Saturday, September 15, 2012

Pequenas memórias alienadas


Eu, que hoje entendo muito pouco de quase nada, naquele tempo já não entendia muito de muita coisa.
Usava calças-curtas e cantava o hino nacional na escola, todos os dias, antes do começo das aulas.
Era um menino católico - como todos os outros -  e às vezes emprestava minha voz a um Padre Nosso meio desafinado, capenga, naquele país pré-Edir Macedo, pré-Robério de Ogum.
Eu não sabia melhor.
Todo sete de setembro eu desfilava na avenida -  como um mestre-sala mirim - junto com uma legião de soldadinhos de carne e osso ao som de marchas militares e outros baratos afins.
Às vezes um tanque nos servia de carro alegórico, e aquilo era imponente e intimidador.
No palanque, homens com estrelas nos ombros, roupas engomadas e sapatos lustrosos sorriam.
No rádio de ondas curtas, Dom e Ravel davam a saber que aquele era o lugar dos patriotas.

"Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil
eu te amo, meu Brasil, eu te amo
ninguém segura a juventude do Brasil".


A juventude, eu não sei, mas a infância brasileira fedia no escuro.
Duvido de que pelo menos uma minoria dos meus contemporâneos tivesse consciência do que se passava no país daqueles dias.
Naquele interior do interior do Brasil, eu era pequeno demais para saber que os descontentes desapareciam em porões.
E que os contentes eram os homens vestidos de verde-oliva.
E que eles eram truculentos, couraçados, trucidantes...
Eu não sabia que o País do Futuro, no presente, não passava de mais uma republiqueta das bananas na América Latina.
Eu era um passarinho engaiolado e não sabia.

Infelizmente, daquela minha turma de meninos ninguém deu em grande coisa.
A minha geração foi uma das mais sacrificadas desde a colonização do país.
Somos a chamada geração perdida, a que descobriu o caminho da emigração e despachou brasileirinhos e brasileirinhas  para os quatro cantos do mundo.

Nós nos instalamos entre os aborígenes da Austrália, entre os malditos chicanos do Texas e os brasiguaios de algum lugar mais dentro do que fora do Brasil, ali pelas cercanias de Assunção.
Somos os subalternos, os estafetas, os contínuos.
Somos os decasseguis, os brasucas, os expatriados.
Somos aqueles que batem continência, os que abrem as portas dos carros e dos hotéis; e os que guardam o veículo e a casa alheia, os que se conformam com a sorte menor.
Somos os que lavam os pratos. Os que limpam o chão.
Somos os que lavam os cadáveres nos necrotérios.
Os que passeiam os cães das madames.
Os que servem à mesa.
Os que cozinham para os bem nascidos, e muitos destes vieram tão depois de nós.
Exceções?
É claro que as há, como em toda regra criada pelo homem-lobo-do-homem.
Mas não somos páreo para os de antes, nem para os de depois da década de 1960.
Nós somos os de durante.
Somos os zés e marias-ninguém deste gigante fincado na América do Sul.
No grande esquema das coisas, somos uns desinfluentes quase sempre cheirando a suor e picotando o cartão de ponto em algum lugar.
A minha geração nasceu condenada a ser menor.
E isto, até outro dia, eu ainda não sabia.


.

26 comments:

Anonymous said...

A nossa História parece sempre ter saudades do que nem viveu.

Li-o também na revista da Nina, maravilha de texto.

Beijo.

cirandeira said...

Roberto, eu não sei bem ao certo se
a tua geração é maior ou menor, mas
tenho a mais absoluta certeza que
esse período ao qual te referes foi
o pior de todos da História do nosso país. Enquanto muitos jovens
e até adultos, cantavam o hino nacional e "eu te amo meu Brasil",
muitos jovens "cantavam" e gritavam
sob o som de uma outra batuta truculenta e perversa, e muitos foram mortos, "desapareceram" sem deixar pistas, até hoje. Atrás das grades, ficava a ver pessoas passando ao longe pelas ruas, totalmente alheias ao que se passava alí dentro. Acho que ninguém acreditava no que se passava nos porões do exército ou da polícia federal. Foi um período
de muita efervescência política, social, cultural, de muito sofrimento, também. E o muito do que existe hoje em termos de direitos sociais, abertura política e econômica, começou naquela época. Uma época quase desconhecida pelas gerações que vieram depois e que muitos ainda fazem questão de mantê-la escondida. Achei muito interessante a tua crônica, muito elucidativa. É um tema que demandaria um comentário de muitas páginas, tamanha é sua abrangência,
mas creio não ser o local mais apropriado no momento.
Quero dizer-te que esse é um assunto que me emociona profundamente e te agradeço por essa postagem.

um grande abraço

Unknown said...

é broda nascemos condenados, quase nada enxergávamos e hoje muito menos, eu ando usando óculos mas os girassóis continuam distantes. um poeta russo disse que no brasil existia um homem, eu vou fazer igual aquele filósofo grego e me municiar de uma lanterna e sair à sua procura, temo que quando eu o encontre ele já não seja,


evoé, abração

lisa said...

Cheguei até aqui através desse maravilhoso poe-manifesto na Revista Ellenismos. Fiquei verdadeiramente emocionada ao te ler. Grata por isso.

LauraAlberto said...

eu conheço-te Roberto e tu és tudo menos um ser menor

nascer condenado, não quer dizer que seja destino certo

beijo, de saudades

Bípede Falante said...

Ainda acho que é nas pequenas memórias, nos pequenos detalhes, nos pequenos gestos, nos pequenos em geral, que vivem as sementes das flores que um dia se transformarão em frutas. É no alimento que está o e não nas sombras.

beijo

BF

Primeira Pessoa said...

larinha, minha sobrinha que já nasceu com 21 anos...
aqueles tempos foram difíceis demais, e eu não sabia.

eu e mais um tantão.

beijão do tio

r.

