Wednesday, September 29, 2010
Borracharias viram bibliotecas em Sabará
Criada há oito anos, a Borrachalioteca cresce e inaugura novas unidades, inclusive o Espaço Libertação, no presídio municipal. Projeto desenvolve oficinas de poesia e percussão
Fundar uma Borrachalioteca, ou seja, uma biblioteca dentro de uma borracharia. Essa ideia começou a andar pela cabeça do então estudante Marco Túlio Damascena há 10 anos, quando ele, com 22 anos, passou a trabalhar com seu pai, o borrracheiro Joaquim Escolástico Damascena, numa pequena borracharia na Praça Paula de Souza Lima, no Bairro Caieira, periferia de Sabará. Fica a menos de 30 metros metros do poluído Rio das Velhas. Como era de se esperar, o “velho”, a princípio, não achou nenhuma graça naquele projeto, pois onde já se viu uma coisa daquelas, misturar livros com pneus? É claro que não daria certo. Mas Marco Túlio, que é tão cabeça dura quanto o pai, continuou insistindo. Coração mole, Joquim acabou cedendo.
Estava nascendo, a partir desse pequeno embate familiar, um dos projetos culturais mais originais de Minas, a Borrachalioteca de Sabará, que hoje, oito anos depois da sua fundação, além de ser reconhecida em todo o país, se transformou numa associação: o Instituto Cultural Aníbal Machado. O nome foi dado em homenagem ao escritor, filho da terra, autor de obras-primas como Tati, a garota. Atualmente conta com mais três unidades: a Sala Son Salvador, que funciona no Bairro Cabral; o Libertação pela leitura, dentro do presídio municipal de Sabará; e a Casa das Artes, também no Bairro Caieira. Recém-inaugurado, este novo espaço abriga, além da Cordelteca Olegário Alfredo, uma biblioteca infanto-juvenil, com cerca de 5 mil títulos, doados pelo Centro de Educação, Leitura e Escrita, da Faculdade de Letras da UFMG, e ainda os grupos Arautos da Poesia e Tambores Gerais, com mais de 40 integrantes.
Na Borrachalioteca, que continua funcionando no local de origem, estão em fase de catalogação quase 10 mil livros, dos mais diversos gêneros, à disposição da comunidade de Sabará. Ali, às quartas-feiras, ocorrem as Tardes culturais, voltadas para as escolas da região, quando são realizadas sessões de leitura, declamação de poemas e contação de histórias com as professoras Aguida Alves, Lourdinha Reis, Márcia Reis e Izabela Cristina. Ao lado, vendo tudo “com bons olhos”, ‘‘seu’’ Joaquim continua remendando os pneus e fazendo seus negócios.
“Nada mal para quem, como nós, começamos aqui na borracharia com apenas 70 livros, que nos foram doados pela Biblioteca Pública Municipal Joaquim Sepúlveda, de Sabará. Ver tantos títulos hoje, de autores brasileiros e estrangeiros, lotando essas estantes e sendo lidos pelo pessoal da nossa comunidade me dá uma alegria muito grande e vontade de continuar sempre com o trabalho”, comemora Marco Túlio Damascena. Além de ter criado a Borrachalioteca, ele conseguiu realizar outro sonho: o de se formar na Faculdade de Letras. Leitor contumaz desde a adolescência, quando começou a ter contato com a poesia de Lêdo Ivo, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, Túlio afirma que seu maior orgulho, hoje, é ver as crianças da comunidade, seus “clientes” mais assíduos, buscar livros na Borrachalioteca.
Entre os garotos e garotas que frequentam o espaço estão as amigas Ana Beatriz Silva de Oliveira, de 9 anos, e Raíssa Vitória, de 11, ambas alunas da Escola Estadual Paula Rocha, em Sabará. Olhos atentos, boas de conversa, e muito interessadas na leitura, elas fazem parte do grupo Arautos da Poesia, que funciona na Casa das Artes. Bons companheiros, outros que estão sempre presentes na Borrachalioteca e na Casa das Artes são os pequenos João Vitor Batista, de 9, e Henrique Policarpo da Costa, da mesma idade. Como Beatriz e Raíssa, também estudam na Paula Rocha. Eles participam também do Grupo Tambores Gerais, onde são alunos do escritor e percussionista Jorge Dikamba. “Desde o início colaboro com o Marco Túlio e tenho orgulho do nosso trabalho, pelo fato de proporcionarmos às crianças da nossa comunidade a oportunidade de ter contato com a cultura. Já nos apresentamos em Belo Horizonte, algumas cidades do interior e também em São Paulo”, diz o percussionista. Coordenador da Casa das Artes, Dikamba é autor do livro infanto-juvenil Amani, publicado pela Com Arte Edições.
Todo o esforço, aliado à vontade de continuar levando adiante os projetos, já rendeu à Borrachalioteca alguns prêmios importantes, como o Viva Leitura, em 2007, e Ponto de Leitura, em 2008, concedidos pelo governo federal. “Tudo isso nos incentiva, e só nos faz querer seguir adiante”, diz Marco Túlio. Com orgulho, mostra convite que acaba de receber do Ministério da Cultura para, em 19 de agosto, participar do 3º Seminário Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias e do 3º Fórum Nacional do Livro e Leitura, em São Paulo. Na ocasião, falará da sua experiência e do trabalho que vem realizando, não só na Borrrachioteca, como nos outros espaços criados pelo Instituto Aníbal Machado.
Carlos Herculano Lopes
Tuesday, September 28, 2010
Fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado recebe prêmio em Madri
O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 66 anos, recebeu nesta terça-feira (28), em Madri, prêmio da Fundação Salve as Crianças por seus trabalhos em favor dos pequenos. Trata-se de mais um entre vários prêmios já recebidos pelo profissional, como o Príncipe de Asturias das Artes (1998), Eugene Smith de Fotografia Humanitária e Unesco, que lhe foram concedidos pelo trabalho humanitário que realiza desde o início da carreira.
