Monday, July 19, 2010
Vento das palmas
Mineiro lembra das passagens de José Saramago por BH
Por Afonso Borges
Estava chegando em casa cheio de compras. Toca o celular:
- Afonso, é o Chico. Tudo bom?
Eu, lotado de sacolas, me liga um Chico, pensei... o que vou responder?
Quando ele repete o nome, me passam uma dezena de músicas pela cabeça. '''Estava à toa na vida... Bárbara...'' e respondi, ligeiramente normal:
- Oi, Chico, tudo bem, como vão as coisas?
Ele me convida para o jantar na casa dele, dias depois, quando faria o lançamento de José Saramago no Rio de Janeiro. As lembranças do bom José vão e vem. Fui buscá-lo no aeroporto com o meu lépido Gol dupla carburação a álcool. Cordial e cansado, entrou na frente, ao meu lado. Atrás, o editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, e a assessora de imprensa Ruth Lanna. Tudo bem, até o cônsul de Portugal em BH se aboletar, transformando o carro no que ele era de verdade - uma lata de sardinha. Toca o celular. Uma ligação de Portugal, um senhor esbaforido, procurando o José. Eu tinha um auricular ligado ao aparelho, entreguei ao José. Ele perguntou o que era aquilo. Confuso no trânsito, pedi para ele colocar no ouvido. Ele o fez, espantado. Conversou brevemente, desligou.
- O que é isso? Milagre? Perguntou, segurando o fio.
- Não, José, satélite, respondi. (Gargalhadas no carro)
- Mas podia ser milagre. Pois se pudéssemos fazer este, faríamos outros, respondeu, divertindo-se comigo.
E podem conferir: essa história está nas páginas de ''Cadernos de Lanzarote''. E ilustra bem José Saramago. Em público e nas entrevistas era polêmico, às vezes seco e duro. No trato pessoal, afável, cordial e amigo. E, principalmente, bem-humorado. Quando conheceu Tatyana, minha mulher, ela estava prestes a dar à luz a Isabella, minha primeira filha. Na segunda vez, um ano e pouco depois, estava grávida da segunda, Mariana. Ele não perdoou, antes de dar um demorado abraço:
- Mas como, Tatyana, ainda não paristes?
Na primeira vez que foi ao Palácio das Artes, menti, dizendo que tinha somente 500 lugares. Ele olhou para o alto, na coxia, e duvidou:
- Aqui se faz ópera.
Ao dar os primeiros passos no palco, as quase 2 mil pessoas o aplaudiram de pé, num estrondo.
Ele cumprimentou e, antes de sentar-se à mesa, me falou ao ouvido:
- É a primeira vez que sinto o vento das palmas, Afonso.
Lá fora, o público urrava - dezenas não conseguiram entrar. O Corpo de Bombeiros e a Polícia
tiveram que ser chamados. Até hoje ouço relatos de como a porta de vidro do Palácio suportou
a pressão do público, balançando...
Em várias ocasiões me disse ter sido Belo Horizonte a cidade que o recebera melhor no Brasil. Desde a primeira vez, no Luminis Espaço Empresarial completamente entupido, até a última, no lançamento de Intermitências da Morte. É de Minas o seu único título brasileiro de Doutor Honoris Causa, em 1999, concedido pela UFMG, em um emocionado evento, no qual foi saudado pelo professor Vander Melo Miranda. Mesmo esgotado, fazia questão de autografar livros após o debate. E, mesmo assim, não perdia o humor.
Desde a primeira vez, a empresária Angela Gutierrez o recebia em casa para um almoço mineiro. Perto dos 80 anos, ele traçava com prazer a comida, sem dó nem piedade. E cultivava a permanência das amizades, sempre atento a um comentário, cordial. Não demos sorte com o mundo eletrônico. Uma televisão foi convidada para gravar a palestra,no Palácio das Artes. Por problemas técnicos, o programa se perdeu. Minha esperança era o dia seguinte, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro, quando uma outra equipe de TV foi contratada. E que também perdeu o programa, devido a defeitos no equipamento.
