Sunday, March 26, 2017

Desassossego na bagagem



(Para Jorge Pimenta, que rabisca fotografias com seu olho lírico)


O que trarei na bagagem desta minha viagem?
Trarei as luzes derramadas sobre a ribeira?
Trarei a ribeira do D’Ouro e suas águas a um passo da foz?
Trarei barcos carregado de pipas? 
Uma janela da torre dos Clérigos e a proteção do anjo apinhado de pombas no topo do hospital Santo Antônio?
Trarei uma lua cheia? 
Trarei estrelas nortenhas? 
Azulejos?
Trarei as vielas estreitas desta cidade, como aquelas transportadas em nuvens para as vilas portuguesas da Minas Gerais colonial?
Sim, porque existe muito do lugar de onde venho neste lugar que visito pela primeira vez.
Existe um bairrismo, um orgulho ingênuo, um sotaque distinto e uma quase doçura na voz.
Existem ladeiras que sobem e descem, mercados permeados por um burburinho e vozerio que ecoam de dentro dos cafés e tascas espalhados por todos os cantos, dentro de mim.
É manhã na cidade do Porto e, no que chego, chove turvando a visão diante de uma paisagem que nunca vi.
Lanço o olhar-turista sobre pessoas e coisas com a sede dos que tem sede, com a fome dos que tem fome.
Chego e sou bem acolhido já à entrada, sentindo-me imediatamente em casa.
Eu, que caminho por essas ruas como se fossem minhas.
Eu, que sou afeito a intuir e a intuir somente.
Eu, que só sei sentir, intuo que trarei desta cidade, quando retornar ao lugar que chamo casa, as cenas épicas dos painéis da estação de São Bento.
Trarei a conversa intimista do motorista do táxi.
Trarei tripas à moda do Porto, alheiras de Mirandela, tremoços e sarabulhos.
Trarei romãs e dióspiros.
Trarei o gosto picante do molho da francesinha degustada numa transversal da rua onde as putas fazem ponto quando a noite cai sobre a cidade.
Trarei poemas de Eugénio de Andrade e textos de Valter Hugo Mãe.
Trarei um solo da guitarra de Rui Veloso e uma pedaço de toucinho do céu, fatiado das páginas do menu do Dom Tonho.
Trarei os muros e paredes pichados, espirrados da fúria de um povo que não se dobra ou aceita as injustiças que ainda persistem.
Trarei o doce-azedo das uvas que espremeram para fazer o vinho que embriagou e irmanou todos nós, durante a estada.
O calor dos abraços que entreguei e recebi, mais que em dobro.
Trarei na mala o luto das mulheres que trafegam pelas ruas, como se ainda vivêssemos num século distante.
Trarei um olhar de adeus diante do mar.
Trarei tradição.
Trarei o peso da história e um pedaço dela, impregnado, essa tatuagem nas retinas.
Trarei uma travessia à pé da ponte Dom Luís I.
Trarei as canções de um concerto que reverbera, ainda, como se estivessem frescas como as laranjas dos pomares que adornam o norte de Portugal.
Trarei um livro retirado do acervo da livraria Lello, que é uma espécie de relicário das palavras, um dos lugares mais bonitos que meus olhos já viram.
E farei o caminho de volta como quem atravessa um abismo.
Porque o oceano Atlântico é um abismo que separa os dois continentes e impede um abraço.
E eu cumprirei duas vezes este percurso numa agonizante jornada.
Nas despedidas, ficará o refrão de um fado.
No coração, o desassossego dos que deixam para trás um pedaço grande da alma.
Ainda assim, ficará a sensação de que levo muito mais do que deixo nesta cidade, neste país.


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5 comments:

Wilson Pereira said...

Muito boa essa crônica! Portugal é tudo de bom. Agente fica sempre com vontade de voltar. Sua crônica fala mais do que isso: da vontade de trazer Portugal conosco! Parabéns!
Wilson Pereira

Zélia Guardiano said...

Oh, Roberto, meu querido... Quanto você traz de lá! Li, reli, e foi pouco. Vontade de ir também!Na impossibilidade, ainda bem que você traz muito e tudo que carrega consigo reparte conosco. Grata, amigo. Abraço apertado.

Zélia Guardiano said...

Maravilha, Roberto! Fico pensando: também quero ir e não posso... Mas eu mesma concluo: e daí? Roberto vai, traz tanto de lá e reparte comigo. Pra que mais? Gratíssima, querido. Abraço imenso.

marlene edir severino said...

Senti saudades quando li tua crônica, Roberto: quero voltar lá um dia. Mas será sempre uma nova viagem.
Beijos!

Alan Costa said...

Nada fraco aos olhos, a palavra!!!