Além do brasileiro, de Minas Gerais, foram premiados a atriz norte-americana Mira Sorvino, que é Embaixadora das Nações Unidas, o tenor catalão José Carreras, presidente da Fundação José Carreras de Luta contra a Leucemia, e a advogada e ativista dos direitos humanos iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz de 2003.
Na lista dos premiados, também está Danielle Mitterrand, viúva do ex-presidente francês François Mitterrand. Presidente da Fundação France-Libertés, a ex-primeira-dama de 85 anos não compareceu ao evento.
Wednesday, September 22, 2010
A verdadeira cidade eterna
Ultimamente tenho tentado me reaproximar de Governador Valadares.
Sempre amei Valadares, cidade em que passei 17 felizes anos de minha vida.
Há muito tempo não apareço por lá.
Meu medo é o de que aquele lugar que cresci amando, já não exista mais.
Algo como um amor da adolescência que você reencontra, muitos anos depois, casada, maltratada, mãe de filhos, esperando a condução num ponto de ônibus.
Ainda não aconteceu comigo.
A Valadares da minha saudade tinha coqueiros beira-rio, ingazeiras, mangueiras onde se colhia frutas de ouro, suculentas e doces.
Em São Raimundo - o bairro que me viu crescer -, as ruas tinham nome de pedras.
Os poetas Abel Costa e Bispo Filho moravam na Esmeralda.
O meu pouso era na Topázio e os amigos de futebol, Marquinhos, Ney e Wellington Mingau viviam na Turmalina.
Joguei bola na Granada, quase namorei uma moça na Ametista, corri da polícia na Safira.
Nada grave, apenas um bando de meninos pulando a cerca de uma chácara alheia para colher carambolas, jambos, jenipapos e pitangas.
Na minha Valadares tinha campinhos de terra batida e os varzeanos Ibituruna, Democrata, Pastoril, Copevale, Covepe, Santa Helena, Everest e o inesquecível Vermelho 27.
O rio, que ainda hoje atende pelo mesmo nome, Rio Doce, tinha margens verdes, prainhas, remansos, corredeiras, e peixes de ouro e prata.
Tinha piau, tucunaré, timburé, corvina, lambari, bagre e tantos outros tipos de peixe, que eu precisaria de uma crônica inteira para tarrafeá-los.
Na cidade que resiste em minha emoção como oitava maravilha do mundo, tinha uma pracinha e uma fonte de onde jorrava uma cascata luminosa que mudava de cor.
Tinha banquinhos de cimento onde casais namoravam sem medo de assalto; tinha ainda um pipoqueiro e meninos sem camisa carregando caixas de isopor entoando o bordão: Aê o picolé! Aê a laranja!
Tinha castanheiras frondosas espalhadas às margens das estradas, ypês amarelos e roxos aos pé da serra e flamboyants que sangravam no verão.
Na Valadares - que não morrerá jamais - existia uma santa que nos abençoava do alto do pico do Ibituruna, braços sempre estendidos, sorriso enigmático anunciando chuvas.
Minha cidade eterna tinha personagens igualmente eternos, como o ceguinho Olé.
Reza a lenda que Olé teria ganho na loteria mais de uma vez, mas que continuava a esmolar pelas ruas por puro prazer.
É a mesma cidade de Adriano Dias da Silva, o Casca Grossa, lenda do radio, uma espécie de celebridade local e que acabaria se elegendo vereador.
Cidade de Beto Tranca-rua, repórter esportivo que também acabaria enveredando pela política, mesmo caminho escolhido por Júlio Tebas Avelar, homem que inventou o colunismo social nos jornais da cidade e que hoje colhe bonanças.
Naquele lugar que não morre nunca, jovens de ambos os sexos se amontoavam nas proximidades do cine Pio XII para tomar sorvete, comer cachorro quente e flertar nas noites calorentas de sábado.
Naquela cidade em que cresci, os vizinhos eram vizinhos de verdade, uma espécie de extensão da família.
Muito mais do que receitas de bolo e fofocas do cotidiano, trocavam gentilezas que iam de um pouco de pó-de-café a uma caneca de açúcar, quando a lata da casa de alguém ficava vazia.
Viravam compadres, apadrinhavam filhos uns dos outros, casavam os filhos de uns com os dos outros, consolavam-se nas tristezas, ficavam felizes nas alegrias.
Láquele lugar encantado tinha leilão de gado e barraquinhas no parque de exposições, festa junina com bandeirolas coloridas, quentão, canjica, batata doce e fogueira no pátio da igreja.
Minha cidade eterna tinha quadrilha, dias de chuva e sol, sol e chuva, e casamento de viúva.
Também tinha quermesse e novena, um padre que nos ‘passava o sabão’ e um serviço de alto-falantes que despejava Roberto Carlos, Wanderléa e Wanderlei Cardoso sobre nós.
Tinha passarinhos nos quintais: tizís, rolinhas, canários do reino, curiós, andorinhas e cuitelinhos, que muitos chamavam de beija-flor.
E tinha muito mais.
Na Governador Valadares do meu coração tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que acabou fazendo de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.
Esse homem que passa seus dias como um cão andando em círculos, tentando morder o próprio rabo.
A Música Que Toca Parar:
Mateus Sartori canta Lamento, uma cantiga que canta a dor de uma mãe que perdeu seu filho para as traiçoeiras águas de um rio.
