Friday, March 16, 2012

Dois Poemas de António Ramos Rosa



















Não Posso Adiar o Amor


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração



in "Viagem Através de uma Nebulosa"




Poema dum Funcionário Cansado



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra




A Música Que Toca Sem Parar:
a inesquecível Cesária Évora, Sodade.


Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

25 comments:

Anonymous said...

mt mt mt mt mt bom! imf

Primeira Pessoa said...

imf,
lindos, também, são os poemas que você nos dá a comer.

beijão do

r.

Anonymous said...

Oi Roberto,
Quem disser que mandamos em nossos corações, não sabe o que é o amor... E engana quem pensa que não se sofre por amor. Na agonia, só mesmo a outra metade para aliar. Não dá para adiar...

Belas poesias.
Abraços, bom final de semana.
Aguardo uma visita sua. Gostaria que fosse em meu canto, entre arestas e (des)encantos.
Ana Lúcia (Cores da Vida...)

Primeira Pessoa said...

eu não mando no coração, esse bichinho que tem vida própria....
não mando no fígado... não mando no pâncreas... não manso em minhas unhas....

eu não mando em nada, ana lúcia. se não mando nos pedaços... também não mando no que se pensa inteiro...

abração do

roberto.

Dario B. said...

Muito bom trazer o Antonio pra cá, Roberto. Tão bom poeta e tão pouco conhecido, e menos lembrado ainda. Abração.

Marcantonio said...

Na verdade, dois poemas sobre o inadiável, não? O segundo, que transcorre tão desalentado, vejo-o até como uma descrição da condição (ou da situação) humana: de repente esse funcionário tem a sua exemplar mas pesada cadeira tornada ejetável pelas palavras que o lançam ao alheamento, ou melhor, à transcendência. E como são distintas as duas últimas estrofes!

Isto parece a definição dum poeta:

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Né?

Mas o que seria esse parar nel mezzo da vida? Rs.

Em meio a este meu blá-blá-blá, um abração, Roberto.

Primeira Pessoa said...

marcantonio,
eu gosto da forma que os portugueses manuseiam emoção e verbo, e gosto de vê-los recitar, também.

depois, se cê tiver um tempinho, dê uma espiada no youtube os próprios poemas de antónio ramos rosa. é um trem do outro mundo, de tão bonito e bom.

eu sinto os brasileiros, de um modo geral, um pouco preconceituosos com a arte que se faz em portugal. o que é um claro engano.

o que não é um engano é ver você aqui no PP, entre os meus.

beijão do

roberto.

Primeira Pessoa said...

dario,
é bom ter pessoas como você ajudando a trazer e levar antonios, ramos e rosas... a poesia melhor que existir, para corações e olhos atentos.

abração do seu amigo

roberto.

Iara Maria Carvalho said...

um coração e uma lata dágua... esses poemas me lavaram.

beijosss

Primeira Pessoa said...

a poesia tem esse poder purificador, Iara.

que bom que existe a poesia para nos santificar.

água benta.


beijão,

r.

Daniela Delias said...

Bela, bela escolha...palavras lindas.
Bjão, Beto!
:)

Jorge Pimenta said...

robertílimo,
comprei há pouco mais de um mês uma antologia poética preciosíssima de ramos rosa. tem um prefácio delicioso, de ana paula mendes, e surge escrito a tinta encarnada. perfeito!!!
para quando a noite me trocar os sonhos e as mãos :)

abraço!

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
a gisela ramos rosa, sobrinha querida e que devota ao tio um amor de filha para pai, cuida das coisas dele.

cheguei em pensar em alinhavar uma homenagem a ele, no clube português de newark, mas ela me disse que ele não viaja mais, pois se encontra adoentado, os anos pesando...

ao meu sentir, Ramos Rosa é um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos.

você fez uma belíssima compra.

abração do

Roberto.

ps: ganhei de presente dois livros de valter hugo-mãe, que tô doidinho pra ler.

Primeira Pessoa said...

dani,
voce, que escreve palavras bonitas as recolhece ao longe, tem bom olho de compradora.

poeta imenso, o ARR.

beijão do

r.

Unknown said...

Lindos poemas. Percebo que o sobrenome "ROSA", é dos bons.

No segundo poema, eu contadora por decreto, senti o peso de durante meia vida não deixar fluir a emoção.

Beijos, mano!

Bom gosto, o seu!

Mirze

Primeira Pessoa said...

mirze, flor e poesia...
acho que você matou a charada... guimarães, ramos...

belo-belo-belo!

Linda Simões said...

Roberto,

Eita! Que é lindo demais!

Sodade de Portugal,dos amigos que lá deixei...

E o coração... Ah, esse bicho indomável...


Beijinhos,


Linda Simões

Primeira Pessoa said...

linda,
assim que der, volte à terrinha pra matar a saudade e achar como acontece comigo quando vou lá, pedaços espalhados de você.

beijão do

roberto.

Anonymous said...

ah, Roberto saudades tuas...

Bela escolha a tua, adiar o inadiável. Mas é se o inadiável fosse na realidade adiável até ao fim?

Beijinho!
<3

Primeira Pessoa said...

lauríssima,

antonio ramos rosa?
ah, nem me fale desse senhor: bestial!

beijão do

roberto.

ps: falei das saudades na postagem anterior.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Ah, Bob, também não tenho tempo a perder e não quero adiar mais nada na vida, sobretudo a leitura de um livro de António Ramos Rosa, poeta supimpa de excelente calibre. Valeu a postagem e agora me dê licença que vou correr atrás de um livro do bardo portuga. Bjs da Esquina da América.

PS: Deixei um recado no narizdedefunto.blogspot.com

regina ragazzi said...

Olá Roberto! Vim agradecer a visita e por seguir meu blog. Tb seguirei o seu. Gostei muito de vir aqui. Abraços

Primeira Pessoa said...

Paulo Poeta,
peguei o recado. tô enviando o endereço popr email.

beijo grande desse seu amido que o exílio levou..


o

roberto.

Primeira Pessoa said...

regina
e assim vamos nos acompanhando, vida afora.

seja mais que bem-vinda.

abração do

roberto.

Pólen Radioativo said...

Roberto,
"tenho o coração confundido e a rua é estreita...
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?"

Ah, meu querido Roberto,

"não posso adiar o amor"!!!!!!

Que maravilhosa sensação de desavesso é essa que o Antonio Ramos Rosa nos permite e nos impõe com seus versos?! Ah, meu tão querido Roberto, você é sempre preciso.

Um beijão.