Wednesday, December 29, 2010

Tramas de Um tema Fugidio

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Nem sempre quem vive do ofício de escrever consegue traduzir em palavras as suas visões, obsessões e sentimentos. Já me frustrei em várias situações, vendo-me obrigado a enterrar temas que julgava bons.
Alguns eram de cunho pessoal, outros meramente circunstanciais.
Os circunstanciais costumam passar.
Os de cunho pessoal, não.
E ficam ardendo em quem não teve lastro para parir seu invento, marcando na pele da alma como se ferro quente fosse.
Quando minha avó morreu, eu quis escrever uma crônica declarando a ela todo o meu amor. Tínhamos uma história maior do que aquelas normalmente inerentes - e que já são imensas, por si - a uma avó e seu neto.
Eu, que nasci à luz de uma lamparina numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, tive em Ana Emília a parteira.
Foi por suas mãos que vim ao mundo. Ela foi a primeira pessoa a me tocar e a embalar um choro meu.
Cresci apreciando seus frangos ao molho pardo, seus biscoitos de polvilho e a habilidade de alinhavar versos de encantadora pureza.
Acho que meu gosto pela poesia veio dali, daquelas singelas trovinhas de Ana Emília.
Mas Ana Emília se foi.
Ao contrário de tanta gente que pede a conta da vida, paga e sobe, contente, Ana Emília driblou, o quanto pode, o “garçom” da vida.
Tinha 104 anos quando se viu obrigada a assinar a fatura.
Deixou saudades, lições preciosas, e uma lacuna impossível de ser preenchida.
Senti tanto sua morte, que não logrei escrever absolutamente nada que traduzisse o que sentia - e sinto - por ela.
Sentava-me à frente do computador e não conseguia digitar mais do que meia dúzia de frases. Lia-as em voz alta, relia, tentava costurar palavras às emoções e apagava tudo, logo a seguir.
Mais de um ano depois de Ana Emília nos ter deixado, vira e mexe, a vontade de escrever alguma coisa para ela renasce. E me ilude, uma vez mais.
Como uma brasa acesa pela brisa da saudade, a fogueira da inspiração chega a se insinuar. Mas bate um vento mais forte que a tudo apaga, bloqueando as emoções.
E uma chuvinha fina, a do desânimo, começa a respingar sobre as idéias, arrefecendo o desejo de homenagear minha avó.
Mas esta não é a única frustração neste, digamos, “departamento”.
Existem outros temas que também não foram bem resolvidos, mas que o precisam ser.
Durante um bom tempo de um tempo bom da minha vida, pensei em escrever uma história de amor.
O palco: Santana dos Ferros, terra de Roberto Drummond, uma figura definitiva em minha trajetória de operário da palavra.
Como um pupilo que provocasse o mestre, eu queria surpreender Roberto, que tinha obsessão pela morte. Seus livros evocavam isto:
Quando Fui Morto em Cuba, A Morte de D.J. em Paris, O Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado, Os Mortos Não Dançam Valsa, sua última publicação, atestam bem essa obsessão.
E eu queria algo que evocasse e celebrasse a vida.
Uma estória que, ao contrário das suas, tivesse um final feliz.
Uma estória simplória como a água da chuva, cuja sofisticação residisse justamente nessa singularidade.
Não haveria eletrizantes perseguições policiais, mas uma charrete rodando numa estrada de pé-de-moleque, ao som da percussão das ferraduras batendo nos cubos de pedra.
Ao invés de ditadores e agentes de espionagem truculentos, crianças correndo pelo jardim forrado de margaridas, lírios e jasmins.
Ao contrário de assassinos de aluguel, seresteiros.
Na contra-mão do estampido de tiros de pistolas, espingardas, metralhadoras e garruchas, a suavidade de cavaquinhos, bandolins, violões e uma flauta.
Ao invés de golpes de estado, saraus.
E uma lua cheia cuja luz atravessasse a vidraça e a cortina do quarto desta aludida casa das margaridas, e iluminasse um casal trocando beijos e juras de amor eterno.
Mas sei que Roberto Drummond acharia essa idéia ingênua demais.
Ele certamente não me permitiria escrevê-la, até o fim.
Meu mestre sempre preferiu beber da água turva do caos.
Ou a morte pela sede, com a dramaticidade apropriada de um personagem seu.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Cuba, esse grande cantor e compositor (de quem Roberto Drummond era grande fã) Sílvio Rodriguez.
Cauzas y Azares.

Cuando pedro salió a su ventana
No sabía, mi amor, no sabía
Que la luz de esa clara mañana
Era luz de su último día.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando juan regresaba a su lecho
No sabía, oh alma querida
Que en la noche lluviosa y sin techo
Lo esperaba el amor de su vida.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando acabe este verso que canto
Yo no sé, yo no sé, madre mía
Si me espera la paz o el espanto;
Si el ahora o si el todavía.
Pues las causas me andan cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se me viene enredando
Poderoso, invencible.