Monday, September 20, 2010
...escutando Rodrigo Leão
No me olvides
yo me muero
Amor
mi vida es sufrimiento
Yo
te quiero en mi camino
Por vos
cambiaba mi destino
Ay,
abrázame esta noche
aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acércate a mí
abrázame a ti por Dios
entrégate a mis brazos.
Tengo
un corazón penando
Yo sé
que vos lo está escuchando
Con
mil lágrimas te quiero
Pasión
sos mi amor sincero
Ay,
abrázame esta noche
aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acércate a mí
abrázame a ti por Dios
entrégate a mis brazos
Saturday, September 18, 2010
Eugénio de Andrade, Entre os azuis...
.
Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
e é tão pouco!
EUGÉNIO DE ANDRADE
Obra de Eugénio de Andrade
***
Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?
EUGÉNIO DE ANDRADE
O Outro Nome da Terra
A Música Que Toca Sem Parar:
de Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós, na gravação antológica do Roupa Nova, Sapato Velho.
Você lembra, lembra!
Daquele tempo
Eu tinha estrelas nos olhos
Um jeito de herói
Era mais forte e veloz
Que qualquer mocinho
De cowboy...
Você lembra, lembra!
Eu costumava andar
Bem mais de mil léguas
Prá poder buscar
Flores-de-maio azuis
E os seus cabelos enfeitar...
Água da fonte
Cansei de beber
Prá não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr-de-sol
Hoje não colho mais
As flores-de-maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis...
É! Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Água da fonte
Cansei de beber
Prá não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr-de-sol
Hoje não colho mais
As flores-de-maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis...
É! Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
e é tão pouco!
EUGÉNIO DE ANDRADE
Obra de Eugénio de Andrade
***
Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?
EUGÉNIO DE ANDRADE
O Outro Nome da Terra
A Música Que Toca Sem Parar:
de Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós, na gravação antológica do Roupa Nova, Sapato Velho.
Você lembra, lembra!
Daquele tempo
Eu tinha estrelas nos olhos
Um jeito de herói
Era mais forte e veloz
Que qualquer mocinho
De cowboy...
Você lembra, lembra!
Eu costumava andar
Bem mais de mil léguas
Prá poder buscar
Flores-de-maio azuis
E os seus cabelos enfeitar...
Água da fonte
Cansei de beber
Prá não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr-de-sol
Hoje não colho mais
As flores-de-maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis...
É! Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Água da fonte
Cansei de beber
Prá não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr-de-sol
Hoje não colho mais
As flores-de-maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis...
É! Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Talvez eu seja
Simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo
Se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio
Dos seus pés...
Wednesday, September 15, 2010
Um homem valitudinário
Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças catalogadas, e todas elas mortais.
Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só lhe incomodam quando a mulher aparece com algum tipo de restrição:
- Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valitudinário!
Valitudinário?
Corri pro dicionário – outra de suas muitas manias. Ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida – e não encontrei absolutamente nada.
Apelei a ele, e aprendi que um indivíduo valitudinário é um sujeito doente.
- Olha que moça calipígia, ele diz, apontando para a voluptuosa morena que atravessa a rua.
Nova consulta e descubro que calipígio é aquele, ou aquela, que possui belas nádegas.
Todas as manhãs, quando ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro praticar os gestos universais inerentes ao ser humano, quem estiver do lado de fora, saberá imediatamente, qual dos Argemiros sairá por aquela porta.
Existem dois Argemiros: o sorumbático e o ditoso.
Querem saber o que quer dizer isto?
Façam como eu. O Aurélio é logo ali.
Ou, perguntem ao Argemiro.
Tudo bem, esqueçam o Aurélio!
O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê, sentado no trono.
Ele sabe tudo de ópera, canta árias inteiras, e parece se alimentar de réquiens e Enrico Caruso. Se não tivesse nascido Caruso e italiano, teria nascido Argemiro e brasileiro, o célebre concertista.
Nosso Argemiro contente é expert em Caruso.
E em Maria Callas. E em René Fleming. E disserta como poucos sobre os Pavarottis e Carreras desta vida.
O outro Argemiro, aquele que parece ter torturado a própria mãe em seus piores dias, fica mudo durante todo o banho e dele nada se escuta.
Nessa segunda situação, quando sai pela porta do banheiro e seus olhos cinzentos o acompanham até a mesa do café, já sabemos.
Diante das frutas – que faz questão de que estejam descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – ele sentencia:
Sinto-me plúmbeo.
Estou macambúzio.
Maldita paúra.
Indizível banzo.
Sou um homem embezerrado.
E valitudinário!
Qualquer das expressões denotam que ele não acordou do lado certo da cama.
Saudade de algo ou alguém, ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.
Gosta de bons vinhos. Bom champagne. Bom malte escocês. Mas à mesa não possui o mesmo requinte.
Se pudesse, comeria arroz e bife em todas as refeições. Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês da cidade por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.
Argemiro é assim, um poço de contradições. E manias.
Pena vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas vezes.
Tem paranóia com agentes alfandegários, e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas possa ser aberta na saída, ou na chegada.
Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido. Mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada de revista suas cuecas e meias – que ele enrola e acondiciona de maneira artesanal – causam-lhe fobias, mal estar, uma quase demência.
Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las.
Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições e jura sentir coceiras, caso leve para casa alguma calça pega frangos, ou uma camisa larga ou justa.
Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas.
Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas... Ele precisaria de um novo cômodo da casa só para guardar sua coleção. Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha, e passa dias inteiros organizando o acervo.
Usuário de sabe-se lá quantos tipos de remédio, pouco faz para acompanhar o tratamento médico com algum tipo de dieta. Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta. E torce para o Coritiba Football Club.
Informado pelo médico, de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou ao doutor que havia acabado de escolher, naquele instante, o epígrafe que iria adornar sua lápide:
- ARGEMIRO PAROU DE FUMAR!
