lá colher flores.

cada poema, um buquê.

beijo grande do
roberto.

Primeira Pessoa said...

bom vê-lo entre os meus, geraldo.

sim, sophia... um encanto só...

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

ana,
seja bem vinda a este cantinho.
faça-se em casa.

abraço grande do

r.

Primeira Pessoa said...

mas quem disse que você ainda não é uma menininha, zélia?

é com esses olhos que te leio.

que te vejo.

carinho perene do

roberto.

Primeira Pessoa said...

que bom que cê gostou, bípede.

que bom!

abraço grande do

r.

Ale Danyluk said...

primoroso e caprichoso como de costume.
Lindas palavras dessa grande poeta ou poetisa e mais bela é sua sensibilidade em dividí-la conosco.
grande beijo, grande 2011.
Ale

Adriana Godoy said...

Oi, gostei de seu espaço. Esses poemas de Sophia arrasam, emocionam.
Certamente, vou voltar.

Primeira Pessoa said...

volte sempre que quiser, adriana.
a emoção, de quando em vez, visita este espaço.

abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

ale,
muita poesia em nossa vida em 2011.
e muita saúde, equilíbrio, harmonia, também.

continuemos de mãos dadas em 2011.

beijo grande do

roberto.

Pólen Radioativo said...

"Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso"

Perfeito, né, Roberto!?

Conheço a Sophia há um tempinho e me apaixonei logo na primeira leitura. Tive a alegria de ganhar uma parte da coleção de livros dela publicada pela Caminho e minha paixão aumenta a cada dia.


Querido, obrigada pelos encontros maravilhosos de 2010. Encontros com a poesia, a prosa, a música... (escuto, até hoje, muito Astrolábios e me lembro de ti).
Desejo um 2011 fantástico! Com muita saúde, tranquilidade e tudo mais que desejares.
Em 2011 seguiremos firmes e fortes!
Beijo grande,
Adriana.

Primeira Pessoa said...

adriana,
meu desejo é que em 2011 continuemos compartilhando palavras, sons, emoções... e que nossa turma cresça (e apareça) cada vez mais.

queria que soubesse que, ultimamente, tenho me dedicado com uns amigos a um blog de literatura mineira (a tertulia do pão de queijo). podendo, dê uma passada por lá. tem um povo interessante trocando verbo e afeto naquele espaço.

abraço grande, moça do pólen.

r.

Vem desfrutar do Amor de Deus said...

Oi Roberto,
Estava lendo o blog da Mulher na policia e te descobri la no Interpol do blog dela....Vim visitar e descobri que nos conhecemos afinal leio o seu jornal aqui em Perth Amboy, claro que quando vou a Newark e trago pra casa. Fiz parte da diretoria da Baua ha anos atras e meu esposo tinha o site MUDABRASIL, voce provavelmente se lembrara de nos...
Mas, emfim, gostei daqui e vou seguir pois o pouco que li me agradou...
Abracos
Marcia

Primeira Pessoa said...

seja bem vinda, márcia.

faça uso e gáudio deste cantinho feito para os amigos.

abraço grande do

roberto.

Prisca said...

Sophia de Mello Breyner Andresen... Simplesmente maravilhosa! Com seus poemas e mares, invade-nos a alma, às vezes sufoca-nos, às vezes nos acalma, quase deixa um rasto de paz!Minha poetisa preferida! Obrigada também por nos oferecer esse Blogue tão interessante!

Primeira Pessoa said...

Prisca,
Sophia Breyner é uma grande dama da poesia na língua de Camões.

Grato pelas palavras doces..


Abraço grande do

Roberto.