Tuesday, July 27, 2010














A prainha do Xuá



Aqui, quando faz frio é de rachar a mamona. Mas quando faz calor, é de cozinhar os miolos. De clichê em clichê vamos levando a vida.
Tenho visto tanta gente reclamando do calor, que às vezes entro no coro destes descontentes e ponho-me a maldizer os deuses da meteorologia.
Memória curta, temos nós, eternos insatisfeitos.
Se faz frio, é porque faz frio.
Se neva, é porque neva.
Se chove, é porque chove.
Se faz calor, é porque faz calor.
Criei-me em Governador Valadares, que julgava ser o lugar mais quente do mundo. Um Saara sem beduínos, sem camelos e nem tempestade de areia.
No meu coração, Valadares será para sempre um oásis, de brisas benfazejas, belas odaliscas, e xeiques de riquezas invisíveis.
Como era bonita, e quente, a minha Gevê! Tão quente, que um jornalista de passagem pela cidade escreveu um texto de onde chamou “sucursal do inferno”.
Em Valadares vi um sujeito fritar um ovo no capô de um fusca.
Vi o Rio Doce emagrecer, todo ano, sua cintura afinando e produzindo dezenas de praias ao longo de seu curso. A mais famosa delas era a praia do Xuá, numa ilhota próxima à ponte São Raimundo. Era para lá que íamos.
Foi naquela ilhota que, menino ainda, vi um índio.
Aliás, um bugre, que é como os adultos a ele se referiam.
No meu desconhecimento de geografia, imaginava que um bugre era alguém vindo de um país distante, talvez na Cordilheira dos Andes, talvez na fronteira da Indonésia.
Bugrelândia?
Bugrária?
Seria um bugre, o mesmo que um búlgaro?
Criança, ainda, pensei ter desvendado o mistério: o homem seria de Campinas, terra do Guarani, clube de futebol que tem um bugrezinho como mascote.
E o meu bugre ficava acocorado na porta de um palheiro, debulhando milho e bebendo cachaça, que os brancos davam para ele.
Aquele índio era uma espécie de guardião da ilha, onde plantava algumas coisas e criava galinhas.
Não tinha mulher nem filhos.
Não tinha nada, aquele pobre homem de cabelos lisos e desgrenhados.
Era ali onde ele dormia sozinho escutando apenas a música das criaturas da noite e o barulho da correnteza bolinando as pedras.
Era ali o seu reino de um homem só.
E sua prisão rodeada de águas.
Quando o calor aumentava na cidade a ponto de quase explodir os termômetros, o rio ia definhando e formando suas prainhas, o Xuá era o destino de muitos de nós.
Tinha muito de paraíso naquelas areias brancas.
Do fundo de nossas precariedades, aqueles prazeres temporões saciavam uma sede muito maior que a nossa sede de mar e de amor.
De quebra, ainda nos oferecia uma oportunidade única de socialização.
Farofa geral, sim, meus senhores.
Abaixo o calor! Viva a praia mineira!
Garrafa de pinga, meio engradado de cerveja em encardidas caixas de isopor, refrigerantes, frango assado e farofa.
Muita farofa.
Confesso que fui useiro e vezeiro. Confesso…
Homens jogavam carteado, mulheres tricoteavam sobre a vida alheia, enquanto as crianças jogavam futebol com uma bola de plástico da marca Pelé. Uma pobreza de não dar dó.
Muitas vezes nos afastávamos dos adultos e saíamos explorando as margens, roubando manga, jambo, jenipapo e ingá dos quintais ribeirinhos.
Não raro, éramos expulsos a tiros de sal. Uma vez mais, confesso.
Alguns de nós aproveitavam a oportunidade e lançavam a sorte nas pescarias.
Tinha muito piau, lambari, tucunaré, curimatã, bagre e corvina.
Nadávamos, mergulhávamos, pescávamos e passeávamos de pedra em pedra como se não existisse o amanhã.
E, para alguns, não existia mesmo.
Muita gente perdeu a vida se refrescando nas águas traiçoeiras daquele rio.
E se, as mortes ocasionais serviam como alerta para os perigos das águas, elas não eram amedrontadoras o suficiente para nos afastar de lá.
O medo de morrer afogado terminava antes da missa do sétimo dia.
Tenho saudade das prainhas do Rio Doce, confesso.
Tanta saudade que, hoje, vendo o sol e o calor nos transformar nessas insuportáveis bola de mau humor, carne e suor, daria qualquer coisa para aportar numa prainha como aquela do Xuá.
Ficaria quietinho, sobre uma pedra lodosa, sentindo as águas do tempo passeando tranqüilas sobre meu corpo, levando meus cansaços, meus pecados, minhas culpas.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Zé Geraldo (foto), aquele que deveria ser o hino de Governador Valadares, infelizmente desautorizado pelo ex-prefeito Mourão (por ter a palavra seio, acreditem), a bela e verdadeira Rio Doce.

