Saturday, July 31, 2010



Das coisas que não morrem jamais


Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário. Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.
Os Lima - de posses modestas -, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia chique do centro da cidade as trazia para mim, depois que já haviam sido lidas e relidas pela clientela e um número mais recente as substituía.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter experimentado outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim.
Impetuosos, apaixonados, preguiçosos e, às vezes, radicais...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca.
Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó:

"Se houver uma camisa preta-e branca pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".

Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.
No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway.
Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração. Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim.
Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte.
Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.
Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil. E ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital.
Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice.
Nunca levou um tostão por suas crônicas, e dizia que um dia cobraria um dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim. Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obcessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho, a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.



A Música Que Toca Sem Parar:
de um dos primeiros discos que comprei nesta vida, Alucinante Alice, Sá & Guarabyra.

Dentro do nosso mundo
Um outro mundo achaste
E as cores de que fala
Eu não conhecia
Alguma coisa havia antes desse espaço
No oco da nogueira um tombo no infinito
De cada biscoito tiraste um pedaço
Pode ouvir teu grito

Alucinante Alice quando você fala
Meu coração se quebra como louça
Alucinante Alice quando você beija
O mel dos anjos entra em minha boca,
em minha boca,
em minha boca

A porta da verdade estava bem fechada
Mas nada resistiu a chave que eu te trouxe
Daqui de onde se vê ainda não se vê nada
Se não se tem os dentes presos nesse doce
De limão galego de laranja amarga, de batata doce.

22 comments:

Gerana Damulakis said...

Maravilhoso testemunho, lembrança de Roberto Drummond, enfim, uma crônica deliciosa.
Meu comentário lá atrás, na postagem sobre lembranças, a do frango a molho pardo etc, se perdeu. Perdi a graça. Escrevi com tanto entusiasmo sobre meu prazer de leitura.

Unknown said...

caráleo, essa cronica essa música me deixam comovido como o diabo.
essa porra dessa alucinante alice alimentou uma paixão avassaladora na década de 80 e que até hoje ainda me espreita nos desvãos da lembrança, eu tinha me prometido nunca mais ouvir essa música,
vc tá me devendo essa brother,


abração todo encharcado de nostalgia

Primeira Pessoa said...

agora quem ficou murchinho (e curioso) fui eu, gerana dos gerânios.
putz... o que aconteceu? esse guga é um fela.... rs

roberto drumond foi uma figura muito importante em minha vida. ele me tinha sob suas asas e vivemos muitos momentos legais, bebidinhas na noite de belo horizonte, inconfidências mineiras.

ele bate em meu peito até hoje. às vezes acho que nem partiu.

beijo procê,
r.

Primeira Pessoa said...

ô assis,
se devo, eu pago.
sá e guarabyra são do caráleo... eu era muito ligado ao guarabyra, (ele escrevia pro meu jornal) e tivemos umas estórias engraçadas. lembro-me com saudade de um dia que derrubamos (ele, eu e mais um amigo) 130 (cento e trinta) chopes na churrascaria do ex-jogador esquerdinha, em são paulo. começamos a beber antes das portas se abrirem pro público e saimos direto pro meu hotel e detonamos, no meu quarto, meia garrafa de absynto. tive dois dias de ressaca. culpa do absynto...rs

ô, ainda bem que você escutou a música de novo e se sentiu tão vivo, tão jovem, tão filhadaputamente dolorido...
eu sei que sim. eu sei que é assim, ainda guardo umas duas células de poeta em mim...rs

beijão,
r.

Anonymous said...

Ontem, por acaso e desafio de uma amiga voltei a abrir meu primeiro livro de poesia. Meu Deus, senti vergonha.
Ok. Fiquemos-nos pelos blogues. Eu falo por mim.
Gosto das suas longas tiradas.

Primeira Pessoa said...

capitu,
costumo dizer que, felizmente, meus livros de poesia são como espinhas na bunda... apenas os muito íntimos viram (publiquei um aos 19 e outro aos 22 e ainda não tinha nem cabelo no peito... e ainda hoje não me nasceram...rs)...

acho que com todo mundo é assim... sentimo-nos prontos muito cedo, mas apenas os muito bons já nascem prontos.

minha esperança é fazer-me.

beijão,
r.

Zélia Guardiano said...

Não morre o amor
Não morre a amizade
Não morre a gratidão
Não morre a saudade
Pronto! Aí está o cerne desta belíssima crônica, meu amigo!
Grande abraço...

Unknown said...

Que bonito, Roberto!

Uma amizade assim não tem peso em ouro que pague. Será que ainda existe.....amizade dessa forma?

Agora me bateu uma saudade de onde nunca tive. Vontade de ir ao D. Lucinha e vagar pelas ruas de BH.

Achei bonito você ter ficado com um exemplar único de Hilda Furacão.

Muito bom!

Beijos

Mirze

Zélia Guardiano said...

Crônica lindíssima, Roberto!
Gosto muito desse seu jeito de escrever direitinho, do jeito que é, como se eu estivesse vendo...
Enorme abraço, meu querido amigo!!!

