Wednesday, September 15, 2010
























Um homem valitudinário
Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças catalogadas, e todas elas mortais.
Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só lhe incomodam quando a mulher aparece com algum tipo de restrição:
- Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valitudinário!
Valitudinário?
Corri pro dicionário – outra de suas muitas manias. Ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida – e não encontrei absolutamente nada.
Apelei a ele, e aprendi que um indivíduo valitudinário é um sujeito doente.
- Olha que moça calipígia, ele diz, apontando para a voluptuosa morena que atravessa a rua.
Nova consulta e descubro que calipígio é aquele, ou aquela, que possui belas nádegas.
Todas as manhãs, quando ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro praticar os gestos universais inerentes ao ser humano, quem estiver do lado de fora, saberá imediatamente, qual dos Argemiros sairá por aquela porta.
Existem dois Argemiros: o sorumbático e o ditoso.
Querem saber o que quer dizer isto?
Façam como eu. O Aurélio é logo ali.
Ou, perguntem ao Argemiro.
Tudo bem, esqueçam o Aurélio!
O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê, sentado no trono.
Ele sabe tudo de ópera, canta árias inteiras, e parece se alimentar de réquiens e Enrico Caruso. Se não tivesse nascido Caruso e italiano, teria nascido Argemiro e brasileiro, o célebre concertista.
Nosso Argemiro contente é expert em Caruso.
E em Maria Callas. E em René Fleming. E disserta como poucos sobre os Pavarottis e Carreras desta vida.
O outro Argemiro, aquele que parece ter torturado a própria mãe em seus piores dias, fica mudo durante todo o banho e dele nada se escuta.
Nessa segunda situação, quando sai pela porta do banheiro e seus olhos cinzentos o acompanham até a mesa do café, já sabemos.
Diante das frutas – que faz questão de que estejam descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – ele sentencia:
Sinto-me plúmbeo.
Estou macambúzio.
Maldita paúra.
Indizível banzo.
Sou um homem embezerrado.
E valitudinário!
Qualquer das expressões denotam que ele não acordou do lado certo da cama.
Saudade de algo ou alguém, ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.
Gosta de bons vinhos. Bom champagne. Bom malte escocês. Mas à mesa não possui o mesmo requinte.
Se pudesse, comeria arroz e bife em todas as refeições. Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês da cidade por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.
Argemiro é assim, um poço de contradições. E manias.
Pena vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas vezes.
Tem paranóia com agentes alfandegários, e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas possa ser aberta na saída, ou na chegada.
Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido. Mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada de revista suas cuecas e meias – que ele enrola e acondiciona de maneira artesanal – causam-lhe fobias, mal estar, uma quase demência.
Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las.
Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições e jura sentir coceiras, caso leve para casa alguma calça pega frangos, ou uma camisa larga ou justa.
Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas.
Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas... Ele precisaria de um novo cômodo da casa só para guardar sua coleção. Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha, e passa dias inteiros organizando o acervo.
Usuário de sabe-se lá quantos tipos de remédio, pouco faz para acompanhar o tratamento médico com algum tipo de dieta. Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta. E torce para o Coritiba Football Club.
Informado pelo médico, de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou ao doutor que havia acabado de escolher, naquele instante, o epígrafe que iria adornar sua lápide:
- ARGEMIRO PAROU DE FUMAR!
E é isto mesmo. Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai para de fumar ou beber ( ou de fazer qualquer outra coisa que apeteça ou lhe dê prazer), no dia em que pedir a conta, e partir desta para uma (muito) melhor.

A Música Que Toca Sem Parar;
para uma crônica quilométrica falando de alguém, escolhi uma canção também quilométrica e também falando de alguém. Ficção, realidade, pouco importa... Vitor Ramil canta a bela versão que fez para uma música antiga de Bob Dylan. Em português, virou Joquim.