E é isto mesmo. Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai para de fumar ou beber ( ou de fazer qualquer outra coisa que apeteça ou lhe dê prazer), no dia em que pedir a conta, e partir desta para uma (muito) melhor.
A Música Que Toca Sem Parar;
para uma crônica quilométrica falando de alguém, escolhi uma canção também quilométrica e também falando de alguém. Ficção, realidade, pouco importa... Vitor Ramil canta a bela versão que fez para uma música antiga de Bob Dylan. Em português, virou Joquim.
Satolep
Noite
No meio de uma guerra civil
O luar na janela
Não deixava a baronesa dormir
A voz da voz de Caruso
Ecoava no teatro vazio
Aqui nessa hora é que ele nasceu
Segundo o que contaram pra mim
Joquim era o mais novo
Antes dele havia seis irmãos
Cresceu o filho bizarro
Com o bizarro dom da invenção
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Quando o cara aprontava mais uma
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
Muito cedo
Ele foi expulso de alguns colégios
E jurou: "Nessa lama eu não me afundo mais"
Reformou uma pequena oficina
Com a grana que ganhara
Vendendo velhas invenções
Levou pra lá seus livros, seus projetos
Sua cama e muitas roupas de lã
Sempre com frio, fazia de tudo
Pra matar esse inimigo invisível
A vida ia veloz nessa casa
No fim do fundo da América do Sul
O gênio e suas máquinas incríveis
Que nem mesmo Julio Verne sonhou
Os olhos do jovem profeta
Vendo coisas que só ontem fui ver
Uma eterna inquietude e virtuosa revolta
Conduziam o libertário
Dezembro de 1937
Uma noite antes de sair
Chamou a mulher e os filhos e disse:
"Se eu sumir procurem logo por mim"
E não sei bem onde foi
Só sei que teria gritado
A uma pequena multidão
"Ao porco tirano e sua lei hedionda
Nosso cuspe e o nosso desprezo!"
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
No meio da madrugada, sozinho
Ele foi preso por homens estranhos
Embarcaram num navio escuro
E de manhã foram pra capital
Uns dias mais tarde, cansado e com frio
Joquim queria saber onde estava
E num ar de cigarros
De uns lábios de cobra, ele ouviu:
"Estás onde vais morrer"
Jogado numa cela obscura
Entre o começo do inferno e o fim do céu
Foi assim que depois de muitas histórias
A mulher enfim o encontrou
E ele ainda ficou ali por mais dois anos
Sempre um homem livre apesar da escravidão
As grades, o frio, mas novos projetos
Entre eles um avião
O mundo ardia na guerra
Quando Joquim louco saiu da prisão
Os guardas queimaram
Os projetos e os livros
E ele apenas riu, e se foi
Em Satolep alternou o trabalho
Com longas horas sob o sol
Num quarto de vidro no terraço da casa
Lendo Artaud, Rimbaud, Breton
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
No início dos anos 50
Ele sobrevoava o Laranjal
Num avião construido apenas das lembranças
Do que escrevera na prisão
E decidido a fazer outros, outros e outros
Joquim foi ao Rio de Janeiro
Aos orgãos certos,
Os competentes de coisa nenhuma
Tirar um licença
O sujeito lá
Responsável por essas coisas, lhe disse:
"Está tudo certo, tudo muito bem
O avião é surpreendente, eu já vi
Mas a licença não depende só de mim"
E a coisa assim ficou por vários meses
O grande tolo lambendo o mofo das gravatas
Na luz esquecida das salas de espera
O louco e seu chapéu
Um dia
Alguém lhe mandou um bilhete decisivo
E, claro, não assinou embaixo
"Desiste", estava escrito
"Muitos outros já tentaram
E deram com os burros n'água
É muito dinheiro, muita pressão
Nem Deus conseguiria"
E o louco cansado o gênio humilhado
Voou de volta pra casa
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
No final de longa crise depressiva
Ele raspou completamente a cabeça
E voltou à velha forma
Com a força triplicada
Por tudo o que passou
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Que o cara não se entregava
Deflagrou uma furiosa campanha
De denúncias e protestos
Contra os poderosos
Jogou livros e panfletos do avião
Foi implacável em discursos notáveis
Uma noite incendiaram sua casa
E lhe deram quatro tiros
Do meio da rua ele viu as balas
Chegando lentamente
Os assassinos fugiram num carro
Que como eles nunca se encontrou
Joquim cambaleou ferido alguns instantes
E acabou caído no meio-fio
Ao amigo que veio ajudá-lo, falou:
"Me dê apenas mais um tiro por favor
Olha pra mim, não há nada mais triste
Que um homem morrendo de frio"
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
Monday, September 13, 2010
Amador sem coisa amada
.
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
(António Gedeão)
Rómulo Vasco da Gama de Carvalho é professor, investigador e poeta. Como pedagogo, foi autor de inúmeras obras de divulgação científica e, como poeta, sob o pseudónimo de António Gedeão, escreveu conhecidos poemas como Lágrima de Preta e Pedra Filosofal.
A Música Que Toca Sem Parar:
da autoria de Alvin L, esta canção que, numa única frase (quando ele fala na "solidão com vista pro mar") já se justificaria.
Na interpretação de Milton Nascimento, Não Sei Dançar.
