Thursday, February 10, 2011

Naquele Segundo, Em Algum Lugar

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Escutei no radio que o próximo ano vai ter um segundo a menos. O que não é grave.

Sou da opinião de que chegar um segundo atrasado a qualquer lugar ou ocasião não é o fim do mundo. Afinal, é "apenas" um segundo.

Mas os cientistas se juntaram e, na passagem do ano, lá foram acertar o relógio oficial do planeta.
Dizem que é porque a Terra foi se atrasando bocadinho atrás de bocadinho no seu giro diário, até completar um segundo no último dia de dezembro.

No final, foi preciso o homem dar um jeitinho.

Não é a primeira vez que isto acontece, o que para mim é igualmente irrelevante.

No outro dia vi o personagem de um filme alemão definhando, sofrendo horrores numa cena em que contemplava o suicídio, refletindo o óbvio, de que a vida inteira de uma pessoa corresponde a um mero segundo na história da humanidade.

Mais do que isto seria presunção, disse eu – estranho maluco - ao homem que penava dentro do aparelho de televisão.
Mas ele não me escutou.

Até aquele momento eu não havia pensado no assunto com semelhante enfoque. Afinal, cada existência é do tamanho que é, como sempre vi.

Sessenta segundos se juntam para compor um minuto e sessenta iguais redundam em uma hora. Vinte e quatro destas compõem um dia.

Sete destes e teremos uma semana.

Quatro semanas perfazem um mês.

E doze meses, juntos, somam um ano.

Cem destes últimos fazem um século.

Simples!

E assim caminha a humanidade, dia após dia. Ano após ano.

E não se fala mais nisto.

Mas, ontem, tarde da noite, ao levantar-me da cama para buscar um copo d’água, passando pela janela ao fim do corredor, olhei pela vidraça a noite limpa e testemunhei uma estrela mudando de lugar.

Linda, a cena! Fazia um tempão que não via uma daquelas.

E aquilo me deu uma pontinha de alegria, afinal, o exercício do viver ainda nos oferece pequenos e grandes milagres de grande beleza. Só é preciso que estejamos atentos.

Um segundo é precioso demais.

Coisas grandiosas acontecem em um segundo, pensei com meus botões.

E coisas banais, também, não sejamos tão poeticamente ingênuos.

E foi assim que eu fiquei ali, debruçado sobre o parapeito da janela, meio insone, meio acordado, meio dormindo, meio despertado, namorando aquela estrela e pondo-me a imaginar que, naquele exato segundo em que ela se deslocara, em algum lugar do mundo uma nova vida nascia.

E que, naquele mesmo segundo, no hemisfério oposto, uma pessoa respirava pela última vez.

Naquele exato momento, em algum lugar do mundo alguém comia um pedaço de pão.

Alguém sentia fome.

Um outro não tinha o que comer.

Naquele exato segundo, em algum quadrante de algum lugar, alguém fazia sexo.

Alguém penava com a solidão.

Alguém se frustrava.

Alguém dizia não.

Alguém pensava em alguém, que talvez pensasse noutro alguém.

Alguém sentia frio.

Alguém se banhava no mar.

Alguém viajava num táxi.

No instante em que aquela estrela fugidia de uma noite de dezembro mudava de lugar, uma mulher era humilhada e uma outra se libertava de sua maldição.

Naquele exato segundo uma criança era negligenciada.

Num outro lugar, uma outra brincava de videogame.

E uma terceira não tinha com o que brincar.

Em algum lugar da Terra alguém usava o banheiro.

Alguém tinha náusea.

Alguém bebia café.

Alguém se drogava com barbitúricos.

Alguém rezava.

Alguém pintava os lábios de batom.

Em alguma paisagem do mundo uma pessoa sentia a chuva molhar seus cabelos sem imaginar que, longe dali, uma outra tostava por prazer a sua pele ao sol.

Naquele exato segundo, em algum lugar, alguém buscava a cura para uma doença, enquanto uma outra pessoa tentava criar um vírus capaz de destruir milhões.