Satolep
Noite
No meio de uma guerra civil
O luar na janela
Não deixava a baronesa dormir
A voz da voz de Caruso
Ecoava no teatro vazio
Aqui nessa hora é que ele nasceu
Segundo o que contaram pra mim

Joquim era o mais novo
Antes dele havia seis irmãos
Cresceu o filho bizarro
Com o bizarro dom da invenção
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Quando o cara aprontava mais uma

Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?

Muito cedo
Ele foi expulso de alguns colégios
E jurou: "Nessa lama eu não me afundo mais"
Reformou uma pequena oficina
Com a grana que ganhara
Vendendo velhas invenções
Levou pra lá seus livros, seus projetos
Sua cama e muitas roupas de lã
Sempre com frio, fazia de tudo
Pra matar esse inimigo invisível

A vida ia veloz nessa casa
No fim do fundo da América do Sul
O gênio e suas máquinas incríveis
Que nem mesmo Julio Verne sonhou
Os olhos do jovem profeta
Vendo coisas que só ontem fui ver
Uma eterna inquietude e virtuosa revolta
Conduziam o libertário

Dezembro de 1937
Uma noite antes de sair
Chamou a mulher e os filhos e disse:
"Se eu sumir procurem logo por mim"
E não sei bem onde foi
Só sei que teria gritado
A uma pequena multidão
"Ao porco tirano e sua lei hedionda
Nosso cuspe e o nosso desprezo!"

Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?

No meio da madrugada, sozinho
Ele foi preso por homens estranhos
Embarcaram num navio escuro
E de manhã foram pra capital
Uns dias mais tarde, cansado e com frio
Joquim queria saber onde estava
E num ar de cigarros
De uns lábios de cobra, ele ouviu:
"Estás onde vais morrer"

Jogado numa cela obscura
Entre o começo do inferno e o fim do céu
Foi assim que depois de muitas histórias
A mulher enfim o encontrou
E ele ainda ficou ali por mais dois anos
Sempre um homem livre apesar da escravidão
As grades, o frio, mas novos projetos
Entre eles um avião

O mundo ardia na guerra
Quando Joquim louco saiu da prisão
Os guardas queimaram
Os projetos e os livros
E ele apenas riu, e se foi
Em Satolep alternou o trabalho
Com longas horas sob o sol
Num quarto de vidro no terraço da casa
Lendo Artaud, Rimbaud, Breton

Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?

No início dos anos 50
Ele sobrevoava o Laranjal
Num avião construido apenas das lembranças
Do que escrevera na prisão
E decidido a fazer outros, outros e outros
Joquim foi ao Rio de Janeiro
Aos orgãos certos,
Os competentes de coisa nenhuma
Tirar um licença

O sujeito lá
Responsável por essas coisas, lhe disse:
"Está tudo certo, tudo muito bem
O avião é surpreendente, eu já vi
Mas a licença não depende só de mim"
E a coisa assim ficou por vários meses
O grande tolo lambendo o mofo das gravatas
Na luz esquecida das salas de espera
O louco e seu chapéu

Um dia
Alguém lhe mandou um bilhete decisivo
E, claro, não assinou embaixo
"Desiste", estava escrito
"Muitos outros já tentaram
E deram com os burros n'água
É muito dinheiro, muita pressão
Nem Deus conseguiria"
E o louco cansado o gênio humilhado
Voou de volta pra casa

Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?


No final de longa crise depressiva
Ele raspou completamente a cabeça
E voltou à velha forma
Com a força triplicada
Por tudo o que passou
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Que o cara não se entregava

Deflagrou uma furiosa campanha
De denúncias e protestos
Contra os poderosos
Jogou livros e panfletos do avião
Foi implacável em discursos notáveis
Uma noite incendiaram sua casa
E lhe deram quatro tiros
Do meio da rua ele viu as balas
Chegando lentamente

Os assassinos fugiram num carro
Que como eles nunca se encontrou
Joquim cambaleou ferido alguns instantes
E acabou caído no meio-fio
Ao amigo que veio ajudá-lo, falou:
"Me dê apenas mais um tiro por favor
Olha pra mim, não há nada mais triste
Que um homem morrendo de frio"

Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?