Às vezes eu quero chorar
Mas o dia nasce e eu esqueço
Meus olhos se escondem
Onde explodem paixões
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista pro mar
Ou outra coisa p'ra lembrar
Às vezes eu quero demais
E eu nunca sei se eu mereço
Os quartos escuros pulsam
E pedem por nós
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista pro mar
Ou outra coisa p'ra lembrar
Se você quiser eu posso tentar mas
Eu não sei dançar
Tão devagar
Pra te acompanhar
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
(António Gedeão)
Rómulo Vasco da Gama de Carvalho é professor, investigador e poeta. Como pedagogo, foi autor de inúmeras obras de divulgação científica e, como poeta, sob o pseudónimo de António Gedeão, escreveu conhecidos poemas como Lágrima de Preta e Pedra Filosofal.
A Música Que Toca Sem Parar:
da autoria de Alvin L, esta canção que, numa única frase (quando ele fala na "solidão com vista pro mar") já se justificaria.
Na interpretação de Milton Nascimento, Não Sei Dançar.
Às vezes eu quero chorar
Mas o dia nasce e eu esqueço
Meus olhos se escondem
Onde explodem paixões
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista pro mar
Ou outra coisa p'ra lembrar
Às vezes eu quero demais
E eu nunca sei se eu mereço
Os quartos escuros pulsam
E pedem por nós
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista pro mar
Ou outra coisa p'ra lembrar
Se você quiser eu posso tentar mas
Eu não sei dançar
Tão devagar
Pra te acompanhar
Friday, September 10, 2010
No dia 11 de Setembro
Como aconteceu no dia 8, no dia 9 e em muitos outros dias que o antecederam, o mundo irá acordar com o sol neste 11 de setembro.
No Tibet, um monge se levantará e fará sua primeira oração da manhã.
Em sua prece, pedirá à divindade que derrame sobre o mundo um manto de luz.
Luz para enxergar na escuridão da intolerância.
Luz para caminhar na retidão dos justos.
Luz para fazer transparecer as almas aflitas deste mundo.
Luz para aqueles que não conhecem outro caminho que não o do ressentimento.
Em Estocolmo, na civilizadíssima Suécia, uma moça loura como uma princesa viking, abrirá a janela para permitir que a brisa fresca de final de verão, entre em seu quarto e se espalhe pelos quatro cantos, trazendo fluidos bons.
Na Espanha, numa casa de pedra da Andaluzia, uma menina cigana cantará um canto místico, um canto gitano da mais pura magia.
Em Varadero, Cuba, uma senhora de setenta anos de idade, confidente dos Orixás, irá a uma cachoeira com uma oferenda de agradecimento.
Ela molhará seus cabelos grisalhos nas águas do riacho, e sentirá escorrendo por seu rosto uma alfazema límpida e confortante.
Tranqüila, entenderá perfeitamente a linguagem dos peixes e conversará com as plantas num idioma que só os graduados da umbanda sabem entender.
Numa savana do Quênia um grupo de meninos sairá correndo, peito nu de encontro ao vento, livres e leves, sentindo na pele uma carícia da natureza.
Nos pampas argentinos, um vaqueiro levará o seu gado para pastar num vale bonito, verdejante, e o minuano soprará ao seu ouvido uma confidência:
- Algo de bom está acontecendo neste instante, aqui no lugar em que habitas.
No limite das duas Coréias, dois camponeses, um de cada lado da História, estarão sentados no espaço imaginário onde, provavelmente, foi desenhada a linha da fronteira e, juntos, dividirão um prato de comida.
Um padeiro francês, na volta de sua derradeira entrega da madrugada, esfacelará os pães que não foram vendidos no dia anterior, e os dividirá com os esquilos famintos da praça.
Numa igreja siciliana, um padre se porá de joelhos evocando a figura perene de Deus e, numa emocionada oração, pleiteará para que o Todo Poderoso derrame sua bondade sobre a humanidade, tocando a cada cidadão, independente de credo ou cor.
Nas ruas de Belfast, na Irlanda, um grupo de católicos e protestantes conversará normalmente, como se todo o ódio e amargura fizesse parte de um passado que deve ser esquecido.
Em Sidney, na Austrália, um aborígine trafegará pelas ruas da cidade sentindo-se parte daquele quadrado de concreto, carros, buzina e progresso.
Na Cidade do Cabo, no extremo da África do Sul, negros e brancos estarão fazendo uma passeata pacífica, uma via-sacra de agradecimento pelo progresso obtido na convivência entre ambos nos últimos tempos. E pela promessa de harmonia de tempos que ainda hão de vir.
Juntos, combinarão que a palavra Apartheid será excluída do dicionário. E sairão dançando pela cidade como se fosse carnaval.
Num bairro distante da zona norte de São Paulo, um grupo de meninos jogará futebol durante o recreio escolar.
Uma moça bonita e bem vestida, saída provavelmente da capa de alguma revista de moda, auxiliará uma anciã a atravessar uma movimentada rua londrina.
Em Santiago do Chile, um motorista mostrará ao turista suíço um grupo de mães numa praça do centro da cidade.
Ao contrário do canto de tristeza pelo desaparecimento de seus filhos durante a ditadura de Pinochet, hoje elas entoam uma marcha folclórica, saudando a chegada da colheita nos campos chilenos.
Numa mesquita da faixa de Gaza, um rapaz que queria ser homem-bomba muda de idéia e promete plantar um jardim. Nesse mesmo instante, em Jerusalém, Ariel Sharon receberá uma comitiva árabe para uma reunião que decretará um cessar-fogo definitivo.
E nós, que vivemos nas cercanias de Nova York, olharemos para o céu cristalino de setembro e nele não haverá nenhum sinal de perigo.
Apenas um bando de pombas brancas, sinalizando a existência de um mundo em paz.
** Essa crônica foi escrita um ano após o ataque terrorista de 11 de setembro e será publicada nesta época do ano, enquanto eu viver, como forma de tributo a todos que perderam sua vida no episódio.