Primeira Pessoa said...

zélia,
não sou bom "fingidor" e escrevo as coisas como vou vendo e vivendo. só sei escrever na primeira pessoa. e isto não é muito bom, eu sei.
às vezes dá certo, às vezes, não.

certa mesmo é a alegria de te ver aqui.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

mirze,
o livro hilda furacão é dedicado a mim (e a mais uma meia dúsiza de pessoas que ele gostava). roberto drummond foi muito generoso comigo.

fiquei sabendo da morte dele no intervalo do jogo brasil x inglaterra, na copa do mundo disputada na ásia.

o jogo e a minha copa acabaram ali.

mas fica a saudade, né? e o carinho, que mora e morre comigo.

beijão,

r.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Delima,
Há pouco assiti, em P&B na Tv Cultura, a um trecho de "O Encouraçado Potemkin" de Eisenstein, que o Roberto Drummond gostava de citar no rol de suas obras de arte preferidas. E lembrei de você, poeta, filhadaputamente poeta (que coisa linda de se inventar! Pareceu-me o 'dangerosíssimo' criado pelo outro Drummond - o gauche - numa de suas mais incríveis viagens pelo interior do bicho-homem), vô-cê poeta em todas as suas células-máter, amigo das Geraes, quando havia gerais...
Preciso estar mais amiúde por aqui, rapaz. Faz uma falta danada pousar a alma e o coração mais vezes aqui, meu irmão...
Mas me perdoe a falta (eu não me perdoo), é a alma dos nossos negócios...

Abraço desse poeta torto e vendedor de zapatos que tem um orgulho danado de seu afeto e carinho,
Ramúcio.

Primeira Pessoa said...

da rama,
cê faz falta demais por aqui. é da diretoria, recebe salário de diretor (nem sempre em dia, reconheço), mas tem cabulado demais... não reclamo, mesmo sendo de reclamar... não reclamo...

putz, "O Encouraçado Potemkin" é mais velho que o roberto, que sofria da síndrome de miss e não contava a idade nem pra ganhar dinheiro.

cê sabia que o livro favorito dele era "a montanha mágica", de thomas mann?
essa mesma montanha mágica que não consigo escalar. já comecei a ler mais de trocentas vezes e morro sempre na metade do caminho, na metade da chegada. o mais longe que fui foi no primeiro dia de sanatório... tossi-me ali.

ha mais de 20 anos essa "montanha" trágica adorna o meu criado mudo (ela e mais uma duzia de livros que nao consigo terminar e que vão sendo apinhados, apinhados, apinhados... visão de montanha sem nenhuma magia).

quem entra em meu quarto de dormir e vê meu criado-mudo pode presumir-me me culto...

mais uma, entre tantas outras errôneas percepções.

falando em morte, acordei no meio de um pesadelo. sonhei que um dente daqueles do fundo, um molar enorme, caíra inteira, feito um buzio, na palma da minha mão...

desci assustado, corri pra cozinha e bebi uma caixa grande de agua de coco de num gole só...

desci mais ainda, vim pro meu bunker, esperar a chegada de uma noticia ruim.


são 6:30 da manhã. e hoje tem crássico contra o seu atrético na arena do jacaré.


beijão,
r.

Jorge Pimenta said...

amigo, a tua voz tem o timbre da nostalgia e o tom da saudade. impossível resistir-lhe.
um abração, amigo!

Jorge Pimenta said...

amigo, a tua voz tem o timbre da nostalgia e o tom da saudade. impossível resistir-lhe.
um abração, amigo!

Primeira Pessoa said...

e sua voz, poeta de braga, tem o timbre da amizade.
daquelas bonitas, que atravessam os anos.
será a amizade uma espécie de nostalgia?

acordei muito "perguntativo" hoje, poeta.


abração,
r.

ONG ALERTA said...

Não tenho muito que falar, pois tudo isso é eterno, paz.
Beijo Lisette

Anonymous said...

Beleza celestino, beleza...

Então responde rápido...
Jacaré no seco anda?

rsrs

Primeira Pessoa said...

não, fouad.
mas sei que onde tem trilha de paca, tatu caminha dentro do buraco.

chora cachorrada! rs
13 vitória em 16 jogos.
isto é que é escrita...

chora cachorrada!
amanhã vou de azul pro trabalho.

azulei geral, carijó!

Primeira Pessoa said...

Lisette,
seja bem vinda ao Primeira Pessoa.

sinta-se entre os seus.

abraço grande do

roberto.

Cosmunicando said...

ah, que coisa fascinante... muito lindo esse encontro de vocês e o final da tua crônica.
e se não bastasse... alucinante alice! quanto tempo não ouvia...
beijos

Primeira Pessoa said...

pois é, mercedes...
era bem bonitnho...acho que a companhia traz a magia. a companhia faz o encontro.

alucinante alice?
alucinante. remocei trintinha...rs

beijão pós-balzaquiano do,
r.