13 comments:

Tania regina Contreiras said...

Roberto, nem tudo se traduz em palavras: eis uma descoberta de-ses-pe-ra-do-raaa...Pra mim fui. E aí, meu amigo, tenho, tardiamente, buscado aprender outras formas de expressão: pintar, modelar, teatralizar...rs Nossa, o amor que não pode ser dito em palavras parece que dói, né? Mas você sempre diz de uma forma bela, Roberto. Diz o indizível e emociona...
Mas esse negócio de morte, nossa, eu também gosto. Escorpinianamente inevitável pra mim.
Beijão,

Unknown said...

uma das coisas mais significativas que eu já li é o não-começo de Hilda Furacão, algo realmente devastador para quem gosta de escrever. e escrever tem esses mistérios um dia funciona tão bem já noutro,

grande abraço e saudações a 2011

Primeira Pessoa said...

assis,
roberto drummond foi, muito mais que um mentor, quase um pai pra mim. escrevia "de grátis" pro meu jornal e foi parceiraço em inúmeras noitadas belorizontinas.
te conto uma história:
ele sofria tentando parir "O Cheiro de Deus" (já tinha inclusive gastado o adiantamento da editora na compra de um apartamento e não dava conta das cobranças incessantes que poderia inclusive terminar na Justiça).
foi assim que, num ato de desespero, escreveu a partir de uma crônica que publicara no jornal Hoje em Dia ele pariria a história de Hilda Furacão (sim, ela existiu...).
Fez tudo em 2 meses e o entregou ao Pedro Paulo Senna Madureira (da Silciliano), que aceitou e ficou tudo zero a zero.
o livro acabaria se tornando o maior sucesso de sua carreira e O Cheiro de Deus nasceria dois anos depois.
motivo de grande orgulho, Hilda Furacão foi dedicado também a mim.
escrevo a você, agora e me emociono.
e uma saudade imensa de Roberto toma conta de mim.

abração deste outro
roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
roberto drummond tinha verdadeira obcessão pela morte. vários de seus livors evocavam isto: A Morte de DJ em Paris, O Dia Em Que Ernest Hemingway Morreu Crucificado... e por aí adentro).

ainda hoje eu falava sobre a morte, este cachorro adormecido que sabemos que, qualquer dia, qualquer hora, acorda para nos morder.

deixemos esse pitbull "sonhando" em seu sono mais profundo, num é não?

beijo grande do
roberto.

Zélia Guardiano said...

Preciosidade, meu amigo!
Como sempre, aliás...
É sempre muito gratificante vir aqui.
Abraço, querido, acompanhado dos meus votos de Feliz Ano Novo!

Anonymous said...

Fala sério!

Você com vocação pra Chitãozinho? Logo tu que abomina os breganejos?
rsrs

Deixa estar, deixa estar que a tertúlia vai bem como tá!

boa virada aí procê!
só não vira todas, senão o 'figo' não agüenta...

bjão!

Lhu Weiss said...

Ai!! como é difícil acompanhar esses amigos que escrevem demais,pensam demais...e demasiadamente nos enriquecem com sabedoria! Passei para desejar-te um Ano de 2011 "demasiadamente" cheio de sorte e sucesso! Adoro passar por aqui!
Abraços que à distância desejo, espero sinceramente que cheguem e retribuam tudo o que de mais passou à todos...cultura,sabedoria e amizade!!
Lhú Weiss

Primeira Pessoa said...

Lhu,
difícil mesmo é beber com esses amigos...rs
haja fígado.

sua passagem por aqeui é sempre um motivo de celebração.

grande abraço do

roberto.

Primeira Pessoa said...

fouad,
vou insistir até você entender que aquilo ali é pra todos nós.
deixa de ser individualisma, zé orêia!

se cê não se definir loguinho, compro uma guitarra (rs) pra mim e cê vai ver o estrago.

sim, 2011 será um grande ano.
já estamos juntos, broda!

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

zélia,
e que em 2011 eu possa continuar desfrutando de sua amozade e companhia.

zélia guardiano é unanimimidade inteligente e sensível.

beijo grande do roberto.

líria porto said...

já te contei - um dos mais belos livros que li, o "cem anos de solidão" brasileiro - e melhor - foi "o cheiro de deus", do roberto drummond - então escreves sobre teu xará e lamentas a história de amor não escrita - e quem te disse que não a estás escrevendo??
besos

Primeira Pessoa said...

contou sim, lírica.
e, no outro dia fiquei pensando se roberto estivesse vivo... ele certamente estaria fazendo parte da nossa tertúlia...

seria divertido tê-lo nos nossos encontros, cheio de pose... rs
tenho muitas saudades dele.

ó, e que 2011 nos aproxime ainda mais.
nossa história apenas começou.

beijo grande do

r.

O que Cintila em Mim said...

A alma foi marcada, não com ferro, mas com um lastro de ternura.