Foto de Scott Lewis: David Filipov olha a foto de seu pai, Al Filipov, no painel-tributo erguido no centro de visitação, em Nova York.
Al Filipov era o pilto do primeiro avião da American Airlines Flight a se chocar contra uma das torres do World Trade Center.
A Música Que Toca Sem Parar:
Mark Knopfler e seu inesquecível Dire Straits, Brothers In Arms.
These mist covered mountains
Are a home now for me
But my home is the lowlands
And always will be
Some day you'll return to
Your valleys and your farms
And you'll no longer burn
To be brothers in arm
Through these fields of destruction
Baptism of fire
I've watched all your suffering
As the battles raged higher
And though they did hurt me so bad
In the fear and alarm
You did not desert me
My brothers in arms
There's so many different worlds
So many different suns
And we have just one world
But we live in different ones
Now the sun's gone to hell
And the moon's riding high
Let me bid you farewell
Every man has to die
But it's written in the starlight
And every line on your palm
We're fools to make war
On our brothers in arms
Thursday, September 9, 2010
.
Falar do trigo e não dizer o joio.
Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins, Escrito em vermelho
A Música Que Toca Sem Parar:
do novo disco de Djavan (Ária), retirei esta regravação de Oração ao Tempo (já postada aqui em outras vozes), de Caetano Veloso.
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...
Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...
O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...
Falar do trigo e não dizer o joio.
Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins, Escrito em vermelho
A Música Que Toca Sem Parar:
do novo disco de Djavan (Ária), retirei esta regravação de Oração ao Tempo (já postada aqui em outras vozes), de Caetano Veloso.
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...
Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...
O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...
Tuesday, September 7, 2010
Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Rutlaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
(Transcrito de Poesias, vol. 1, pp. 318 - 319)
Alphonsus Guimaraens (Ouro Preto, MG, 1870 - Mariana, MG, 1921) Alphonsus de Guimaraens é considerado o poeta mais místico do nosso Simbolis mo. Seu misticismo, porém, "é tênue, esbatido pela ternura e pela melancolia" (Antonio Candido/José Aderaldo Castello). Chamado de "poeta lunar" por Alceu Amoroso Lima, tem como tema preferido a morte. Obras poéticas: Septenário das dores de Nossa Senhora (1899), Dona Mística (1899), Kyriale (1902), Pauvre lyre (1921), Pastoral aos crentes do amor e da morte (1923).
* Texto sobre o autor, surrupiado do livro Os Cem Maiores Poetas Brasileiros do Século, de José Nêumanne Pinto.
A Música Que Toca Sem Parar:
e eu que estava com (muita!) saudade de postar Renato Braz... esta semana escutamos, juntos, por telefone Papo de Passarim, o master do cd/dvd que ele gravou recentemente com o ex-Boca Livre Zé Renato, durante show em São Paulo.
O fato é que não consigo parar de escutar as canções do novo disco. E, como só poderei postá-las aqui após o lançamento oficial, registro Comunhão, de Mário Gil, que Renato dignifica e emoldura com sua bela voz.
Trata-se de uma daquelas canções que gosto de pregar em minha parede.
Zeca Boiadeiro de Caicó
Filho de João Brabo e de Mãe Filó
Corta ribanceira do cafundó
Vida de vaqueiro, escravo de Jô
Rosa Bordadeira de Guaporé
Filha de Olinda e de Josué
Corta e borda o manto de São Tomé
Vida costureira trançada na fé
Festa na Capela do Arpoador
Coco, arroz-doce e quentão
Zeca Boiadeiro de roupa de doutor
E Rosa de anel na mão
Dança na fogueira
Roda de calor
Zeca e Rosa em comunhão
Casco de cavalo batendo o pó
Couro de arreio amarrado a nó
Rasgo de punhal sob o paletó
Zeca Boiadeiro cansado e só
Linha, agulha, pano, retrós, dedal
Tanque, quarador, pregador, varal
Faca, escumadeira, feijão e sal
Rosa Bordadeira de vida igual
Joça cerca o gado no Pantanal
Nina é moça e já tem dedal
Diolinda, Chico
Juca, Sebastião
Zinho, que é temporão
Juca vai à escola
Zinho vai crescer
E outro que ainda vai nascer
Sunday, September 5, 2010
.
As férias brasileiras de Paul McIntire
Paul McIntire é um americano de quatro costados, tataraneto de irlandeses, daquele tipo que sai vestido de druída na parada do Dia de São Patrício, e é fanático por esportes.
É Yankees no beisebol, Knicks no Basquete, Giants naquilo que os americanos chamam de futebol e, até já se meteu numa briga durante uma partida de hóquei sobre gelo, ao torcer pelo Rangers numa semifinal contra o Devils.
Como a maior parte dos americanos, satisfaz-se por aqui mesmo.
Para ele, o Havaí é o que há de melhor. Já esteve lá quatro vezes.
Conhece as ladeiras de San Francisco como a palma de suas mãos, e seus olhos já foram tocados pela beleza das cataratas de Niagara e do Grand Canyon.
Boston é um banho de cultura toda vez que passa por lá e, aventura de verdade, só nos cassinos de Las Vegas, onde vangloria-se de ter já tirado quase 30 mil dólares de uma máquina caça-níquel.
Os desertos do Arizona não são um mistério para ele. Afinal, fez o trajeto da Rota 66 em mais de uma ocasião. Coisa mais linda!
Mas ele ultimamente andava cabisbaixo.
Estava assim desde o seu divórcio com Diana, uma ruiva que conheceu no primeiro dia de aula do ginásio, e com quem veio a se casar, tão logo tirou o canudo de técnico em computação.
O divórcio, após apenas 3 anos de casamento e nenhum filho foi uma pauleira.