28 comments:

Unknown said...

casamento perfeito, a cronica e cronica musicada de Dylan.

valitudinário é phoda, boa forma de embarrilar,


abração

Batom e poesias said...

Como sempre, é uma delícia ler suas crônicas.

Grande Argemiro!
bj

Rossana

Paulo Jorge Dumaresq said...

De volta, Roberto, depois de 10 dias em Sampa curtindo as maravilhas culturais da megalópole.
Também recorro ao "pai dos burros" quando necessário, mas não sou viciado como um amigo que possui seis em casa.
Já na ópera sou analfabeto.
Só algumas óperas-rock.
Que figuraça o Argemiro.
Crônica deliciosa.
Sinta-se abraçado, Roberto de Valadares.

Pólen Radioativo said...

Bom dia, Roberto!

Argemiro é um cara interessante (e por isso mesmo também cheio de chatices) [risos...]
Mas de muita razão: Largar os inúmeros vícios, grandes e pequenos, que nos dão prazer... Só mesmo quando embarcar pro paraíso.

(Lembrei do Vinícius agora: "Se eu tivesse muitos vícios o meu nome poderia ser Vinícius, e se esses vícios fossem muito imorais, eu seria o Vinícius de Moraes")

Adorei a música! Não a conhecia até a tua citação lá no post do "Escrito em Vermelho". Fui logo atrás... Valeu por apresentá-la.

Beijão.

Unknown said...

AH Roberto!

Nosso guimarães Rosa, deveria ter conhecido esta figura.

Tenho uma amiga, que daria um belo par para esse Valitudinário. Só que ela sabe tudo de todas as mais recentes doenças. Vai no Google, e rastreia. Quando chega no médico, já com os sintomas decorados e ditos, passa meia vida fazendo exames.

Esse seu personagem, ao menos, coleciona palavras. É um "bom vivant".

Adorei a música!

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

assis,
esse vitor ramil não é de fritar bolinho...
adoro as coisas dele... tenho todos os discos.

compartilho com alegria.

abração,

r.

Primeira Pessoa said...

rossana,
faço coro com você:
GRANDE ARGEMIRO...
assim mesmo, maiúsculo!

abraçao do

r.

Primeira Pessoa said...

dez dias em sampa fazem bem a qualquer vivente, paulo poeta... se te soubesse lá, teria dado uns toques... te aproximado de algumas pessoas queridas...

fica pra uma outra vez, né?

abração, desde new jersey.

r.

Primeira Pessoa said...

moça do pólem,
vinicius de morais foi umas figuras mais iluminadas a nascer em nosso país.

deixou uma obra grandiosa e estorias deliciosas... como esta que acaba de nos contar.

vou "samplear" pro meu repertório...rs

abraçào do

roberto.

Primeira Pessoa said...

mirze,
o argemiro é uma pessoa muito proxima a mim e é uma pessoa muito interessante e com quem tenho muitos pontos em comum... somos sagitarianos... parecidíssimos....

adoro ele.

fico contente que tenha gostado da cronica.

abraçao do

r.

Angel said...

Roberto, me diverti com o texto! Fiquei pensando se eu, embora não valitudinária, nem colecionadora de caixinhas, seja, aos olhos dos outros, um tanto bizarra ou divertida. Devo ser. Somos um poço de particularidades mesmo... E como há pessoas interessantes por ai!

Adorei o texto!

Abraço.

Lua Nova said...

Uma crônica que se lê sem parar nem pra respirar. Divertidíssima e cheia de uma humanidade comovente. Um personagem riquíssimo esse Argemiro, um prato cheio pra Guimarães Rosa ou Ariano Suassuna (aquele gênio). Você podia dar continuidade a essas histórias de Argemiro... rsrsr...
Meu caro, beijokas e parabéns. Ler vc é sempre enriquecedor.

Gerana Damulakis said...

Argemiro, grande personagem de um texto que agarra o leitor.

