Wednesday, August 11, 2010


















Alencar, o rei da mentira

É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro. Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam. Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor. Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes. Mentir por mentir, jamais. Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas. E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo. “Não deu para aproveitar nem o couro”, fartava-se de repetir.
Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.
Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.
Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada.
Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando. A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

*

A Música Que Toca Sem Parar:
a improvável parceria de Ritchie, musicando e cantando Meantime, poema da fase inglesa de Fernando Pessoa.


Far away, far away,
Far away from here
There is no sorrow after joy
Nor away from fear
Far away from here...

Her lips were not very red
Nor her hair quite gold
Her hands played with rings
She did not let me hold
Her hands...playing with gold

She is somewhere past
Far away from pain
Joy can touch her not
Nor hope enter her domain
Neither love in vain

Perhaps at some day beyond
Shadows and light
She will think of me
And make for me a delight
Far away from sight...

23 comments:

Zélia Guardiano said...

Excelente história, Roberto!
Alencar, o rei da mentira...rs...
O mentiroso, geralmente, é boa matéria-prima para escritos.
Aqui na nossa aldeia, tivemos também um cidadão que abominava a verdade, tanto que atendia por Paulão Mentiroso. Pois sabe que já pensei em escrever sobre ele? Talvez, um dia...
Mas, voltando ao Alencar, adorei começo, meio e fim do causo, com ênfase para o envolvimento de Marta Rocha ...rs... E para o final, naturalmente...
Quanto à música, realmente curiosa a parceria, que resultou nesta beleza, certamente para provar que tudo é possível neste mundo e que, nem mesmo uma menina veneno deixa, obrigatoriamente, marca indelével, de ferro quente, em ninguém: afinal, tudo pode mudar, pois a vida é dinâmica...
Bela postagem, meu amigo!
Grande abraço

Anonymous said...

o alencar me jurou de pé junto que em Passa Quatro uma vez nasceu um menino ladino que tinha o vento nas mãos e escrevia com febre nos óios... um tal de roberto lima... disse que fez até pacto com o diabo pra ver se deixava de ser cruzeirense, mas pra esse tipo de feitiço nem o sete-peles deu jeito...hehe

é nos.

Tania regina Contreiras said...

Ah, mas um sujeitinho desse pode ser mentiroso, mas é simpático. às vezes nem é mentira, é delírio. Dá outras cores à realidade. Mas,tadinho, esse fdim ele não merecia não...
Beijos, Roberto

Marcantonio said...

Mas, Roberto, o Alencar era um artista! E escolheu viver perigosamente. Rs. Engraçado que o rasgo de sinceridade se assumindo como mentiroso lhe garantiu popularidade e platéia. Essa relação entre mentira e verdade dá muito pano pra manga. Estava lembrando aqui daquele filminho com o Jim Carey, O Mentiroso, em que o cara é obrigado a dizer sempre a verdade, se metendo com isso nos maiores apuros. Coisa complicada, parece que a mentira tem uma função social. Afora isso, há sempre o eco daquela pergunta transcendental: Que é a Verdade?

Abração!

Primeira Pessoa said...

os escritores,
quase sempre são mentirosos profissionais...

vivem de inventar estórias, num é não?

zélia, essa menina veneno acabou estigmatizando o ritchie... temos amigos em comum e eles garantem que o inglês é gente muito legal, além de um cara interessante e culto.

tomara que meantime o redima, pelo menos diante de você, da moça venenosa, né?

beijao,

r.

Primeira Pessoa said...

fouad, comecei a te ler e achando que era o zé alencar...rs.. o vice do lula...

ô, pacto pra deixar de ser cruzeirense? impossível.
ta mais fácil o demo entrar pra um seminário, se ordenar padre e sair pelo mundo distribuindo hóstia e comendo criancinhas (afinal, habitos velhos são difíceis de abandonar)...
e o demo é o demo, né?

sarto fora dele.
sou da turma do outro. do barbudão. quero papo com o chifrudo, não.

ô,tô de zói n'ocê!

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

marcantonio,
juro que não é mentira, o que vou contar.
alguns dias após publicar a cronica no jornal do qual sou editor aqui em new jersey, toca o telefone. me dizem que é o filho do alencar.
e era mesmo.
pensei: lá vem merda.
afinal, alencar existiu mesmo. era caminhoneiro. até a inscrição no pára-lama rolou, todo o bairro comentava isto (eu não o conheci pessoalmente, era muito menino)...
enfim, achei que escutaria um monte, que o moço O telefone me demoliria com o papo de que desrespeitei a memória de seu pai... que iria me processar... essas coisas...
ledo engano.
educadíssimo, o homem me disse que achou legal a "estranha homenagem" que eu prestara ao seu pai.
contou-me que imigrara pros eua no inicio dos oitenta (o filho), que tinha familia aqui, que quase formara no brasil, mas que aqui trabalhava na construçao civil... enfim,..
na hora de se despedir, deixou-me uma frase, que disse ser de sua mãe:
- meu pai não mentia por mal. ele gostava de entreter e alegrar as pessoas.

bicho, me deu um nó na goela.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

taninha,
mentiroso mesmo é o maluf, o quércia, o collor, o acm, o bush...
essa turma...

perto deles, alencar era um profeta...

beijo dorminhoco de quem ja deveria estar dormindo.

r.