Em tempo: estiveram presentes no Rio de Janeiro cerca de mil pessoas. Em BH, mil e setecentas. Muito ainda por contar, e que a memória oculta. As conversas nos camarins, a doce e firme presença de Pilar Del Rio, sua companheira, os pequenos segredos. Mais dois momentos: no aeroporto da Pampulha, quando nos encontramos com José e Guita Mindlin. Dois apaixonados pelos livros.
Uma bonita lembrança. E o último, ao final dos autógrafos, no Rio de Janeiro, quando ele segurou a minha mão, firme, e disse, ao lado de Pilar:
- Nos vemos daqui a pouco, na casa do Chico?
- Sim, menti. Não fui ao jantar. Coisa de mineiro bobo, envergonhado. Fica para uma outra vida.
Nota: Afonso Borges, o autor desta crônica relatando a passagem de José Saramago por terras mineiras, é o responsável pela criação, coordenação e desenvolvimento do “Sempre Um Papo”.
Idealizado há 23 anos, o Projeto é considerado, hoje, um dos mais respeitados projetos de incentivo à leitura do Brasil, com mais de dois mil eventos realizados, com a presença de mais de um milhão de pessoas, em 27 cidades, de oito estados, além do Distrito Federal.
José Saramago esteve em Belo Horizonte mais de uma vez particiando do Sempre Um Papo.
A Música Que Toca Sem Parar:
Orchestra Marrabenta Star De Moçambique, Nwahulwana, canção feita de sopro e de vento.
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24 comments:
no lançamento de "intermitências da morte" eu estava entre as mil e setecentas pessoas, e entre as trezentas que esperou pacientemente na fila pelo seu autógrafo - dei o livro para minha filha liliana - sua apaixonada leitora. toquei a sua mão, ele cansado... tive vontade de chorar.
besos
Prosa boa essa, moço...Equipamentos falharam, não houve registro, mas essa crônica aqui valeu pelo que não pôde ser gravado, filmado, enfim...
Abraços,
Tânia
Delícia de crônica, Roberto.
José - onde estiver -, certamente aprovou.
Abraço apertado, escriba das Minas abissais.
Delícia mesmo ler essa crônica. Tá que sou suspeita...mas, se lá estivesse, teria esperado todo o tempo do mundo por um autógrafo dele (e eu nem sou disso..rs)
as intermitências da morte é um livro que amo.
beijo
... Saramago não acreditava em outra vida... azar o dele!
lírica,
estivesse eu em bh naquele dia, certamente teria enfrentado a fila. ou, com um pouquinho mais de sorte, convencido afonso borges a ser o carreagador de malas (e de livros) do mestre saramago... so para ver (e sentir) mais de pertinho o vento das palmas.
daqui, milhares de milhas de lá, meu topete balançou ao ler o texto de afonso.
beijos,
r.
entendo a frustração do afonso, taninha... e olha que o esquema dele é super profissional. preciso como um relógio.
acho o Sempre Um papo uma das coisas mais importantes a serviço da literatura acontecento no país (depois cê checa no "guga"...)
beijo imenso procê.
r.
ps: e ce nem comentou a musiquinha. magoei...rs
PJ,
será que saramago teria aprovado?
rs...
de repente, só pra polemizar, diria que não gostou... sabe-se lá...
na ocasião da ida dele a bh perguntei a afonso se tinha sido muito puxado lidar com um cara conhecido por seu temperamento seco, afonso esclareceu que saramago era agradabilíssimo e que ele era "um português engraçado". e essa frase nunca mais se apagou.
aí ele jogou o sapo n'água.
beijão, poeta de pipa.
andra,
não li intermitências, mas ja ta na lista. to com uns mia coutos aqui precisando ser despachados antes disto.
onde é que foi parar o tempo?
beijo imenso. maior.
r.
anonimo,
quem sou eu pra questionar a opção religiosa de alguma pessoa? rs
eu?
ah, acredito em tudo. mas o saci-pererê não é uma delas.
abração do
r.
gostei da cronica, o vento das palmas, a canção, o papo de mineiro.
rapaz por aqui tá chovendo demais, e olha que eu sou do tempo que a gente saia e mãe cuspia no chão, a gente tinha que voltar antes do cuspe secar,
abração
assis,
também sou deste tempo...rs
chuva na bahia? e no piauí? chove?
aqui, quando faz calor, cozinha. e, quando faz frio, tora.
vou te mandar a cantiga.
beijão,
r.
cronicas para noticias que não se quer ouvir mas não possivel de sentir
a gente nunca se cansa do que é bom e nos faz bem, magnólia.
vida após a vida para saramago!
abração,
roberto.