Primeira Pessoa said...

gerana,
e ter você que sabe tanto de tantos palavreares, é um luxo que faria argemira se achar "o cara".

argemiro existe!

abração,

r.

Primeira Pessoa said...

lua nova,
as manias de argemiro dariam pra um romance...

pensando bem, não é uma idéia... mas acho que ele me processa...rs

beijão do

roberto.

Primeira Pessoa said...

angel,
caetano veloso ja disse muitas bobagens na vida, mas uma que merece citação é exatamente aquela que deveria estar tatuada à sua lápide, quando ele for desta para uma não necessariamente melhor:

"de perto, ninguém é normal".

somos, todos, cada um ao nosso jeito, argemiros.

concorda?

beijão do

roberto.

líria porto said...

volto de_vagar...
teu sogro é muito interessante!
besos

Primeira Pessoa said...

lírica, querida...
meu sogro não se chama argemiro...rs
mas os nomes são bem parecidos, rs...

bom te ter de volta... mesmo que na base (e ne medida) do conta-gotas.

beijao,

r.

MariaIvone said...

Ter um Argemiro por perto, valitudinário assumido, bipolar por natureza, instável de temperamento, obsessivo compulsivo, teimoso incorrigível e ainda por cima sagitariano: só dia sim dia não!

Adorei!
Bjos
MariaIvone

Primeira Pessoa said...

ah, maria ivone,
se bobear, mais da metade deste argemiro sou eu...rs

esses argemiros, aliás, são como pardais, estas avezinhas marrons que não sabem cantar e habitam (avitam?) os quatro quadrantes do globo.

abraço meu,

r.

Graça Pereira said...

Adorei esta crónica bem contada e divertida...
Talvez não saibas mas há tantos ARGEMIROS por aí... e acredito que eles são de todos os signos...Desengana-te se pensavas que só os sagitarianos poderiam ser Argemiros...
Beijo e um fim de semana feliz.
Graça

Primeira Pessoa said...

e, se formos pensar direitinho, haveremos de convir: cada um tem o argemiro que merece, né?

grande abraço, Graça.

é uma alegria tê-la aqui.

Zélia Guardiano said...

Show, Roberto!
Adorei!
Forte abraço, querido amigo ...

Maria Paula Alvim said...

Ô mas esse Argemiro é um prato cheio pra qualquer psiquiatra. O personagem é bem interessante, mas mais interessante que ele é seu estilo, sua intimidade com as palavras... Ótimo texto, Roberto

Primeira Pessoa said...

zélia, querida...
senti sua falta por aqui...
nunca tarde, saiba disto...

beijo grande!

r.

Primeira Pessoa said...

maria paula,
nosso argemiro não acredita em analista... já me disse que, se "precisasse"(rs), arranjaria uma comadre, que lhe sairia muito mais barato.

beijão,

r.

Fernando Campanella said...

Olá, Roberto. Freud explicaria os Argemiros que trazemos dentro de nós? As caixinhas da vida que colecionamos como preciosidades, e guardamos umas dentro das outras? As coisas que incrustam em nosso tecido íntimo? E tudo mais que nos parece deliciosamente incômodo, mas que é o que nos distingue no mundo? Não sei se haveria resposta em alguma psicologia. Freud devia ter lá suas manias também. E o mundo girava antes da psicanálise, e continuará girando após, disso tenho a certeza, rs....
Abração, meu amigo. Fico feliz com tua visita no blog.

Primeira Pessoa said...

fernando,
nunca sei se é freud, ou pink floyd...rs
vira uma mistureba...
a psicanálise (e a religião e tantas outras coisas), isso é tudo invenção do homem...rs
às vezes acho que a vida é comer e descomer. nascer e morrer.
tão simplesmente.

amanheço e anoiteço. e não sei de porra nenhuma de nada...rs

deve ser a terceira cerveja, que já me confunde as idéias e balança as pernas)...

beijão, poeta dos azuis.

seu amigo, o

r.