Deposito em suas águas meu grande segredo
Parto pra cruzar fronteiras, engrossar fileiras
Compor meu enredo
Deixo suas margens ricas sob a sombra lírica da Ibituruna
Una, pobre sabiá, que perdeu seu canto de frases ligeiras
Por ver se apagar a ilusão ardente
Tão inconseqüente da paixão primeira

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo
Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul
Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do sul

21 comments:

Zélia Guardiano said...

Lindo, lindo, Roberto!
Mais que isso: maravilhoso texto!
Não fosse por causa de todo o conjunto, seria por causa da última frase ...
Você me encanta, cada vez mais!
Forte abraço, meu querido amigo

Anonymous said...

Bom vir aqui me deliciar com as palavras de um dos melhores contadores de histórias que já vi.

Beijo, mineirinho querido.

Batom e poesias said...

Que crônica fabulosa, Roberto.

Deu para enxergar o rio, as crianças e mulheres e ainda e sentir o calor da sua saudade.
Ri muito também.

bj
Rossana

líria porto said...

betinho - só vou te ler amanhã/hoje - quando acordar - acabo de chegar do ser__tão do rio grande do norte - minino, aquilo lá é lugar de respeito!
besos

Jorge Pimenta said...

querido amigo, essa onda de nostalgia deve estar associada ao anticiclone que se plantou bem aqui, acima da península ibérica. são dias tórridos, onde já nem os fuscas têm capot (para não sobreaquecerem), quanto mais ovo preserve a casca? a canícula já elevou os termómetros acima dos 40 graus e não há sombra que refresque. pena já não ter idade para roubar fruta nas quintas (já não há quintas), nadar nos riachos (os detritos já os consumiram) ou jogar aos polícias e ladrões (os ladrões já arrumaram os polícias...).
querido amigo, esta é a pobreza que, ao contrário da que descreves, dá dó...
um abraço com suor na pele!
p.s. o farias ainda não assinou pelo teu/nosso cruzeiro, ao que parece, mas as coisas estão bem encaminhadas. sinceramente, não vejo ali categoria nenhuma... ah, o braga recebe hoje o celtic na pré-eliminatória da liga dos campeões. vou estar na pedreira (nome do estádio) para conferir.

Jorge Pimenta said...

querido amigo, essa onda de nostalgia deve estar associada ao anticiclone que se plantou bem aqui, acima da península ibérica. são dias tórridos, onde já nem os fuscas têm capot (para não sobreaquecerem), quanto mais ovo preserve a casca? a canícula já elevou os termómetros acima dos 40 graus e não há sombra que refresque. pena já não ter idade para roubar fruta nas quintas (já não há quintas), nadar nos riachos (os detritos já os consumiram) ou jogar aos polícias e ladrões (os ladrões já arrumaram os polícias...).
querido amigo, esta é a pobreza que, ao contrário da que descreves, dá dó...
um abraço com suor na pele!
p.s. o farias ainda não assinou pelo teu/nosso cruzeiro, ao que parece, mas as coisas estão bem encaminhadas. sinceramente, não vejo ali categoria nenhuma... ah, o braga recebe hoje o celtic na pré-eliminatória da liga dos campeões. vou estar na pedreira (nome do estádio) para conferir.

Tania regina Contreiras said...

Roberto, você tem o dom de emocionar: lindo, meu amigo, quase estive ali, em cada momento, do tanto que vi pelos seus olhos, pela sua emoção. Só pasmo aqui por GV ter perdido um belo hino por causa de uns seios! :-)
Beijos, Roberto, ler você é sempre um prazer imenso para a alma.

