Monday, October 23, 2017

Menino passarinho



Vivi com o Ronilton Correa por quase cinco anos, quando cheguei aos Estados Unidos. 
Eu não sou fácil. Nunca fui. Mas o coração tranquilo do "Pitico", sua infinita generosidade e capacidade de relevar, propiciou que jamais tenhamos tido um único desentendimento ao longo daquele tempo (e nem depois). 
Nós nos tornamos irmãos, destes que escolhemos na contramão da 'obrigatoriedade' imposta pela genética.
Lembro-me do dia em que alugamos um porão na Hensler Street, um lugar inesquecível e onde eu viveria alguns dos anos mais bonitos de minha vida.
Apesar de termos residido em bairros vizinhos em Governador Valadaes, não nos conhecíamos de lá. Eu era colega de classe do seu irmão Artur, no Ginásio Duque de Caxias, e conhecia Ari, casado com uma de suas irmãs.
Quando decidimos dividir o aluguel, Pitico vivia em um quarto em cima do restaurante Rio Lima, na Madison Street. Marquei de me encontrar com ele após o expediente, que para nós ocorria sempre por volta da meia noite.
Nenhum dos dois possuia carro e tivemos que levar suas trenheiras (roupas, fitas cassetes, uma caixa de sapatos cheia de cartas da família) e pouco mais em sacolas de lixo pela Ferry Street. Quatro sacolas daquelas pretas, para ser exato.
Após despejarmos seus pertences no nosso covil, demos um pulo ao Path Mark e compramos pão, mortadela e fanta laranja. Comemos a nossa primeira refeição sentados no chão, haja vista que não tínhamos sequer um colchão para dormir.
Mobiliamos o porão com móveis encontrados no lixo e ficou super legal. Transformamos aquele lugar escuro e sem vida em um lar, com pôsteres de nossos ídolos nas paredes e onde se escutava muita música brasileira.
O primeiro investimento foi uma radiola, e nela escutávamos os bolachões que comprávamos na Coisa Nossa, a pioneira das lojas de produtos brasileiros em New Jersey.
Dividíamos as incertezas do futuro e nos tínhamos um ao outro. 
Não era fácil ser brasileiro a serviço de portugueses e espanhóis nos restaurantes daquele tempo. Havia contra o brasileiro muito preconceito, um estigma disseminado sabe lá Deus por quem, e tivemos que trabalhar dobrado para desfazer o  rótulo.
Chorávamos nossas dores de amores de juventude não correspondidos no ombro um do outro e sonhávamos em, um dia, irmos ao junto ao Brasil, tão logo nos legalizássemos.
Planejamos ir a shows de MPB em BH, tomar banhos de mar nas águas de Fortaleza, curtir baladas intermináveis onde houvesse baladas e beber uma brahma gelada, acompanhada de frango assado, daqueles de 'televisão de cachorro', no mercado municipal da Governador Valadares. Infelizmente a vida nos levou para lugares diferentes e não chegamos a realizar o sonho comum aos dois, apesar de sempre gravitarmos em torno de Newark.
Vivemos momentos muito especiais e cada pequena vitória pessoal era comemorada pelo outro como uma final de copa do mundo. Tenho muitas estórias para contar daquele tempo, algumas impublicáveis. Mas tem este episódio que relato a seguir, que demonstra bem o tipo de pessoa que era o Pitico.
Rolava no apartamento um cateado nos dias de folga. Jogávamos apostado uma moeda de 25 centavos por cada partida. Naquele dia, Pitico estava com sorte e eu não conseguia tirar as cartas que necessitava para vencer. Jogamos por cerca de seis horas seguidas e ele já havia me limpado em dez dólares. Inconformado, quis recuperar, propondo a ele um tudo ou nada, casando desafiadoramente uma nota de dez.
Pitico deu uma caçoada e aceitou, antes de me aplicar uma nova surra.
Mau perdedor, pedi que apostássemos os vinte ganhados e ele, com pena, topou.
E foi me vencendo, uma vez após a outra, até já ter acumulado 170 dólares, dos 220 semanais que eu ganhava lavando pratos na cozinha do O'Campino.
Fui dormir bêbado e falido. 
Na manhã seguinte, quando acordei ele já tinha saído para o trabalho. Em cima do meu criado-mudo estava um envelope contendo o dinheiro perdido por mim na jogatina da noite anterior e um bilhete contendo uma única palavra:
    "PATO!"
Há dois anos, Pitico descobriu que estava com câncer e lhe foi dado apenas um ano para viver. Ele não se conformou, fez de conta que não era nada com ele.
Desafiou a medicina, continuou respirando, sonhando com futuros bonitos e ainda viveria o dobro do tempo dado pelos médicos.
E viveu como sempre viveu, com intensidade e paixão. 
Viveu para acompanhar um pouco mais a trajetória dos filhos adolescentes.
Viveu para a caminhar um pouco mais ao lado de Márcia.
Viveu para ver e abraçar a primeira neta e se tornar penta-campeão da Copa do Brasil com o Cruzeiro, um dos seus grandes amores.
Viveu com a nobreza de sempre, sem reclamar das dores atrozes e das cruéis impossibilidades, e nos mostrou que a vida é bela e deve ser apreciada e vivida até o último suspiro, ainda que o inevitável fim tenha data marcada.
Na madrugada passada (22 de outubro), Pitico virou passarinho. Ele, que era leve e sempre soube voar.
Vou sentir demais a sua falta, meu menino.
Até um dia, Pitico.
Você continua vivo em mim e nos seus.


* Foto tirada em 1984, na Wilson Avenue, em Newark. Éramos jovens e acreditávamos na imortalidade. 

1 comment:

ÍndigoHorizonte said...

Querido Roberto:

Siento que tu hermano del alma se haya ido. Los pájaros siempre vuelan. Revolotea él ahora, junto a ti y a los suyos.

Abrazo enorme, Roberto