Primeira Pessoa said...

criandeira,
a história que eu sei é a mesma que você sabe, com a diferença que eu só tomei conhecimento tarde demais...

tão tarde, que eu só tomei conhecimento de tudo quando já era tarde demais (para mim, claro).

sou dos que sequer virama banda passar, por incompetência, por cegueira, por miudeza que a vida me fez (e eu aceitei).

beijão do

r.

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
ouvi dizer que o homem que o russo anunciou e os girassóis (que vincente van gogh denunciou em amarelo) estão na boa e bela bahia, ali pelas bandas de feira.



beijo grande do seu broda,

roberto.

Primeira Pessoa said...

lisa alves,
se chegou pelas mãos de nina rizzi, ja chegou pegando um lugar à janela, já chegou podendo pegar a coxa do frango e é sua a azeitona da empadinha.

e mais nem direi.

seja mais que bem vinda.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

laura,
minha sobrinha me trouxe, ontem, daí de terras d'além mar, uma garrafa de porto branco, branquissimo, muitas lágrimas de cristo.

eu ando com tanta saudade de você e do jorge, que já nem sei.
preciamos nos ver.
para anteontem.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

bípede,
permita-me discordar, concordando: é nas pequenas (e nas grandes) coisas que tudo reside.
que tudo conta.
que tudo faz parte.
tudo na vida nos eleva (ou deruba), no que o verbo chama (ou toca) pelos nossos próprios lábios.

beijo do
r.

Bípede Falante said...

Pois é...
faltou o o do o, no caso, uma palavra: motor.
Eu nos acho todos insignificantes, partículas no mais puro sentido.
Na verdade, não percebo a diferença entre grande e pequeno.
Para mim somos todos o mesmo amontoado de fluídos e a "grandeza" do trabalho de um não desmerece a do outro, que de nada me serve uma bela comida se servida em um prato contaminado de insetos.
beijo
BF

ÍndigoHorizonte said...

¿Generación perdida y menor? Tal vez, la generación sí. Tú, no.

Tania regina Contreiras said...

Beto, eu me assusto ainda e tanto com tudo isso! Eu me pergunto onde estive quando as páginas mais negras de nossa história estavam sendo escritas com sangue. Eu não sabia. Nada sabia. Não podia compreender, saber, enxergar. Dó também quando a gente entende tarde. Dói não ter podido ver. Dó acordar. Mas é preciso. Antes tarde.
Beijos,

Tuca Zamagna said...

Roberto, meu mestre do bem viver! meu guru de boemia! minha deusa! minha diva! musa! gueixa!...

Por que sumiate do FB sem dar satisfações? Pensas que nada deves a quem seduzes, escravisas e sevicias?

Tentei comentar na tua mais recente postagem no Falsidade, mas depois do apagão do blog desapareceu o link para comentários, assim como aquelas orelhinhas para postagens antigas e seguidores.

Lá, eu teria dito que, quanto a mulheres e gripes, a questão pra mim se resume a: qual amiga querida me visitará quando estou acamado e fará e me dará na boca uma sopinha de legumes?

Beijão, minhoca das geleiras do Saara!

Gustavo said...

Muito interessante! Cada geração com sua singularidade. Sinceramente? Temo por essa mais nova e tecnólogica que já apontou por aqui!

Abraço!

Anonymous said...

Bonita expressão do que realmente somos.

Gostei.

Um abraço e ótimo final de semana para você!

Primeira Pessoa said...

Grato pela visita, will.
a casa é sua.

abração do

r.

Primeira Pessoa said...

deu pra entender, mesmo sem o O, bipede.
no grande esquema das coisas, no grande plano, somos, realmente, ínfimos.
mas somos grandiosos, também,no que vamos realizando pequenas grandes coisas.

beijão do
r.

Primeira Pessoa said...

pablo,
essa turma mais recente tem muito mais informação do que tínhamos, é sexual e intelectualmente melhor resolvida.
temo, claro, pela banalizaçào das coisas, dada a facilidade com que tudo se apresenta.
veja por exemplo nas artes, mais particularmente na música, existe uma involução que me incomoda bastante.
mas pode ser que isto seja apenas mais um conflito de gerações.

abraço grande do

roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
nosso sentimento é exatamente o mesmo.
é muito louca essa sensação de "tapamento", de alienação. no meu caso, sempre me pego pensando no que teria sido de mim, caso eu crescesse por dentro de um universo mais engajado.
eu certamente teria me tornado uma pessoa mais interessante.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

mulher de la mancha,
eu, o mais perdido de todos. rs
pouco se aproveitou neste homem, amiga querida.

beijo grande do

r.

Primeira Pessoa said...

tuca,
voltarei ao facebook num futuro próximo, quando achar que já sei possuir o facebook, sem ser possuído por ele.
afinal, é o cachorro que abana o rabo, né?
tenho saudade de pessoas queridas como você, saudades da conversa "afiada", dos papos bons...
fica a promessa: eu voltarei.

beijão,
r.

J Araújo said...

Posso discordar de muitas, mas não da sua indignação referente ao período da famosa ditadura, com certeza foi um período difícil da historia do país. Cantar o hino nacional, cantei muito na escola, ah, também fazia uma oração antes do começo vidas aulas, eu particularmente não achava isso as piores coisas do mundo. Até penso que saber cantar o hino de seu país demonstra um certo patriotismo e respeito. Sou da geração de 50.

Abraço,

Primeira Pessoa said...

a sua geração é muito próxima da minha, jorge.
vivíamos em um um país católico e militar e não fomos avizados disto.
de vez em quando eu me lembro.

abração do
roberto.