Em algum lugar alguém vendia armas.

Alguém vendia drogas.

Alguém vendia a salvação.

Naquele momento, em algum lugar do mundo, um escritor escrevia uma crônica sem grandes atrativos ou maiores novidades.

E alguém lia.

Naquele segundo.

Em algum lugar do mundo.

Via-se da janela uma estrela mudando de lugar.





A Música Que Toca Sem Parar:

Estrelas, de Oswaldo Montenegro , dividindo os vocais com Zé Alexandre:



Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
Doido corpo que se move
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Pela mágica do dia
Que independeria da gente pensar
Não me fale do seu medo
Eu conheço inteira sua fantasia
E é como se fosse pouca
E a tua alegria não fosse bastar
Quando eu não estiver por perto
Canta aquela música que a gente ria
É tudo que eu cantaria
E quando eu for embora, você cantará

24 comments:

Tania regina Contreiras said...

Ah, Roberto, já falei lá no Tertúlia, que belezura poética essa sua crônica, lin-da...lindaa...lindaaa... Meu amigo, escrever crônica, de verdade, é pra poucos...e vc sabe como ninguém. Eu simplesmente AMEI, vou guardar bem guardadinha essa.
E a música...ah, eu gosto muito, acho uma pérola do Oswaldo.
Beijão,

Primeira Pessoa said...

oswaldo, que tem fama de chato. mas acho que fez coisas melódicas, bonitas... principalmente nos primeiros tempos (bandolins é um clássico).

essa cronica não é nova, taninha. não tenho parido nada que mereça atenção.
suas palavras carinhosas me elevam, levantam...
beijão,
r.

Unknown said...

Roberto!

Que bom que encontrei um igual. Será que já fomos irmãos? Quantas vezes paro e começo a refletir igual: quem naquela hora em que estou apreciando, sente fome, vontade de morrer, quem nasce, que sonhos estão tendo as crianças, enfim....âs vezes rompo a noite em pensamentos.

Cara, tu és poeta.

Beijos fraternos

Mirze

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Delima,
Zé Alexandre disputou o festival de música em GV ano passado, que a prefeitura cismou de tirar do cardápio cultural em 2011, por falta de verba (e outros verbos que não direi aqui em sua casa, por decoro e respeito: coisa que eles - os políticos - nem fazem mais questão de esconder que não usam). Poeta, era um festival do interior, com ou sem muita importância, mas os músicos, os compositores, os intérpretes da cidade, tinham nele uma chance quase única de mostrar suas músicas, suas poesias, seus talentos, além de trocarem figurinhas com os artistas que chegam de outras paragens, e tanta coisa bacana que esses encontros proporcionam, cê sabe.
É desalentador e merencório ver na cara dos cantadores da Terra o dissabor pelo ato da atual prefeita e seu séquito insensível à arte. Insensíveis e frios, pois, tiveram a coragem de cancelar o festival quinze dias antes de sua realização, ou seja, nem levaram em conta a correria pra se cumprir prazos de todo mundo que se inscreveu pro evento que virou vento nums estalar de dedos dos poderosos que decidem como querem o que é melhor pro povo.
Rapaz, desculpe: quase armo um palanque aqui. Mas essa canção de Montenegro é mesmo uma coisa linda, pra se viajar alto e fundo.
E a crônica , como de costume, um primor ao rigor dos mais exigentes exegetas.

Admiração maior que grande,
Ramúcio Darrama.

Luciana Marinho said...

neste exato (exato?) momento penso em ti: que maravilha de crônica! tocante. ai, se não venho aqui, iria perder uma bela estrela mudando de lugar!

beijão, roberto!!

Jorge Pimenta said...

robertílimo,
recordo-me de ter lido esta tua crónica há tempos e ainda recordo melhor o espanto que me percorreu pela agudeza com que defines o tempo e ainda mais com que redefines o homem na sua relação com o tempo.
crónica intemporal... como o tempo, afinal.
dois abraços... (um segudo para cada um) :)

Unknown said...

menos de um segundo e eu já estava lá, era assim no meu tempo de imprecisão, quando vagava estrelas como nessa canção,


abraço desse enluarado do sertão

Tania regina Contreiras said...