Sem destino ao final das jornadas de trabalho, conseguiu abrigo num Go-Go Bar de Newark.
Foi lá que ele conheceu - entre rodadas de uísque e cerveja -, as inigualáveis meninas do Brasil.
E o mito americano começava a desabar.
No início, relutou um pouco.
Recusava-se a comparar as ondas de Honolulu com as da praia da Joaquina.
Foi nos braços de uma loirinha de Maringá, que passou a acreditar que as extintas Sete Quedas, em Foz do Iguaçu, foram mais exuberantes que as rivais de Niagara.
No movimento dos quadris de uma carioca ele teve a certeza de que o carnaval do Rio de Janeiro era o que os americanos chamam de “The Real Thing”. E que o Mardi Gras de New Orleans era uma imitação barata da folia momesca.
Após uma noite com uma mineirinha de Governador Valadares, Paul passou a contemplar a possibilidade de ir ao Brasil, onde teria as mais belas mulheres do mundo ao alcance de suas mãos.
Passou os meses seguintes estudando o país, e teve até algumas discussões com pessoas de sua família.
Ninguém aceitava esse seu arroubo de paixão e compaixão por um país cuja capital era a Argentina.
“Estão vendo? Vocês são uns tapados!”
E foi assim que Paul Mc Intire classificou de propaganda imperialista aquela matéria de página inteira no New York Times. Nela, o jornalista insensível e tendencioso, chamava São Paulo de Capital Mundial dos Seqüestros-relâmpagos e as favelas do Rio de Janeiro de Nova Medelim.
Feliz e animado, ele partiu de New York para um mês de volúpia, caipirinha, pagode, churrasco a rodízio, praia e sol nos doces trópicos.
A viagem não começou muito bem, é verdade.
Sua bagagem foi extraviada, e ele ficou com a mesma roupa durante quase dois dias no calor abafado do Rio de Janeiro.
O que lhe valeu foi aquela camiseta com a estampa da Ararinha Azul, que comprou ainda no aeroporto do Galeão.
Apesar do abafamento, não fez sol durante os primeiros 5 dias.
Neste período, registraram-se as maiores enchentes de toda a história da cidade. Uma lástima!
Foram dias de tédio e mal-entendidos com os funcionários do hotel, que insistiam em comunicar-se com ele em português.
“Droga, o inglês deveria ser obrigatório no resto do mundo”, resmungou para a camareira de sorriso humilde.
No dia em que a chuva parou, Paul McIntire resolveu sair à caça de mulheres pelo calçadão de Copacabana. Agora, sim, finalmente, chegara a sua vez!
Cinco horas depois e já um pouco desapontado por não querer sucumbir aos encantos de uma garota de programa com um suspeitíssimo pomo-de-adão, resolveu voltar ao hotel.
Eram quase 3 da manhã, quando sentiu o cano frio do revólver encostado em sua nuca.
Mesmo sem falar o português, entendeu direitinho o que os assaltantes queriam.
E foi assim, trajando apenas uma prosaica cueca branca, que Paul McIntire chegou à delegacia do bairro para reportar o crime ao cabo de plantão, mas este também não conseguia captar os detalhes de seu infortúnio.
Uma vez mais, a bendita barreira da língua.
Passou os dias seguintes no quarto do hotel, convalescendo daquilo que pensava ser uma feijoada mal digerida.
Não dava mais.
Uma semana após a sua chegada, desiludido e sem bronzeado (continuou chovendo no Rio), Paul Mc Intire voltou aos States.
Três dias em casa, e ele ainda estava febril, com o corpo dolorido. Acabou no leito de um hospital.
O diagnóstico médico causou surpresa entre seus pares, enterrando de vez o fascínio tupiniquim sobre Paul McIntire:
Ele havia sido picado por um mosquito inofensivo, de nome esquisito, um certo Aedes Aegypti.
***
A Música Que Toca Sem Parar:
a baianinha Rosa Passos, em seu disco-homenagem a Tom Jobim, uma releitura de Garota de Ipanema.
As férias brasileiras de Paul McIntire
Paul McIntire é um americano de quatro costados, tataraneto de irlandeses, daquele tipo que sai vestido de druída na parada do Dia de São Patrício, e é fanático por esportes.
É Yankees no beisebol, Knicks no Basquete, Giants naquilo que os americanos chamam de futebol e, até já se meteu numa briga durante uma partida de hóquei sobre gelo, ao torcer pelo Rangers numa semifinal contra o Devils.
Como a maior parte dos americanos, satisfaz-se por aqui mesmo.
Para ele, o Havaí é o que há de melhor. Já esteve lá quatro vezes.
Conhece as ladeiras de San Francisco como a palma de suas mãos, e seus olhos já foram tocados pela beleza das cataratas de Niagara e do Grand Canyon.
Boston é um banho de cultura toda vez que passa por lá e, aventura de verdade, só nos cassinos de Las Vegas, onde vangloria-se de ter já tirado quase 30 mil dólares de uma máquina caça-níquel.
Os desertos do Arizona não são um mistério para ele. Afinal, fez o trajeto da Rota 66 em mais de uma ocasião. Coisa mais linda!
Mas ele ultimamente andava cabisbaixo.
Estava assim desde o seu divórcio com Diana, uma ruiva que conheceu no primeiro dia de aula do ginásio, e com quem veio a se casar, tão logo tirou o canudo de técnico em computação.
O divórcio, após apenas 3 anos de casamento e nenhum filho foi uma pauleira.
Sem destino ao final das jornadas de trabalho, conseguiu abrigo num Go-Go Bar de Newark.
Foi lá que ele conheceu - entre rodadas de uísque e cerveja -, as inigualáveis meninas do Brasil.
E o mito americano começava a desabar.