Jorge Pimenta said...

tive a oportunidade de ler esta tua crónica aqui há uns meses. magnífica, sem dúvida. continuo a pensar por que razão, sempre que escuto o nome alencar, me ocorre aquele rosto de poeta ultra-romântico, de dentes amarelos e tez pálida, cabelo farto puxado para trás e a voz grave de quem sofre com o mundo? há arquétipos que se constroem a partir dos livros e este alencar de "os mais", do eça, é para mim imortal.
um abraço, amigo!

p.s. já conferi augusto dos anjos e os seus versos íntimos. arrepiante! respondi-te lá no viagens de luz e sombra.
um abraço, cruzeirista amigo!

Tania regina Contreiras said...

ò, depois dessa ligação do filho e da fala da mãe, nossa: concordo que o Alencar só queria mesmo era dar cor à vida das pessoas.
(Gostei de saber que o Alencar existiu, porque já me apaixonei tanto por personagens de livros que quase doía saber que não eram reais...:-))

Beijos

Unknown said...

Roberto!

Não minto. NUNCA! Mas convivo com a mentira, e aprendi a tirar proveito, onde antes eu sofria.

A mentira, dependendo do "mentiroso", faz parte do humor brasileiro.

Esta crônica, é uma aula!

Meus cumprimentos e coitado do meu ex marido. Acabará como o Alencar.

Abração!

Mirze

Primeira Pessoa said...

ô, mirze...
tenho como lema: mentir, só pra salvar a vida... mas é impossível fugir das mentirinhas comerciais... depois, fico me punindo...rs
isso é uma meleca.

mas existem mentiras interessantes, sim. os mentirosos patológicos, esses são perigosos... mentem até no "bom dia"!

beijo meu,
r.

Primeira Pessoa said...

jorge,
perdi o hard drive de um computador com 20 anos de crônicas nele... uma imbecilidade...
e daí, diante da minha presente inabilidade de produzir textos novos, fico sujeitando meus amigos queridos a reler trabalhos já postados.

fico envergonhado, mas esperançoso de voltar a produzir algo, na pior das hipóteses, dignos de leitura.

mas, confesso, nestes dias, tá "osso"...

respondi-te no seu cantinho. depois dá uma espiada lá.

abração,

roberto.

Primeira Pessoa said...

taninha,
a mulher o compreendia.
o filho também.

e nós, rebocados... ídem.

abração,

roberto.

Unknown said...

eu não gosto da palavra mentira, gosto de invenção que é uma arte como recriar histórias, o que mais existe no mundo é invencionice. aqui no sertão de meu Deus o cabra tem que ter astúcia na hora de elaborar a invenção, prá não ser acusado de farsante,


abração deste curioso da invenção

Primeira Pessoa said...

é uma forma engenhosa, assis... rs
veja bem, quando alencar assumiu suas invencionices, acabou sendo melhor recebido, virou entetainer da rapaziada, mentia (invencionava...rs) "a pedidos"...

e isto, convenhamos, tinha lá seu èlan.

beijão, parceiro!

r.

nina rizzi said...

ô, tu foste ao jogo?
fiquei feliz de saber teu pai aí, visse :)

beijos.

Anonymous said...

Parecia meu pai me contando uma história. Meu pai gostava de contar histórias!
Bjs querido.

Jorge Pimenta said...

querido amigo, reler-te é sempre um prazer renovado!
sobre augusto dos anjos, sabes que quando o li o senti, também, como mais simbolista que parnasiano? a obsessão pelo eu e o seu lado mais profundo estão ali bem presentes...
um abraço, amigo!
p.s. os jornais continuam a dar o wesley como quase fechado pelo benfica. esse e um tal de mailson, creio, miúdo internacional de sub-20.

Primeira Pessoa said...

fatima,
meu pai não é dos mais falastrões.
nào era, mas depois que teve um avc, ta tirando o atraso.

o repertorio é curto, ele se repete muito...rs... e quase tudo estória de polícia ou de roça, os dois únicos universos que conheceu...
mas to aprendendo a ouvir...rs


beijao,

r.

Primeira Pessoa said...

fui nada, nina...
dormi no intervalo, depois de detonar dois gin tonicas e umas 3 coronas...rs

putz, tava com saudade dos meus pais... meu pai é o meu personal trainer, saímos para caminhar todas as mãnhãs...
está sendo precioso.

grato pelo carinho.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
sou (muito!) mais o elias. wesley não joga a metade do corintiano.
mailson, não conheço, mas pode ser mais desses miúdos que chegam em portugal e se transformam em decos, davids luís, pepes...

acho que pensando nisso, o novo treinador brasileiro convocou o cabeludo (cabeleira de samambaia) defensor do "nosso" benfica para o amistoso com os eua.

jorgíssimo, cê sabia que augusto dos anjos chegou ao panteão da literatura brasileira tendo escrito apenas um único livro?

romério rômulo é fã dele. escreve umas coisas modernas, mas embebidas em augusto. e eu gosto.

eh, eu também sou fã, óbvio. quando comecei a escrever, queria ser uma unha caída de augusto dos anjos...rs

me reemociono (rs), sempre que releio.

beijo deste seu amigo das terras altas de minas, o

r.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Roberto, certamente o Alencar andou por Brasília.
Conheço muita mentira de pescador, mas de caminhoneiro Alencar é a Primeira Pessoa, sem nenhuma alusão ao seu blog.
Kkkkkk...
Velocidade Cruzeiro pra ti, cronista das montanhas de Minas.
Saudações das brancas dunas de Jenipabu.