Roberto, li a crônica pela primeira vez. Mas releria e relerei outras. Minhas leituras preferidas não são lidas duas, mas várias vezes. Essa sua crônica é uma cooooisa de bela! Poeta, sim...
Beijos,

Anonymous said...

as saudades que eu tinha de ler um texto dos seus.
Lindo, perfeito!
Beijos com força!
Laura

Primeira Pessoa said...

laura,
que bom vê-la de novo por aqui. ando em falta com você, mas não me esqueci, amiga.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

ah, taninha, cê fala assim e fico todo pimpão, achando que acertei a mão.
às vezes, dou sorte e acerto um textículo aqui e acolá...

beijão do

r.

Primeira Pessoa said...

assis,
cê era e é, assim... estrelado.

é assim que o vejo.

abração,
r.

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
não existe "tempo ruim" para um abraço amigo.
preciso é tomar vergonha na lata e começar a produzir novos textos, pra não ficar contando sempre a mesma anedota.
daqui a pouco, já ninguém acha graça.

abração,
r.

Primeira Pessoa said...

luciana,
você, muito gentil, generosa, amiga sensível que arranja sempre um jeitinho de nos levantar o astral.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

da rama,
me dá um preguiça do cacete essas questões "administrativas" de nsosa city.
to com um proketo bacana, de custo baixo, que colocaria a cidade no mapa cultural das geraes.
mas esse povo aí é inerte. manja?

abração,
r.

Primeira Pessoa said...

mirze,
já estamos irmanados e não é de hoje. a palavra circula em nossas veias, como sangue.

poeta, eu?

adoraria sê-lo.

beijão,
r.

ÍndigoHorizonte said...

Un segundo: decía una canción de Luis Eduardo Aute: "No me hace falta la luna ni tan siquiera la espuma, me bastan solamente dos o tres segundos de ternura". Un segundo puede ser una eternidad de pura belleza... Un abrazo, Roberto.

Primeira Pessoa said...

um segundo pode ser uma vida inteira, indigo.
aute sabe das coisas.
abração,
roberto.

Zélia Guardiano said...

Um segundo, Roberto!
Um segundo...
Quanta coisa você me faz pensar...
Crônica mais linda do mundo!
Abraço apertado, amigo!

www.pedradosertao.blogspot.com said...

Seu texto me fez lembrar uma discussão muito boa que Sérgio Cortella faz sobre a tacocracia...vivemos com pressa e o tal "segundo" corre mais do que tudo! abraço

Primeira Pessoa said...

ah, pedra do sertão...
aquele tal segundo é velocista mas é, na mesma mão, fundista.
ele corre rápido. e corre muito.

tempo, tempo, tempo.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

mais linda do mundo é você, zélia guardiano, mulher que aprendeu a semear gentileza e sorrisos pelo mundo.


você passa por aqui e me ilumina: click...


beijão,
roberto.

Anonymous said...

Beto,

a gente começou nossa amizade mais ou menos perto do vitória do Galo sobre o cruzeiro no final do campeonato mineiro. Sendo assim não podia deixar passar batido a vitória do nosso Galo de 4X3 sobre o cruzeiro diante de toda a massa cruzeirense. O primeiro clássico do ano...

Tá tá tá Tardeli! rsrs

Primeira Pessoa said...

acho que te dou sorte, fouad... ou, você é um bunda de foca e me dá muito azar...

deu galo, hoje. vi o jogo com meu irmao e um amigo aqui em casa. bebemos umas coronas, fiz moela de botequim (pra comer com pão murcho, dormido) e rojões (cubos de lombo fritinhos, ligeiramente picantes) e mandioca cozida com manteiga de garrafa daí do mercado central. essa parte dos comes e bebes foi uma maravilha...

quanto ao jogo.... já são outros quinhentos.

ainda vamos ao mineirão juntos. à paisana, os dois.

beijão,
r.