No início, relutou um pouco.
Recusava-se a comparar as ondas de Honolulu com as da praia da Joaquina.
Foi nos braços de uma loirinha de Maringá, que passou a acreditar que as extintas Sete Quedas, em Foz do Iguaçu, foram mais exuberantes que as rivais de Niagara.
No movimento dos quadris de uma carioca ele teve a certeza de que o carnaval do Rio de Janeiro era o que os americanos chamam de “The Real Thing”. E que o Mardi Gras de New Orleans era uma imitação barata da folia momesca.
Após uma noite com uma mineirinha de Governador Valadares, Paul passou a contemplar a possibilidade de ir ao Brasil, onde teria as mais belas mulheres do mundo ao alcance de suas mãos.
Passou os meses seguintes estudando o país, e teve até algumas discussões com pessoas de sua família.
Ninguém aceitava esse seu arroubo de paixão e compaixão por um país cuja capital era a Argentina.
“Estão vendo? Vocês são uns tapados!”
E foi assim que Paul Mc Intire classificou de propaganda imperialista aquela matéria de página inteira no New York Times. Nela, o jornalista insensível e tendencioso, chamava São Paulo de Capital Mundial dos Seqüestros-relâmpagos e as favelas do Rio de Janeiro de Nova Medelim.
Feliz e animado, ele partiu de New York para um mês de volúpia, caipirinha, pagode, churrasco a rodízio, praia e sol nos doces trópicos.
A viagem não começou muito bem, é verdade.
Sua bagagem foi extraviada, e ele ficou com a mesma roupa durante quase dois dias no calor abafado do Rio de Janeiro.
O que lhe valeu foi aquela camiseta com a estampa da Ararinha Azul, que comprou ainda no aeroporto do Galeão.
Apesar do abafamento, não fez sol durante os primeiros 5 dias.
Neste período, registraram-se as maiores enchentes de toda a história da cidade. Uma lástima!
Foram dias de tédio e mal-entendidos com os funcionários do hotel, que insistiam em comunicar-se com ele em português.
“Droga, o inglês deveria ser obrigatório no resto do mundo”, resmungou para a camareira de sorriso humilde.
No dia em que a chuva parou, Paul McIntire resolveu sair à caça de mulheres pelo calçadão de Copacabana. Agora, sim, finalmente, chegara a sua vez!
Cinco horas depois e já um pouco desapontado por não querer sucumbir aos encantos de uma garota de programa com um suspeitíssimo pomo-de-adão, resolveu voltar ao hotel.
Eram quase 3 da manhã, quando sentiu o cano frio do revólver encostado em sua nuca.
Mesmo sem falar o português, entendeu direitinho o que os assaltantes queriam.
E foi assim, trajando apenas uma prosaica cueca branca, que Paul McIntire chegou à delegacia do bairro para reportar o crime ao cabo de plantão, mas este também não conseguia captar os detalhes de seu infortúnio.
Uma vez mais, a bendita barreira da língua.
Passou os dias seguintes no quarto do hotel, convalescendo daquilo que pensava ser uma feijoada mal digerida.
Não dava mais.
Uma semana após a sua chegada, desiludido e sem bronzeado (continuou chovendo no Rio), Paul Mc Intire voltou aos States.
Três dias em casa, e ele ainda estava febril, com o corpo dolorido. Acabou no leito de um hospital.
O diagnóstico médico causou surpresa entre seus pares, enterrando de vez o fascínio tupiniquim sobre Paul McIntire:
Ele havia sido picado por um mosquito inofensivo, de nome esquisito, um certo Aedes Aegypti.
***
A Música Que Toca Sem Parar:
a baianinha Rosa Passos, em seu disco-homenagem a Tom Jobim, uma releitura de Garota de Ipanema.
Thursday, September 2, 2010
.
A Música Que Toca Sem Parar:
Monica Salmaso canta de Ná Ozzetti e Itamar Assunção, Eu Canto Em Qualquer Canto
Vim cantar sobre essa terra
Antes de mais nada, aviso
Trago facão, paixão crua
E bons rocks no arquivo
Tem gente que pira e berra
Eu já canto, pio e silvo
Se fosse minha essa rua
O pé de ypê tava vivo
Pro topo daquela serra
Vamos nós dois, vídeo e livros
Vou ficar na minha e sua
Isso é mais que bom motivo
Gorjearei pela terra
Para dar e ter alívio
Gorjeando eu fico nua
Entre o choro e o riso
Pintassilga, pomba, melroa
Águia lá do paraíso
Passarim, mundo da lua
Quando não trino, não sirvo
Caso a bela com a fera
Canto porque é preciso
Porque esta vida é árdua
Pra não perder o juízo
Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Thiago de Mello
Santiago do Chile, abril de 1964
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Thiago de Mello
Santiago do Chile, abril de 1964
A Música Que Toca Sem Parar:
Monica Salmaso canta de Ná Ozzetti e Itamar Assunção, Eu Canto Em Qualquer Canto
Vim cantar sobre essa terra
Antes de mais nada, aviso
Trago facão, paixão crua
E bons rocks no arquivo
Tem gente que pira e berra
Eu já canto, pio e silvo
Se fosse minha essa rua
O pé de ypê tava vivo
Pro topo daquela serra
Vamos nós dois, vídeo e livros
Vou ficar na minha e sua
Isso é mais que bom motivo
Gorjearei pela terra
Para dar e ter alívio
Gorjeando eu fico nua
Entre o choro e o riso
Pintassilga, pomba, melroa
Águia lá do paraíso
Passarim, mundo da lua
Quando não trino, não sirvo
Caso a bela com a fera
Canto porque é preciso
Porque esta vida é árdua
Pra não perder o juízo
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