Unknown said...

rapaz, o rio que corre na minha aldeia, na tua aldeia, na nossa aldeia, são águas de encontros. a prainha do Xuá é vizinha irmã das prainhas do rio Jacuípe, no qual me banhei e sigo banhado e enluarado de tanto encanto,

abração

Anonymous said...

Roberto,
Também vivi às margens do Rio Doce, me refrescando nas águas que antes eram profundas. Mas não tenho esta memória tão rica de detalhes, que vc tem, é uma pena.
Mas lendo seus escritos, é como se me visse lá naquele mesmo cenário que vc.
Hoje, infelizmente, as aguas do Rio Doce, brigam com o assoreamento e as imensas pedras, para chegar ao seu destino. Tenho muito respeito por ele, como parte da minha vida.
Bjs!
Lu

Primeira Pessoa said...

lu,
acho que nunca mais me banharei naquele rio. é uma coisa sagrada pra mim.
é como se ele ainda corresse, imaculado, comoera nos meus tempos de garoto.

como disse a canção, dentro de mim passa um rio.

abraço meu.

r.

Primeira Pessoa said...

assis,você tem o disco "Mensagem", em que artistas brasileiros musicam Pessoa?
se não tem, vou te mandar. tom jobim musicou exatamente este aí... e canta...

ficou lindo.

abração, bardo do pelourinho.

Primeira Pessoa said...

ah, taninha... foi uma palhaçada... chamaram a imprensa, posamos pra fotos e os cambaus...a gente lá, com cara de tacho...

na sequência, recebemos uma homenagem na câmara municipal (cidadania honorífica), zé geraldo e eu, numa mesma noite e, posso assegura, foi lindo.
na mesma sessão anunciaram que a canção seria o novo hino da cidade... foi aprovado ali, por unanimidade...

mas, o prefeito vetou.
e perdeu meu respeito e a possibilidade de ter um hino conhecido em boa parte do brasil.

inércia. inscompetência. visão nanica.

fiquei mais triste que o zé.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
essa do farias sem categoria me desanimou...rs... li ontem que o braga está para contratar o felipe, guarda-redes (rs... no brasil é goleiro) do coríntians. um excelente jogador, mas dotado de cérebro de azeitona.

você fala em anticiclone e me lembro que aos 19 anos escrevi (a 4 mãos com um amigo de infância) um livro chamado colosso ciclone, onde foram cometidos vários poemas...rs
felizmente, foi como espinha (que aí em portugal chamam borbulha) na bunda... ouseja, só os muito íntimos viram...

rapaz, bom mesmo é te receber aqui.
abração do
roberto.

Primeira Pessoa said...

lírica,
que belorizonte te receba bem.
com céu azul e pouco frio.

estávamos (e estamos) aqui, esperando você.

beijão,
roberto.

Primeira Pessoa said...

rossana,
era bem isto esmo... há beleza na pobreza, miserê tem lá seu charme...rs

bom te ver por aqui.
beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

larinha,
lá em minas chamamos esses caras de contadores de causos...rs
fico feliz que goste das minhas bobagens.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

zélia,
esse encanto é recíproco. saiba disto.

beijo enorme procê, que me entende.

r.

Unknown said...

É Roberto!

Você conseguiu me locomover e viajar para onde nunca fui.

Belo texto-prosa. Ainda estou pensando no bugre (não é um caro? Seria um peixe? Lá no final vi a confusão que fiz: Bagre é o peixe.

Xuá! Lindo demais!

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

nossa, mirze, aquele rio tinha muito bagre... e um bugre...rs
falando com um amigo hoje ele me disse que alguns quilômetros à frente no rio, perto de resplendor, existe ainda hoje uma tribo de "bugres"... os crenaques.

meu bugre deve ter subido de canoa e ficado ali até voltar pra casa.

abraço meu.
r.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Reminiscências belas da sua Valadares, Roberto.
Prosa poética de um lirismo encantador.
E nosotros aqui maravilhados com sua história de vida.
Abraço apertado, menino do Rio Doce.

Primeira Pessoa said...

paulinho de pipa,
a gente saí da roça, mas a roça não sai de nós...

ou como diria a liria porto, o rio mistura-se com o mar sem deixar de ser rio.

é mais ou menos por aí.
abração, poeta!