Ah, Roberto, quando eu era menina, no interior, dizia-se ser feio ser "pidona"...Eu bem ouvi a música, ouço e fico no querer pra mim, mas não quero ser pidona! :-)
Mas...heheh...já que tu insistiu e me convenceu:
Robertoooo, manda pra mim? :-)
Beijos,
Tânia
pois é, lu... ele se foi mas deixou uma obra linda e relevante pra gente saciar a saudade.
algumas pessoas não morrem nunca.
beijo grande,
r.
Eh, Roberto, meu amigo...
Fico aqui pensando: como era antes de encontrá-lo? Já não me lembro, ou melhor, não quero lembrar... Você me oferece tanto!
Vejamos esta deliciosa crônica que você selecionou...
Ouçamos esta música que toca sem parar...
Demais!
Enorme abraço, querido!!!
ediney,
notou como secam as flores de nossa jardim.
e se transformam em notícia.
abração, poeta!
r.
uai, tania, eu tinha mandado antes mesmo de voce pedir.
pediu não, pidona? rs to com uma lista de amigos aqui. mando sempre as cantigas pra turma toda, antes mesmo dos pedidos.
até quem não pede, tem recebido.
se não chegou, eu mando de novo.
beijo grande do
r.
zélia,
vamos ficando mais rios nesta nossa troca. sabia?
vamos aprendendo um bocadinho uns com os outros... e assim, crescendo.
a jornada é maior, sabia?
vou te mandar a canção do carlos humberto benfica.
xá comigo.
beijão do
roberto.
"Em público e nas entrevistas era polêmico, às vezes seco e duro. No tratro pessoal, afável, cordial e amigo"
é este o saramago que recordo, guerreiro, ousado, chegando a ser intratável para o mundo; dócil, e atencioso com o mundo.
um forte abraço, poeta, jornalista, cronista, cruzeirista... amigo!
p.s. é já a segunda vez que faço comentários no teu blogue que não são publicados. já não sei se é por problemas técnicos, se a pide já tomou conta do teu blogue... :-)
p.p.s. ouvi dizer que um tal de edcarlos, defesa central que já jogou no benfica e que esteve no méxico, na última época (creio) está em vias de assinar pelo nosso cruzeiro? xi, que pé frio...
jorgíssimo,
pode até ser que a pide, a kgb e a CIA tenham interceptado seus petardos. rs... garanto: aqui não chegou...rs
Edcarlos (nome de cantor de boleros) acertou com o Cruzeiro... antes de ir para o Benfica, era bom jogador (não do nível de luizão, óbvio)... terá se esquecido de jogar à bola em terras de saramago e jorge pimenta?
li hoje que o manchester city quer levar ramires por 20 milhões de euros... ótimo negócio pro benfica, que pagou 7 milhões pelo atleta. e em apenas um ano.
negócio da china!
sempre tão bom te receber nesse minifúndio de afetos.
abração,
r.
tanto assisti "sempre um papo"...uma das melhres coisas da TV.
poxa, adriana...
o sempre um papo é muito legal. vivesse eu ainda em bh não perderia um. (escrevo isto e me lembro de que da últi mavez que estive lá a terra era plana e adriana galisteu - pelamordejesuscristim - fingia um caminho das borboletas.
não sei o que fui fazer lá...rs acho que fui arrastado por roberto drummond, que leria uma cronica escrita pra ayrton senna, algo assim... deu um branco total por aqui.
nada radiante. esse meu branco.
beijão.
r.
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