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Aqueles que conheço e que partem
Dizem-nos que está tudo bem: apesar de batermos
de porta em porta, e de vermos quadros pendurados
compulsivamente e com rasgões aleatórios
de loucura.
Procuramos saber nesse dia como
desapareceram, se foi de repente, se deixaram
cartas a avisar, se pediram mais um conhaque antes
de se despedirem, ou se simplesmente
fecharam a porta e ficaram do lado de lá.
E encontramos silêncio nas respostas.
Tudo aquilo a que nos propomos conhecer fica envolto
em lençóis escuros que deixaram lavados - e ainda
quentes -com beatas de cigarro ao lado da cama, com revistas
folheadas e abertas por cima das almofadas.
Percorremos o resto da casa, chegamos
por fim à porta de entrada onde tudo continua
intacto, insanamente preservado, como se ainda hoje
nos sentássemos aqui, a olhar para a televisão, a ver
os nossos dias - a imaginar as casas, os filhos, os
empregos - e a continuar de olhos abertos, as mãos a
mexerem em folhas riscadas sem quaisquer palavras.
Mas, de quando em vez, decidimo-nos a escrevê-las, para que
se sinta menos a despedida - como que se ela não existisse
ou como que se nada fosse dito naquele momento.
E de qualquer forma, os corpos afastam-se,
ininterruptamente,
a passo lento; olhamos a estrada ao longe com as roupas
a assemelharem-se a sonhos quebrados, com as mãos por
fim
cheias de algo que não conhecemos - com a cabeça longe
em mundos distantes do nosso.
Crescemos assim. Habituamo-nos a ver aqueles que
conhecemos
de costas para nós, a mão direita a acenar rente à anca,
num gesto esquecido de dizer adeus, para que haja algo a
separar-nos
para além de cartas.
A partir daí, será como uma fotografia desfocada:
relembraremos
aquele que partiu, naquele dia, a agitar a mão para nós
como se não estivéssemos ali; as costas ocupadas com
malas e rostos
e nós a bater a portas de quem não conhecemos, a
anunciar
que este ou aqueloutro partiu.
Por fim, deixamos de os conhecer - deixamos de lembrar
os lençois
quentes, as revistas abertas a meio, em artigos de
saudade
ou de descrições vagas sobre sexo; deixamos de ver arder
as
beatas de cigarro no cinzeiro azul, ao lado da cama;
esquecemos que
deixámos a porta aberta com a corrente de ar a crescer
por
dentro de nós: e a imagem da tua mão a acenar,
ligeiramente,
junto à anca, e eu a lembrar o teu rosto, apesar de me
dizerem
que está tudo bem.
Sérgio Xarepe in
"Outros dias existe muitos"
Corpos Editora
Dezembro 2008
A Música Que Toca Sem Parar:
de Djavan e Orlando Moraes, A Rota do Indivíduo.
Mera luz que invade a tarde cinzenta
E algumas folhas deitam sobre a estrada
O frio é o agasalho que esquenta
O coração gelado quando venta
Movendo a água abandonada
Restos de sonhos sobre um novo dia
Amores nos vagões, vagões nos trilhos
Parece que quem parte é a ferrovia
Que mesmo não te vendo te vigia
Como mãe, como mãe que dorme olhando os filhos
Com os olhos na estrada
E no mistério solitário da penugem
Vê-se a vida correndo, parada
Como se não existisse chegada
na tarde distante, ferrugem ou nada.
25 comments:
Poeta!
Que belo poema! Complementando com Djavan.
Diante da morte, amiga, inevitável, sua poesia é um acalanto.
Não se pode mais falar. Ficamos congelados na última imagem que fica guardada em memórias.
Belíssimo!
Beijos
Mirze
putzzzzzzzz... dizer o quê?
(tem algo a acontecer neste momento e este belíssimo poema me abala sobremaneira...)
besos
mirze,
sergio xarepe é jovem... muito jovem...
mas escreve com a alma de pessoa mais entrada na vida. gosto dos coisas dele e torço, sinceramente, para que persista e continue crescendo neste ofício de encantar verbos.
beijo procê.
r.
lírica,
gosto especialmente desse bocado:
"Crescemos assim. Habituamo-nos a ver aqueles que
conhecemos
de costas para nós, a mão direita a acenar rente à anca,
num gesto esquecido de dizer adeus, para que haja algo a
separar-nos
para além de cartas"
um punhado de sal sobre nossas feridas, né?
e esse é o papel de quem escreve, nos mostrar, nos lembrar que estamos vivos.
beijo imenso procê, dama de araguari.
r.
Belo poema imerso em melancolia (eu sempre a ressaltar esse tom no qual me reconheço ). O bocado que você citou, Roberto, também foi aquele que mais me impressionou. Separação para além das cartas... Sim.
Abração!
o poema é de torar, a música idem, louvo ambos e a ti
meu abraço
Tão bonito mas ...
ferrugem sim.
Poema lindo,
melancolia, saudade, sem adeus!
O adeus está no nosso coração, quando conseguimos.
Música linda com poema belissimo também!
Beijo, Roberto.
Impressionate, Roberto, como pode ter essa intensidade, esse amadurecimento na escrita, sendo assim tão jovem. Enfim,o que é a idade, não? Às vezes um mero detalhe. Belíssimo.
E a música, essa não peço..rs..tenho e gosto muitíssimo.
Abraços,
Tânia
Realmente, muito bonito o poema; uma melancolia que se sente fundo, com a qual se identifica.
Beijo.
pois é, larinha... acho que a melancolia tá, muito mais que no nosso gen... está no dna da poesia.
beijo grande, poetinha!
taninha,
jovem sim... como voce poder na foto dele, aí em cima... que gosta de rock, usa tatuagem... deve ter amigos da mesma idade... enfim, é um jovem sendo jovem num país da velha europa.
mas sua poesia é bastante madura, como voce pode notar.
eu diria que o poeta sérgio xarepe já nasceu com 21 anos...rs
a música?
tinha o pressentimento que você tinha.
abração.
r.
moça dos outrosencantos,
às vezes dou sorte e consigo encontrar o par certo na canção, para o poema escolhido.
que bom que cê gostou.
beijão,
r.
ferrugem sim, B...
e eu não sabia que era letra do orlando moraes...
conheço outra versões com fátima guedes e caetano, mas consigo gostar ainda mais dela na voz de djavan.
abração,
r.
assis,
e eu louvo a nossa amizade, nascida aqui, no buraco negro do nada.
essa sim é de torar.
beijão do
r.
marcantonio,
e eu que fico achando que melancolia é trem de mineiro... essa coisa de sombra de montanha, de canto gregoriano que reverbera até hoje (inexplicavelmente) por onde nasci e me criei, mesmo quando não estou lá.
já vi que melancolia é como gripe...rs
atchin!
beijão, poeta!
Me emocionei tanto com este texto.
bjs Roberto.
poema lindo! de doer, de arder na gente.
e a música é perfeita pra ele, adoro essa frase: "Parece que quem parte é a ferrovia"
dia de mergulho intenso pelos sítios da turma...dia de arrepios
beijo enorme pra ti, roberto
Cheguei até aqui para retribuir sua visita e gostei muito de tudo que li. O poema do Sergio é lindo, assim como a música do Djavan.
Um abraço ;)
irra, este poema é feito de carne e sangue pousados nas mãos que se esquecem como acenar olá, antes do derradeiro adeus... por momentos assisto ao desfilar de quadros da vida de cada um de nós, como se cada projecção mais não fosse que a réplica da anterior e da seguinte... inquietante, pois... irra!
um abraço, poeta do samba (mas que suspeito, nos últimos tempos, mais voltado para o fado. enganar-me-ei?)
Alta poesia salpicada de música para acalentar a alma.
Ótimo post, Roberto.
Abração da barra do Potengi.
paulo da redinha, poeta do potengi...
são duas no cravo.
nenhuma na ferradura.
e isto é mais que bom.
abração, poeta.
jorgíssimo,
vocês, portugueses, dominam esta língua - que criaram - com uma naturalidade e maestria incríveis... associam palavra e sentimento de forma magistral.
e eu, que falo este idioma, que reconheço nele beleza e charme... fico daqui, aplaudindo, curtindo... deixando a palavra reverberar em mim.
tava com saudades de te ler aqui.
abração, poeta bracarense.
Lindo demais, Roberto!
Você tem o dom da escrita e da generosidade... Se não publica um maravilhoso texto seu, escolhe um escrito lindo de outro alguém e nos presenteia com ele.
Sem falar na música...
Muito grata, amigo!!!
Abração...
dei outra espiada nos teus bebês - fábrica boa essa daí!
besos
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